Para entendermos o propósito do presente ensaio, faz-se necessário trazermos à exposição a situação histórico-evolutiva em que se deu a efetiva aplicação dos princípios no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido Luis Roberto Barroso:
“...Ao longo do século XIX, com o advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação, o jusnaturalismo chega ao seu apogeu e, paradoxalmente, tem início a sua superação histórica. Considerado metafísico e anti-científico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do final século XIX (...) o Direito resultou no positivismo jurídico, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes (...) a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como um estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido (...) a superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética...”1
Nessa perspectiva evolutiva, os princípios sofreram uma transposição dentro do ordenamento que os conduziu ao centro do sistema, os princípios obtiveram o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata.
A moderna dogmática abona o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras, ambas diferenciam-se quanto à abstração e maior espectro de atuação de uma, frente a concretude e delineamento específico de aplicação da outra.
Cabe ao aplicador das normas-princípio atuar ponderativamente, já que na aplicação das normas-regras aplica-se o critério subsuntivo, decidindo, numa situação de colisão(de princípios), qual deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é, sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, competindo ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada. Todo esse processo cognitivo-aplicativo fundar-se-á na proporcionalidade ou razoabilidade.
DO PRINCIPIO DA LEGALIDADE
Miguel Seabra Fagundes já ensinava: “administrar é aplicar a lei de ofício”.2
Esta é sem dúvida uma das formas mais claras de visualização do entendimento tradicional de legalidade. Não obstante, tal visão, é tão anacrônica e ultrapassada quanto à de que o direito seria apenas um limite para o administrador.3
Deve ser a Constituição, seus princípios e especialmente seu sistema de direitos fundamentais, o elo de unidade a costurar todo o arcabouço normativo que compõe o regime jurídico administrativo, devendo assim atender à idéia de juridicidade administrativa (i) onde a atividade administrativa, via de regra, obedece à lei quando esta for constitucional; (ii) ou podendo encontrar fundamento direto na constituição, independente ou para além da lei; (iii) ou ainda legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais.4
Nesse sentido, é que podemos a título de exemplo apreciar dois casos julgados pelo Tribunal de Contas da União:
1) Decisão n. 215/99-Plenário; TC n. 930.039/1998-0 - Ao analisar a matéria, por meio da Decisão n. 215/99-Plenário, o egrégio Tribunal permitiu, em caráter normativo, que houvessem ruptura aos limites estabelecidos pela Lei n. 8.666/93, fugindo da legalidade estrita, desde que a alteração satisfizesse alguns requisitos, entendendo que, em casos excepcionais, era possível extrapolar os limites traçados pelos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei n. 8.666/93, conforme suas determinações. “O TCU ao firmar tal entendimento, teve em mira situações em que a observância estrita da lei colidisse com outros bens jurídicos, como os tutelados, por exemplo, pelo princípio da eficiência.” Portanto, para aquela Corte de Contas, “em determinadas situações, sempre excepcionais, poderia o princípio da legalidade curvar-se (sempre parcialmente) a outros princípios como os da finalidade e razoabilidade.”
2) Acórdão n. 159/03-Plenário; TC n. 006.821/2002-8 - No que se refere a esse caso, a Corte de Contas ao determinar a anulação da licitação com base no art. 48, inciso II, da Lei n. 8.666/93, fez valer o interesse da Administração Pública em obediência ao princípio da razoabilidade (não previsto na Constituição Federal, mas que norteia a administração pública por exigir que os atos não sejam apenas praticados com respeito às leis, mas que também contenham uma decisão razoável). Sempre devendo haver uma razoabilidade, adequação, proporcionalidade entre as causas que estão ditando o ato e as medidas que vão ser tomadas. Já o art. 49 da Lei n. 8.666/93 incorpora o conteúdo da Súmula 473 do STF (que autoriza a Administração a anular seus próprios atos, quando houver ilegalidades, ou revogá-los, por conveniência e oportunidade, respeitados os diretos adquiridos e ressalvada a apreciação judicial). Além desses casos um outro é apresentado, mas com base no princípio da eficiência, objeto da Decisão n. 519/1999-Plenário; TC 003.897/1999-0.
No caso (1) podemos visualizar a forma com que o aplicador da lei tem sua atuação legitimada perante o direito, ainda que não obedecendo os limites estritos e rígidos da lei, porém, com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais, no caso, o princípio da eficiência, utilizou-se do critério da ponderação para atender o conteúdo teleológico da lei, não expresso claramente em seu texto, mas perceptível ao cauteloso hermeneuta.
No caso (2) podemos visualizar a forma com que o aplicador da lei, encontra fundamento para sua atuação direto na constituição, independente ou para além da lei, como dito no inicio deste texto, decidindo como, numa situação de colisão(princípios), qual deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é, sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, competindo ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada.
NOTAS
1 BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direitobrasileiro. Cajur, Teresina, a. 1, n. 6, 28 out. 2005. Disponível em: <http://cajur.brinkster.net/artigos/arti_histdirbras.zip>. Acesso em:03 de fevereiro de 2009.
2 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005,p.03
3 COUTO E SILVA, Almiro. Poder discricionário no Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo nº 179/180, p. 53.
4 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 1ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 37-38