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A inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha

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Agenda 28/11/2014 às 14:46

5. O PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO

Salientamos o conceito do que seria dignidade. No Dicionário Aurélio encontram-se alguns significados, sendo eles: respeitabilidade, autoridade moral, honra, decência, honestidade, etc. Todavia não são apenas essas as características englobadas pelo princípio em questão, pois, o conceito de dignidade humana é de imensa complexidade, dada sua grandeza.

“A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” Em nosso ordenamento tal princípio encontra-se em nossa Carta Magna, art. 1º, III.13

Sobre tal princípio, Nelson Nery doutrina que: É o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro. O Min. Celso de Mello, em decisão ao HC 85988-PA / STJ – 10.06.2005, defende ser a dignidade humana o princípio central de nosso ordenamento jurídico, sendo significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país, além de base para a fundamentação da ordem republicana e democrática.

Daí, a importância do princípio em estudo é extrema, haja vista sua incidência em qualquer área do direito, ou seja, sua amplitude. Há ainda a questão cultural, pois, obviamente que, sendo tal principio de amplitude geral, incide também em normas internacionais, portanto, é necessária a observância dos costumes para sua alegação.

5.1. Principio da dignidade da pessoa humana e a Lei Maria da Penha.

A lei Maria da Penha foi promulgada com o claro objetivo de criar mecanismos para “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Temos entendido que a Lei Maria da Penha continua gerando discussões acerca da legitimidade, validade e alcance de seu respectivo conteúdo normativo, tendo em vista o princípio constitucional que assegura igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres.

Em geral, parecem ser duas as posições adotadas com relação a essa questão: de um lado, os defensores da tese de que normas destinadas à proteção da mulher foram superadas pelo preceito constitucional que assegura tratamento igualitário entre homens e mulheres, eliminando qualquer tipo de postura discriminatória com base em gênero; de outro lado, e em sentido contrário, os que defendem que a isonomia não é um princípio absoluto e não pode ser aferida sem a concorrência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (por exemplo, de que determinadas normas não cuidariam propriamente da questão de gênero, mas de fatores biossociais que levam à criação de vários dispositivos de proteção da mulher).

Porém, a discussão põe em evidência um dos mais delicados temas da teoria jurídica contemporânea: a relação entre o direito e a moral e o problema da concorrência e/ou colisão entre princípios jurídicos consagrados na Constituição . No caso, uma contradição entre o princípio da igualdade, o princípio da liberdade e o princípio que determina ao Estado promover as condições para que a liberdade e a igualdade de todo cidadão sejam reais e efetivas, removendo os obstáculos que impedem ou dificultam sua plenitude.

Em meu entendimento , os princípios são exigências de tipo moral que estabelecem direito e/ou deveres e que, à diferença das leis (que determinam pautas relativamente específicas de conduta), sua estrutura não contém uma previsão de fatos e uma conseqüência jurídica bem definida. Tal característica não somente torna impossível qualquer aplicação isolada de cada um dos princípios consagrados na Constituição, senão que supõe por sua vez uma tarefa de ponderação e harmonização com outros princípios, igualmente válidos e relevantes, capazes de representar em um determinado momento histórico uma fonte de exigências de diferente signo às do princípio eventualmente posto em questão.

Dito de outro modo, os princípios têm uma dimensão de peso ou de importância: quando se utilizam para legislar ou resolver uma determinada situação ou conflito social, devem ser ponderados entre si e a solução, sempre condicionada às circunstâncias historicamente concretas, será aquela derivada do peso relativo atribuído a cada um dos princípios concorrentes. E no caso em questão devemos apesar da importância e avanço da mulher na sociedade atual considerar um retrocesso uma lei para sua proteção , dando um cunho de fragilidade desnecessário a pessoa da mulher.

Na hipótese a que nos referimos, a concorrência (ou “colisão”) parece ocorrer entre o princípio da igualdade (da não discriminação entre homens e mulheres) e o princípio da liberdade (da mulher), sendo a garantia deste último buscada por meio de mecanismos de discriminação positiva o que ao meu vê não deixa de ser discriminação . E os problemas apontados pelos doutrinadores que estimam que a Lei 11.340/2006 é inconstitucional ou alargam seu alcance para além da “proteção da mulher” não resultam, se bem observado, de todo convincente. Para os propósitos deste artigo, nos limitaremos a analisar apenas dois desses problemas.

O primeiro diz respeito a algumas críticas formuladas à mencionada lei, no sentido de que há discriminação porque não se contemplam os casos de violência das mulheres contra os homens. Hoje existente, mas se nos atemos aos estudos relativos à violência contra os homens, a maioria das agressões é exercida por outros homens e sucedem no âmbito público e em especial em instituições ou em lugares de marcada hierarquia (de dominação) ou sujeitos a parâmetros de acentuadas diferenças ou conflitos intergrupais. Os estudos relativos à violência contra os homens são escassos e os modelos que se aplicam às mulheres não se podem aplicar aos homens porque a natureza da violência é outra.

Claro que arbitrar diferentes tipos e medidas penais em função do sexo do agressor pode parecer à primeira vista uma clara transgressão do princípio da igualdade e da não discriminação. Contudo, o ordenamento jurídico está repleto de exemplos que mostram que determinadas agressões em contextos concretos têm certos agravantes. Não é o mesmo planejar um crime com um mês de antecedência que assassinar a alguém em um estado de alienação mental transitória, como tampouco é o mesmo que um grupo de adolescentes brancos, heterossexuais e varões assassine a um jovem homossexual que havia sido previamente objeto de insultos e ameaças racistas e homofônicas por parte de grupos locais.

Por que não tratamos de igual maneira todas as situações? Porque entendemos que a natureza e as motivações que existem detrás de cada um desses atos são especialmente perniciosas e perigosas para a sociedade, e porque refletem uma ideologia racista ou padrões de abusos de autoridade. Ora, a finalidade da lei a que nos referimos é precisamente a de criar mecanismos para coibir e prevenir práticas que, em última instância, resultam dos valores machistas e patriarcais que ainda desvalorizam as mulheres em nossa sociedade. O pior é que temos leis de proteção para idoso ( lei 10.741/03) , para criança ( lei 8069/90) e os homens onde são colocados diante tantos protecionismos alencados no ordenamento jurídico.

A segunda dificuldade apontada diz respeito à presumível “colisão” entre princípios constitucionais geradas pela Lei 11.340/2006; no caso, o princípio da igualdade e o princípio da liberdade (tal como concebemos a idéia de liberdade. O problema, contudo, é que ambos os princípios se caracterizam por ser o fundamento de toda ordem política democrática. Os dois são conceitos fundamentais para qualquer proposta consistente acerca de questões jurídicas e morais. Assim que parece não haver lugar legítimo para uma contraposição liberdade/igualdade, pois, como se verá em seguida, não somente a igualdade é entendida como reciprocidade na liberdade senão que é em si mesma a garantia da liberdade plena.

A igualdade forma parte do desenho institucional de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que os fatos sociais assim o exijam, as desigualdades reais e materiais entre os membros de uma comunidade ética. E é do Estado a obrigação, o dever (moral e jurídico), de assegurar a liberdade na igualdade.

Outrossim, o argumento de que a Lei nº 11.340/2006 - destinada à proteção da mulher - viola o princípio da igualdade é tão verdadeiro, como certo é o fato de que a desigualdade real implica, ela mesma, uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa desigualdade. Porque é a falta de igualdade real a que leva à falta de autonomia e liberdade (de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir ) daquele que vive com a permissão do outro e dos que ainda não se encontram no “melhor dos mundos possíveis”.

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E no que se refere à discriminação com base no gênero e à violência no âmbito dessas tão íntimas e pessoais relações familiares, são as mulheres quem ainda vêm padecendo de um profundo, crônico e perversamente dissimulado problema de falta de igualdade e de liberdade, com a conseqüente perda de sua autonomia. Não por falta de amparo legal e sim por falta de educação domestica e respeito moral do seu agressor, e implantação de novas e novas leis jamais terão qualquer resultados se não houver aplicabilidade fática.

5.2. Em que consiste o princípio da igualdade.

A igualdade como “núcleo duro” da justiça vagas noções são tão complexas e despertam tantas paixões, consomem tantas energias, provocam tantas controvérsias, e têm tanto impacto em tudo o que os seres humanos valoram como a idéia de justiça. Sócrates, através de Platão, sustentava que a justiça é uma coisa mais preciosa que o ouro e Aristóteles, citando a Eurípides, afirmava que nem a estrela vespertina nem a matutina são tão maravilhosas como a justiça.

Porém o que vem a ser justiça e como realizá-la? Uma virtude do individuo? A primeira das qualidades das instituições políticas e sociais? O antagonismo entre dois extremos? Uma ideologia da elite? O produto de um processo eqüitativo? O que surge de um movimento histórico no qual não se violam direitos fundamentais? Ideal irracional? Estas perguntas e muitas respostas extremamente divergentes entre si foram dadas por filósofos sérios ao largo de uma extensa história do pensamento dedicado a desvelar esta intuitiva – e igualmente intencional, emotiva e significativa – concepção.

A preocupação se centra, basicamente, em analisar um valor que é empregado em muitos tipos de discursos, articulando concepções que permitam justificar ou impugnar os juízos que se formulam nos argumentos que empregam e/ou manipulam o conceito em questão. Invoca-se a justiça nos jogos de crianças e de adultos, apela-se a ela também em contextos conjugais, familiares, laborais, religiosos, enfim, em quase todas as transformações de nosso entorno, essencialmente relacional.

A igualdade ocupa um lugar central no discurso moral e é absolutamente distintiva do atual discurso jurídico, em especial quando se trata de julgar o grau de valor com que uma determinada norma pode ser posta em prática e na qual cabe efetuar com ela câmbios para o bem dos homens. E no conjunto dos discursos em que se emitem juízos acerca da justiça a idéia de igualdade parece ocupar sempre uma posição de destaque. Com efeito, desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evoluindo ao compasso desse princípio ilustrado.

No Livro V da Ética a Nicômaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça (que ainda hoje representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça.

Mas a igualdade não é um fato daí o principio de tratar desiguais na medida da desigualdade sem discriminação e preconceito. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais, isto é, a situação de fato não é a igualdade: a evolução nos desenhou desiguais, como mostra às claras o próprio fato do nascimento, que oferece não somente a diversidade de cunho social, senão também a desigualdade em talentos, em condições físicas, em saúde, sexo, etc.

Dito de modo mais simples, embora compartamos determinados traços comuns e universais enquanto membros da mesma espécie, dispomos de características individuais ( por exemplo, de padrões de circuitos neuronais, de conexões nervosas ou sinápticas) que nos fazem únicos. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se, portanto, em nenhuma característica “material”; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma intuição ou aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade).

A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente. Em realidade, parece razoável sustentar como correta a hipótese de que o “princípio da igualdade” expresse uma intuição ou emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental: o mais canalha dos homens - inclusive o que agride a uma mulher - sempre reagirá negativamente ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa.

A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética ou neuronal – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo duro da justiça, não somente não o é da totalidade da justiça, senão que as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades e características pessoais, assim como as decorrentes da má sorte bruta. A distribuição das dotações sociais e genéticas – como não deixou de advertir John Rawls – correspondem a um ativo comum da sociedade, ainda que somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora ou porque somente em seu seio podem ser exercidas.

Por conseguinte, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas sim, e muito particularmente, ausência de exploração (ou interferência arbitrária) de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições ( R. Dworkin).

Como recorda Peter Singer, a existência de profundas diferenças entre os seres humanos deve levar a certas diferenças nos direitos a serem atribuídos a uns e outros. Quando se invoca um princípio de equidade (presente na maioria das teorias contemporâneas da justiça) não se está em absoluto pretendendo que deva conduzir a uma identidade absoluta de direitos: da mesma maneira que é absurdo conceder a liberdade de aborto a um homem, o é a pretensão de dar a liberdade a uma mulher para contrair matrimônio, por exemplo, com um porco.

É a “consideração” a que deve ser mantida por igual; a consideração que merecem diferentes seres conduz a distintos direitos. E porque a crença de que os sexos são idênticos acaba por conduzir a certo número de discursos de duvidoso tino e efetividade, desprezando-se o princípio de que a “dignidade” não pode ignorar o fato óbvio da especificidade da condição feminina não de fragilidade e sim dignidade, tem sentido ligar de forma prioritária, no caso da Lei 11.340/2006, a concepção de justiça à ideia de igualdade material

. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessa intuição ou emoção moral inata que parece compartimos com outros primatas não hominídeos. Esta intuição moral ou virtude ilustrada que configura o núcleo duro de justiça, somada às virtudes ilustradas da liberdade e fraternidade, somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito incondicional à dignidade humana.

5.3. A liberdade como condição da dignidade humana

É razoável começar a tratar o tema da dignidade humana lembrando que a Constituição não é uma mera justaposição de normas, senão um conjunto normativo dotado, ainda que tendencialmente, de unidade e coerência entre seus preceitos ao responder a determinados valores e princípios comuns ordenadores - basicamente os discriminados nos artigos 1º. Ao 5º do texto constitucional.

Com normas dessa natureza (com princípios e valores) se inaugura a Constituição da República: constituem as normas basilares da parte dogmática ou substantiva da Constituição e expressam a ordem valorativa que há de presidir o ordenamento jurídico brasileiro na organização dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social.

Há verá uma evidente conexão sistemática entre princípios e normas (constitucionais e infraconstitucionais), pois não parece razoável conceber a dignidade humana sem liberdade e igualdade, e estes valores, por sua vez, seriam indignos ou vazios de conteúdo e sentido se não redundassem em favor da dignidade humana. Isto quer dizer que os princípios fundantes da ordem constitucional proclamam um valor humano na medida em que concreta os valores que devem presidir a criação, interpretação e aplicação de todas as demais normas contidas em nosso ordenamento, inclusive as próprias normas constitucionais.

Estes critérios inspiradores do sistema jurídico constituem a base inteira e o fundamento do próprio ordenamento, o qual há de prestar a estes princípios seu sentido próprio em todo e qualquer processo de sua criação legislativa e/ou judicial. Já não se trata de proclamações enfáticas e retóricas reduzidas a princípios programáticos sem nenhum valor normativo, senão de autênticas normas jurídicas, que representam os ideais de uma comunidade e que não esgotam sua virtualidade em seu estrito conteúdo normativa: constituem parâmetros vinculantes para a elaboração, interpretação e aplicação do direito e, ao mesmo tempo, um limite para o próprio ordenamento jurídico.

No contexto, o conceito da dignidade humana não se esgota em uma mera funcionalidade constitucional porque a idéia da livre constituição e pleno desenvolvimento do indivíduo sob o manto de instituições justas (igualitária e fraterna) constitui, um elemento axiológico objetivo de caráter indisponível , junto com os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o respeito à lei e aos direitos dos demais, configuram o fundamento último da ordem política e da paz social. A dignidade da pessoa humana não é, portanto, mais uma idéia valorativa dentro do esquema constitucional, senão que expressa um dos fundamentos da ordem estabelecida. A sua colocação na Constituição como princípio normativo fundante e prioritário dota-o de um significado especialmente relevante: como princípio constitucional fundamental, inviolável e indisponível e, como tal, como critério axiológico, normativo, vinculante e irrenunciável da práxis jurídica.

O que consiste este princípio fundamental? Qual o fundamento que embasado à idéia da dignidade humana? Qual correlação entre dignidade, liberdade e autonomia? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem/mulher singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Ou, já que estamos, continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana, que pretenda ser digno de crédito na atualidade, desvinculado ou que não esteja sustentado em um modelo essencialmente relacional acerca da natureza humana?

Não parece que seja assim. A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma - portanto, digna - é coisa muito mais complexa, processual e de grau que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade como uma mera diretriz normativa. A caracterização da dignidade humana leva-nos a admitir que há boas razões para supor como correta a afirmação de que não podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de enunciados meramente lógico-formais, filosóficos ou normativos. Hoje sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades e predisposições físicas e morais inatas.

Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, que homens e mulheres são distintos e que esse conjunto de traços conforma a condição humana. E hoje sabemos, para além de toda dúvida razoável, que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, há modelado nossa espécie: somos uma espécie inerentemente ética e social.

Trata-se de uma postura que tende a conceber a dignidade como um epifenômeno da natureza humana, a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor para a construção do Estado liberal. Esta dimensão intersubjetiva (relacional, co-existencial) da dignidade é de suma transcendência para calibrar o sentido e o alcance atual dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro.

É esse sentido relacional de dignidade humana o que deve estar vinculado a um direito destinado a favorecer a liberdade e a autonomia da pessoa. E não se trata de um problema de pouca importância, de um mero exercício mental para filósofos acadêmicos e juristas. A eleição do modo de abordar o problema da dignidade humana supõe uma grande e importante diferença na forma em que vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção e o sentido de todo e qualquer discurso jurídico, moral e/ou político.

Ademais, uma idéia de dignidade fundada em uma teoria robusta da natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito sustentado, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo, quer dizer, de que somos nós mesmos os que outorgamos direitos morais a todo ser humano. Não há, pois, direitos que não sejam outorgados para resolver problemas sociais relacionados. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo - que implica ter em conta as necessidades, desejos e crenças dos demais - tem por objeto garantir as condições mínimas de uma vida boa e plena, que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar.

Nisso reside, precisamente, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar baixo o suposto implícito de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas. Portanto, o fundamento do direito não está na dignidade abstrata, senão na expressão social de nossa natureza, em nossa individualidade e autonomia, em nossas diferenças, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de relacionar-nos e de sofrer. Longe de ser um princípio puramente abstrato e contrário ou separado o nosso natureza, é esta, nossa natureza, a que dá sentido a idéia de dignidade humana e que deveria condicionar o processo político-legislativo de elaboração do desenho normativo e institucional de nossa sociedade.

E não somente isso: a própria idéia de liberdade – conditio sine qua non para a constituição da dignidade humana - não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Daí a razão pela qual E. Levinas adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige.

A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. E desde o momento em que o outro aparece como outro livre e autônomo, nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente co-existencial.

Desde esta perspectiva, o interesse humano pela verdadeira dignidade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da liberdade humana, em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do reconhecimento do “outro” como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo.

Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal como também em nossa cotidiana vida comunitária (e familiar), em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática: o compromisso de ter no respeito pela dignidade do “outro” o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais com o outro e no qual sua presença é (e deve ser) sempre livre e igual. Com efeito, a responsabilidade para com o próximo, que emana de sua mera existência, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, da liberdade e da dignidade humana.

Assim que a promoção de uma cultura fundada na exaltação da dignidade humana e do respeito pelo próximo somente será possível com o apoio e o desenvolvimento de uma práxis que permita, ademais de situar no humano um valor incondicional, entender, justificar e lutar por uma cultura de liberdade, de igualdade material e de fraterna solidariedade. Isto é, da necessidade não somente de lutar por nossos direitos, mas também de assumir responsavelmente nossos deveres, de respeitarmos (desinteressadamente) o próximo como um fim em si mesmo, de um ardente desejo de compreender e outorgar sentido ao sofrimento humano e de aspirar por uma efetiva e legítima realização da justiça; ou, para dizer em termos mais modestos e realistas: de lutar contra toda e qualquer forma de injustiça.

Entendida assim, a primazia que joga a “dignidade humana” como critério fundante dos valores e princípios contidos na Constituição se converte desta maneira em garantia levantada pelo constituinte frente a um perigoso formalismo, como o da igualdade puramente formal. Para evitá-lo, este sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana, impõe que as normas, tanto constitucionais como de outra ordem, sejam criadas, interpretadas e aplicadas de forma que não colidam com os valores e princípios superiores, mas, pelo contrário, promovam sua efetiva realização, sempre respeitando a norma maior (CF).

Essa a razão pela qual a melhor doutrina constitucionalista se afirma no sentido de reconhecer o transcendental papel que está chamado a desempenhar, no contexto desse sistema de valores e princípios constitucionais, o princípio do respeito incondicional da dignidade humana. A tais princípios constitucionais se lhes reconhece um caráter normativo e vinculante, por meio dos quais se devem fundamentar e promover o desenho de um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível com os traços característicos da natureza humanos e destinados à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Desta maneira, cumprem também uma função pragmática e dinâmica, permitindo assim a adaptação dos preceitos constitucionais às realidades sociais cambiantes e às características individuais concretas. Em outras palavras, não somente hão de ser considerados parâmetros de constitucionalidade do resto das normas do sistema jurídico, senão também - principalmente tendo em conta seu peculiar talante de modelo ético-político aberto - como meios aptos a aportar valores de cidadania essencialmente úteis para tomar o direito como um instrumento de construção social e, muito particularmente, para equilibrar os desajustes e as injustiças geradas pela dinâmica da desigualdade social.

E porque a desigualdade quebra a comunidade, rompe os laços de fraternidade e desata, de um lado, a cobiça de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de muitos, estamos firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso da norma constitucional depende em grande medida do modo como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar esta perspectiva da dignidade humana em leis, estratégias (sociais, econômicas e políticas) e decisões jurídicas dirigidas a formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo as diferenças humanas, permita a cada um conviver (a viver com o outro) na busca de uma humanidade comum.

O mesmo é dizer que não se pode falar de dignidade da pessoa humana se isso não se materializa em suas próprias condições materiais de vida, com liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna e solidária, no contexto de um conjunto normativo abarrotado de valores e princípios que a asseguram de forma prioritária: combater as desigualdades reais e deixar a vida, na medida do possível, fluir livre e igualitariamente, ou seja, dignamente.

Isto implica, depois de tudo, a necessidade da adoção de uma série de medidas dirigidas a melhorar a qualidade de vida de certos grupos considerados desfavorecidos ou fragilizados com o objetivo de equiparar sua situação com a do resto da população não desfavorecida. Uma forma de discriminação positiva cuja finalidade seja a de tratar de diferente forma as distintas situações, em especial se a diferença implica condições sócio-econômicas, biológicas ou culturais desvantajosas; uma política “inclusivista” de que todos os indivíduos têm de contar como um fim em si mesmo e que incorpora já uma sorte de compromisso igualitário.

Significa dizer que a comunidade política é requerida não somente para tratar os indivíduos como iguais, senão também para criar as condições necessárias e as possibilidades reais para que essa igualdade material seja ( efetivamente) levada a cabo na “vida vivida”, no presente das coisas presentes, para usar a expressão de Agostinho de Hipona.

5.4. Desigualdade e discriminação positiva

Portanto, parece ser que a solução aos “problemas” a que nos referíamos no início deste artigo (de discriminação e de aparente contradição entre princípios constitucionais) consiste em tratar de alcançar um estado de coisas em que o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a desigualdade material entre os indivíduos, isto é, de não se (re) produzir a desigualdade quando seja possível eliminá-la, e que aquela que seja inevitável se minimize e grave com moderação aos membros individuais da sociedade – no caso, às mulheres. Porque nunca está demais repetir e insistir que falta de liberdade – de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir – é o que (ainda) sofrem muitas mulheres submetidas ao marido e todas aquelas desfavorecidas e discriminadas em grande parte de suas cotidianas relações de vida e que, ademais, ainda têm que suportar o estigma social da dependência de valores arcaicos, de crenças descaradamente misóginas e paroquianamente espúrias. Dito de outro modo, até que os “mais desiguais” não sejam liberados de sua miséria e sofrimento, todo e qualquer discurso acerca de cidadania, liberdade, igualdade e dignidade - enfim, sobre justiça - não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.

Isto, por si só, já seria o suficiente para justificar um compromisso mais específico do Estado com relação aos interesses e liberdade desses membros menos favorecidos da sociedade – sem dúvida, o aspecto mais importante da eqüidade – e o rechaço espontâneo e reflexivo da igualdade meramente formal. Do contrário, a persistir as versões tendenciosas, vazias e fragmentadas do princípio da igualdade - cuja gênese e funcionamento cabem situar na história evolutiva própria de nossa espécie -, em vez de olhar para o que a justiça designa e o que lhe constitui: a liberdade plena e a igualdade material; ou seja, ele se engana sobre a justiça, que o fascina, e desconhece o real e necessário: a dignidade da pessoa humana. Mas se nada disso for suficiente, talvez não seja nenhum exagero recordar que há poucas coisas mais perigosas e passíveis de perversa manipulação que a “igualdade meramente formal”.

Sobre o autor
Anderson Santos

Bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda – FOCCA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Olinda – FOCCA, como requisito necessário para obtenção de grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da Profª. Nicely Cursino.

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