Em nossa Magna Carta, a política urbana é tratada em capítulo próprio, dada a relevância deste assunto. De fato, trata-se de matéria que alçou a esfera constitucional por estar vinculada ao equilíbrio entre as estruturas de ordem e poder, a demandar um comando pragmático.
Isso porque, ao longo do século XX, o Brasil, que era essencialmente rural, transformou-se em um país urbano. Dados do último Censo, realizado em 2010, nos dão conta de que há mais de 160 milhões de habitantes nas cidades brasileiras e apenas 29 milhões de pessoas vivendo no meio rural. [1]
Assim, não pôde o legislador constitucional olvidar esse aspecto da realidade brasileira que se mostrava relevante mesmo à época da elaboração da Constituição atual, pois a população urbana, em 1980, já significava mais que o dobro da rural, segundo o IPEA[2].
Deste modo, premente era a necessidade de normas de planejamento urbano, a nortear a atuação do Poder Público.
No entanto, a disposição constitucional acerca do tema foi além: previu a participação da sociedade civil em tais normas que, importante frisar, vinculam a atividade do administrador público. Essa faceta relativa à atuação cidadã nunca antes havia sido contemplada, até porque o Brasil acabava de emergir de mais de duas décadas de ditadura militar e mal retomava os passos em direção à democracia, quando a atual Constituição foi escrita.
Tal preocupação refletiu a cristalização, ainda nas primeiras décadas do século passado, da importância dos chamados direitos sociais, os quais se consolidaram com a ascensão do Estado de Bem Estar Social, no contexto do Pós-Guerra.
Com efeito, encontramo-nos em uma circunstância histórica em que, inusitadamente, os direitos sociais ganharam relevo e há mecanismos de participação civil que estão legalmente postos, como nunca antes ocorreu à exceção, talvez, da democracia grega na Antiguidade. No entanto, naquele período, a participação na discussão sobre políticas públicas era restrita aos considerados cidadãos, o que excluía os estrangeiros e seus descendentes, as mulheres e os escravos.
Nos dias atuais, temos o privilégio de ver que os direitos inerentes à condição humana são reconhecidos pela maioria dos ordenamentos jurídicos, os quais regulam processos de deliberação democrática e norteiam, em conformidade com tais princípios, as diretrizes de políticas públicas que devem ser observadas pelo Estado.
Com isso, não se afirma que vivenciemos um sistema de justiça plena e de irrestrita igualdade social e que a democracia tenha superado em definitivo a era das ditaduras.
Aliás, vale lembrar que somente na década final do século XX caiu o regime soviético e que, no momento, há ditaduras em vários continentes, em que o mais básico dos direitos - a vida - é desrespeitado.
Mas a percepção generalizada de inviolabilidade dos direitos sociais torna singular a época em que vivemos. Não se concebe, nessa segunda década do século XXI, a retomada, por exemplo, da escravidão ou da servidão campesina. Claro que ainda não houve o banimento total do trabalho escravo, nem da exploração de menores etc.
A singularidade de nossa época consiste não na extirpação desses fenômenos (esperamos que as futuras gerações tenham essa felicidade), mas, sim, no repúdio a eles. Nos dias atuais, eles existem, é fato, mas são a exceção, não a regra.
Como fruto desse amadurecimento político das sociedades, houve o surgimento dos chamados direitos sociais de terceira geração, que exigiram do legislador proteção a bens de natureza coletiva. Eles consagram os princípios da fraternidade e da solidariedade e não se restringem à relação individual, sendo, por isso, designados “transindividuais”. Como exemplos, temos o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente sadio e à preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural, dentre outros.
O direito ao meio ambiente sadio está consignado em nossa Constituição na parte dedicada à Ordem Social (artigo 225 e seus parágrafos), consagrando-se como um dos direitos fundamentais. Esse artigo determina as obrigações do Estado e da sociedade civil para a garantia de um ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo.
Com o advento do chamado Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257/01) houve a regulamentação do disposto no texto constitucional, por meio da previsão de diversos mecanismos jurídicos que, se aplicados, têm potencial para tornar a cidade um lugar melhor nos aspectos ambiental, administrativo e social.
A noção de cidade que está prevista no referido Estatuto (meio ambiente artificial, que se constitui em expressão da atividade transformadora do ser humano) reflete uma preocupação ambiental na ocupação urbana e em toda sua conformação, cujo objetivo precípuo é a garantia da qualidade de vida da geração atual e a preservação desta qualidade e do meio ambiente saudável para as gerações vindouras, da forma como prevê o caput do artigo constitucional supracitado.
Para tanto, esse diploma propõe conceitos inovadores, como, por exemplo, a noção de sustentabilidade urbana, a participação pública, a ideia de função social da propriedade urbana e a gestão democrática como diretrizes da política de desenvolvimento urbano.
Mas é da participação popular que depende a plena eficácia dos valiosos conceitos que o Estatuto contém, embora nele inexistam dispositivos que obriguem a população a tanto.
Ao contrário, por exemplo, do instituto do voto popular, principal mecanismo de cidadania que, se não for exercido, enseja sanções a quem injustificadamente descumpri-lo, o Estatuto da Cidade não obriga à participação.
O aspecto impositivo é restrito à Administração Pública. Isso porque as disposições do Estatuto se escoram no ideal de conscientização e do livre exercício da cidadania.
O Estatuto constitui-se num marco histórico.
Os conceitos nele contidos retratam uma visão superior do exercício da cidadania, nesse momento inexistente, e os objetivos que comporta estão juridicamente postos antes das mudanças sociais que ele demanda.
É uma inversão do clássico papel do Direito, que apenas avaliza o que já está cristalizado em sociedade.
O Estatuto da Cidade contém os mecanismos jurídicos necessários para propiciar mudanças inéditas na condução da política urbana, uma vez que conferem destaque à participação dos habitantes da cidade, tornando-os cogestores da res publica. É uma lei que existe previamente à mudança de mentalidade social.
Para a concretização dos conceitos supracitados, ele traz em seu bojo um conjunto de dispositivos jurídicos, dentre os quais cumpre destacar o Plano Diretor, que se caracteriza por seu caráter de coercibilidade, eis que seu cumprimento é obrigatório pelo administrador público, incumbindo ao Judiciário fazer valer tais disposições quando a Administração deixar de observá-las.
De fato, os agentes públicos, especialmente prefeitos e vereadores, respondem por improbidade administrativa em caso de inobservância dos princípios do Estatuto, em especial os dispositivos do Plano Diretor, criados para garantir legalmente a participação democrática na gestão de políticas públicas.
O escopo essencial do Plano Diretor é a concretização das funções sociais da cidade, que se materializam, dentre outras, no acesso à moradia digna, às infraestruturas de transporte e de saneamento, ao meio ambiente saudável, à preservação do patrimônio histórico, cultural e paisagístico, dentre outros, realizáveis sob a égide de um planejamento participativo, cuja base é a cogestão com a sociedade civil organizada e com o setor privado na elaboração de políticas públicas.
Tal modelo pressupõe uma governança calcada na legalidade, na ética e na responsabilidade públicas, bem como na ênfase em resultados. Para tanto, o Plano Diretor prevê mecanismos cuja base é a transparência da Administração, pois, para ser aprovado, exige a participação comunitária, seja por meio de audiências públicas, com a divulgação em mídias, seja por meio de reuniões com associações de bairro, de forma a impedir a atuação unilateral do gestor público.
Nesse sentido, o Plano Diretor consiste, hoje, no principal instrumento de garantia do desenvolvimento urbano sustentável, pois contempla um sistema de planejamento e de gestão da cidade com orientação das políticas públicas a serem desenvolvidas em todas as áreas da administração municipal, tendo por base a participação da sociedade em todas as fases de seu processo, desde a elaboração até a definição dos mecanismos de tomada de decisão, a teor do disposto artigo 3º § 1º, do Estatuto da Cidade.
Para ser exequível e eficiente e lograr êxito em atender aos anseios da comunidade, que são mutáveis, o Plano Diretor não foi concebido como um instrumento jurídico estático. Ao contrário: ele prevê revisões periódicas, de forma obrigatória, cuja inobservância pode ensejar a caracterização de improbidade administrativa, consoante previsto no artigo 52, VII, do Estatuto da Cidade.
Dessa forma, é de grande valia o estudo e a análise dos mecanismos que conferem efetividade jurídica a esse importante diploma legal, no que toca à viabilização dos direitos fundamentais e dos princípios contidos em nossa Lei Maior.
NOTAS
[1] Site do IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível no sítio eletrônico: http://www.censo2010.ibge.gov.br/primeiros_dados_divulgados/index.php?uf=00. Acesso em 19 de maio de 2012 as 20 h 50 min.
[2] Site do IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas. Texto para discussão nº. 329: “A Redistribuição Espacial da População Brasileira durante a década de 80”. Janeiro de 1994. De acordo com o Censo de 1980, a população urbana brasileira, nesse ano, era de 80.436.409, ao passo que a população rural era de 38.566.297 pessoas. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/pub/td/1994/td_0329.pdf. Acesso em 03 de junho de 2012 as 10 h.