Da mutabilidade do mundo jurídico e a valoração do fato jurígeno.
O próprio conceito de direito positivo que "tem dimensão temporal, pois é direito promulgado, tendo vigência a partir de determinado momento histórico, perdendo-a quando revogado em determinada época. Reflete valores, necessidades e ideais históricos", (14) considera que o mundo jurídico é mutável pelo Poder Político, independentemente de não mudarem os fatos. Às vezes os fatos idênticos ou similares são valorados de forma diversa, surgindo uma nova ordem de juridicização, vale dizer de considerar o legislador em determinada época que as conseqüências jurídicas do fato previstas pela ordem anterior, não mais se justificam.
Já dissemos "O Direito quando visto do lado do Estado que ordena, impõe ou estatui, como norma de dever ser obrigatória e dotada de sanção, é chamado Direito Objetivo. É regra social obrigatória, escrita ou não, que regula todas as ações do homem em Sociedade- É a norma agendi. É mediante normas que os Estado mantém o equilíbrio social para resguardar os direitos e a liberdade das pessoas, delimitando suas atividades no constante interagir causador de perturbações geradas pelo natural conflitos de interesses decorrente da convivência em sociedade. Visto no entanto, sob o ângulo do indivíduo que tem o poder de postular, reclamar e defender para fazer valer a norma social colocada como proposição de um dever ser chama-se Direito Subjetivo" (15) . O direito é uma norma conforme a qual devemos nos guiar, é uma proposição de dever ser e por isso, abarca os fatos que considera jurídicos, enquanto vige, e não os fatos ocorridos fora desse limite.
A juridicização do fato in abstrato, é que leva à incidência da norma jurídica, desde que ele ocorra concretamente.
Como bem explica Mello (16) " A incidência da norma jurídica, em razão da natureza de suas disposições, pode ter efeitos diferentes da pura juridicização, quer dizer a norma jurídica pode incidir para produzir outras conseqüências que não apenas transformar em fato jurídico a parte relevante do seu suporte fático. Na análise das espécies se chega à evidência de que a norma jurídica pode incidir para (a) juridicizar (b) desjuridicizar (c) pré-excluir a juridicização (d) invalidar (e) deseficacizar."
A lição serve também para a questão aqui estudada. Realmente, se aprovada a nova redação do artigo 618 da CLT, o mundo jurídico passará a ser outro a partir da entrada em vigor da nova disposição, transmutando diversas normas imperativas em normas dispositivas, em razão da valoração da autoridade estatal. Não se trata pois de juridicização ou desjuridização, mas sim de desinvalidação. Realmente, os fatos jurídicos praticados à partir da nova ordem legislativa que encaixem-se nos suportes fáticos previstos, não mais se sujeitarão à declaração de nulidade ou serão passíveis de anulação, se houver negócio jurídico.
Ocorrido o negócio jurídico válido, pela exclusão do ordenamento da imperatividade e cogência, os fatos que deverão ser considerados pelo aplicador do direito , são aqueles que ocorrerem durante a vigência da nova norma, ainda que anteriormente já houvesse caso julgado obrigando a abstenção, ou obrigação assumida através de Termo de Adequação de Conduta, porquanto, a sentença ou o título extrajudicial que obrigou a conduta continuada, só avaliaram os fatos pertencentes à ordem jurídica vigente à época. O mesmo raciocínio serviria caso tivesse ocorrido a desjuridicização.
Estas as razões que levaram os estudiosos a só considerar os fatos pretéritos e pendentes, excluindo os fatos futuros, quando se debruçaram sobre o estudo do direito intertemporal, para esclarecimento do que é ou não direito adquirido.
Os fatos futuros sempre são regidos pela lei nova.
E a " coisa julgada não impede que lei nova passe a reger diferentemente os fatos ocorridos a partir da sua vigência" como já teve a oportunidade de se manifestar o Supremo Tribunal Federal. (17)
Não fosse assim, estar-se-ia ferindo o princípio da legalidade, impondo ao jurisdicionado a prática ou abstenção de atos não proibidos por lei ( C.F. Art. 5º , II – "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"), e também o princípio da isonomia ( C.F. Art. 5º" Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes"), pelo tratamento desigual em situações idênticas, às empresas que firmaram acordo, ou tiveram sentenças com força de coisa julgada, contra si, embasados no direito objetivo anterior.
É certo que o respeito a coisa julgada é garantia constitucional, mas como diz Canotilho (18) " As relações de complementariedade, de condicionamento e conjugação entre os princípios fundamentais explicam a necessidade de estabelecer operações de concordância prática entre eles. A especificidade, conteúdo, extensão e alcance próprios de cada princípio não exigem nem admitem o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos outros, antes reclamam a harmonização dos mesmos, de modo a obter-se a máxima efetividade de todos eles."
Conclusões
- As sentenças já trânsitas em Ação Civil Pública e os Termos de Adequação de Conduta, constituem coisa julgada material e atos jurídicos perfeitos, respectivamente, portanto executáveis em caso de descumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, incidindo astreintes fixadas em um e outro, até a efetiva prática do ato ou abstenção da conduta lesiva.
- A maioria desses títulos, na justiça obreira obrigam a prática ou omissão de condutas continuadas pelas empresas - abster-se de empregar menores de 16 anos; não praticar jornada alentada superior a duas diárias; conceder intervalo intrajornada de no mínimo uma hora; conceder intervalo hebdomadário; abster-se de terceirizar atividade-fim; abster-se de exigir a anotação nos cartões de ponto de jornada irreal, etc.
- Por prever a coisa julgada ou o compromisso assumido através de Termo de Adequação de Conduta, perante o Ministério Público do Trabalho, a prática de atos ou abstenção sem limite temporal, a lei nova que retire do mundo jurídico estes fatos como lesivos ao interesse coletivo dos trabalhadores, deverão ser considerados fatos novos, e por isso, indenes ao julgado ou à obrigação assumida, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal : "a coisa julgada não impede que lei nova passe a reger diferentemente os fatos ocorridos a partir da sua vigência"
- Se a nova lei transmuta direitos irrenunciáveis em renunciáveis, ou a norma cogente em dispositiva, a parte que se obrigou, ou teve contra si a sentença imutável, imodificável e irrevogável, poderá sem ofender o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada, dispor com a parte em conflito, ainda que protegida pelos títulos judiciais ou extrajudiciais mencionados, diferentemente, desde que o ordenamento da época o permita.
- Tanto a coisa julgada, como o título extrajudicial, nestes casos, sofrem uma limitação temporal para a fixação da extensão e termo final do cômputo das astreintes, se não cumprido o comando ou a obrigação assumida: a) o dia imediatamente anterior ao do início da vigência da nova lei. b) O dia imediatamente anterior ao início de vigência Contrato ou Convenção Coletiva, celebrado de acordo com a nova norma. Em qualquer desses casos a prática ou abstenção do ato, não mais pode ser exigida pela via da ação de execução.
- Se a parte vinha cumprindo o comando sentencial, ou a obrigação assumida no Termo de Compromisso, poderá, a partir da nova lei, desconsiderar aqueles títulos e passar a reger seus atos como se eles não existissem, como de fato desaparecem realmente se conflitantes com a nova ordem normativa.
- Desnecessário a propositura de Ação Revisional, porquanto a serve para a sanação lógica, entre o real e o comando sentencial, na ocorrência de modificação do estado de fato sem considerar a alteração da norma, ou mesmo de Ação Rescisória, porque tem por finalidade cindir ou desconstituir a sentença nula que transitou, tão somente nos casos estritamente previstos em lei considerando máculas segundo o ordenamento imodificado.
- Se a pretensão for a execução plena, o juiz por meio dos embargos à execução ou alegação simples, sem a garantia do juízo (exceção de pré-executividade), deve declarar a inexigência da abstenção ou prática de atos futuros, ainda que proibidos anteriormente pela coisa julgada, e limitar o "quantum" das astreintes devidas, tendo como limite temporal do cálculo o dia em que houve a desjuridicização, pela nova norma, ou do início de vigência do contrato, se houve simples desinvalidação com a transformação da norma imperativa em dispositiva.
NOTAS
- "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;" - BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1998/ obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto e Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt. 19. ed. atual. e ampl., São Paulo: Saraiva 1998. "Art. 6° - A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada." – BRASIL. Código Civil. Organização dos textos, notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 46. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
- COUTURE, Eduardo. Fundamentos del Derecho Processal Civil. 14. ed., Buenos Aires: Depalma, 1987, p.407.
- LIEBMAN, Enrico Tullio. Anotações em "Eficácia e Autoridade da Sentença". 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p.50.
- PASSOS, J.J. Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 10, Tomo I, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 233.
- COUTURE, Eduardo, op. cit, p. 347.
- GIDI, Antonio. Coisa Julgada e Litispendência Em Ações Coletivas. 1.ed., São Paulo: Editora Forense, 1995, p.57/61.
- idem, p.73
- CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites Objetivos da Coisa julgada. 1.ed., Rio de Janeiro: Aide Editora, 1988, p. 65.
- SANTOS, Moacir Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, Vol. IV, p. 391.
- idem, p. 447
- MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 103 e 105.
- ob. cit. p.447.
- GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 14. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, p.79.
- VALÉRIO, J. N. Vargas. A decadência própria e imprópria no direito civil e no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1999, p.23.
- MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 5. ed., atual. e aum., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 69.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. Funcionário Público, aposentadoria, proventos. A coisa julgada não impede que lei nova passe a reger diferentemente os fatos ocorridos a partir de sua vigência. Dessarte, não exclui a incidência do art. 96 da Constituição de 1967, a existência de julgado que reconheceu, com base em legislação ordinária anterior, por ele revogada, o direito a equiparação para efeito de remuneração de funcionário público. Recurso Extraordinário conhecido e provido. Relator: Ministro Xavier de Albuquerque. Brasília 02.03.1979. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=SJUR&s1=90518&u=/netahtml/jurisp.html &Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=BLANK&p=1&r=1&f=G&l=20>. Acesso em: 07 dez. 2001.
- CANOTILHO, J.J. Fundamentos da Constituição. 7.ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 75.
Bibliografia
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PASSOS, J.J. Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 10, Tomo I, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 288.
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VALÉRIO, J. N. Vargas. A decadência própria e imprópria no direito civil e no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1999, p.142.