A inserção pelo constituinte originário de normas de direito tributário na Constituição da República trouxe uma sensação de proteção sobre a ingerência do Estado no patrimônio do particular, porém, é factual que a necessidade de constantes reformas dessas normas por emendas constitucionais também ocasiona uma perene sensação de insegurança jurídica, então indaga-se, como justificar esse antagonismo?
Tudo deve ser analisado sob a ótica da Teoria da Constituição, pois é imprescindível no estudo do Direito Constitucional a tradicional classificação de Hermann Heller1, em normas materialmente constitucionais e formalmente constitucionais.
As normas constitucionais materiais exprimem o conteúdo básico e fundamental referente à composição e ao funcionamento da ordem política, pois do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição. (Nesse sentido: Paulo Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional, Malheiros Editores).
Já as normas constitucionais formais, por estarem imantadas de certo caráter político, manifestam a vontade do Poder Constituinte em conferir relevância e estabilidade a determinadas normas, ainda que não digam respeito diretamente a direitos fundamentais ou à estrutura do Estado, adjudicando assim a tais normas a forma constitucional, pelo simples fato de incluí-las na Constituição e pela vontade política de considerá-las entre as fundamentais do sistema jurídico. (Nesse sentido: Luis Roberto Barroso em seu Interpretação e Aplicação da Constituição, Editora Saraiva).
Pois bem, como explicitou Bonavides logo acima, todas as normas pertinentes “… à organização do poder, à distribuição da competência…” são normas materialmente constitucionais, ora, não há como negar que invariavelmente o disciplinamento de um arcabouço normativo de interferência do Estado, e o Sistema Tributário Nacional assim o é, no patrimônio privado para fomento de atividades públicas outras, distribuindo a competência do poder de tributar e impondo limites a esse mesmo Estado, nessa atuação frente aos Direitos Fundamentais, representa de forma inconteste a substancialidade dos preceitos basilares que cercam da organização de um Estado.
Afinal, o Estado, em tema de tributação, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional, cabendo ao Estado, atuar, desde que “respeitados os direitos individuais e nos termos da lei” (CF, art. 145, § 1º). Nesse sentido STF – HC 82.788, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-4-05, DJ de 2-6-06.
Tendo, argutamente observado a necessária tendência da constitucionalização das normas tributárias no direito comparado, o insigne piauiense e jurista Hugo de Brito Machado em estudo sobre o tema põe em destaque a importância da existência de um Direito Constitucional Tributário em diversos países, entre os quais na Alemanha, na Bélgica, em Portugal, na Espanha e em países na América Latina e cita o jurista espanhol Rubén O. Asorey: “El Derecho tributario debe, en forma substancial, su desarrollo y evolución al esquema esencial de la relación jurídica tributaria. (...) Ese núcleo esencial, objeto de los más profundos análisis y disquisiciones intelectuales, permitió la incorporación legislativa de la juridicidad de tales desarrollos dogmáticos, convirtiendo em anatema el principio de subordinación del administrado a un poder estatal situado en un plano superior y consagrando la plena sumisión de los dos sujeitos de la relación al mismo plano de igualdad.” (Hugo de Brito Machado em sua “A Supremacia Constitucional como Garantia do Contribuinte.”)2
Então, só é possível entender o porquê de haver este aparente antagonismo dentro de nosso sistema tributário constitucional no momento em que for compreensível que o Estado, limitado por sua própria carta organizacional frente aos direitos fundamentais para melhor acompanhar a maleabilidade econômica, necessita fazer as imprescindíveis alterações de seu texto respeitando os referidos limites a ele impostos que representam a segurança jurídica estabilizante trazida por uma constituição escrita e rígida como a brasileira. Nesse ínterim, ao tempo em que o poder constituído perfaz os adequados ajustes fiscais que os mercados econômicos, mundial, regional e interno necessitam, ratificam-se as palavras de Lassale ao pronunciar que o texto constitucional que não acompanha a evolução social nada mais é que uma folha de papel em branco.
Justifica-se assim, pelo exposto, o aparente e factual antagonismo existente entre a estabilidade fundamentalmente garantida e as reformas evolutivamente necessárias, pois, a capacidade de adaptação3 (constitucional) torna suportável e possível um e o mesmo modelo de ordem política, através das transformações das situações históricas e políticas, durante períodos de tempo mais largos.
NOTAS
1 Para um aprofundamento sistemático sobre o tema, veja-se por todos, Nagib Slaibi Filho, em sua obra Direito Constitucional, ed.Forense, 2ª ed. 2006, pags. 7-10.
2 MACHADO, Hugo de Brito. A supremacia constitucional como garantia do contribuinte . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 55,mar. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2715>. Acesso em: 01 abr. 2008
3 Reinholde Zippelius, Teoria geral do estado (Allgemeide Staalehre), 2ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984,p.36.