1. Introdução.
A prestação de serviços públicos consiste em atividade econômica – assim considerada em sentido amplo – cuja titularidade da sua prestação é detida pelo Estado, segundo a repartição de competências federativas constantes da CRFB/1988.[1]
A prestação dos serviços públicos pode-se realizar de forma direta (hipótese em que cada ente da Federação os executa por meio dos seus próprios órgãos), ou por meio de sua delegação a terceiros (particulares ou entes paraestatais – empresa pública ou sociedade de economia mista) ou, ainda, por meio de outorga às autarquias públicas.[2]
No campo da delegação de serviço público, a transferência de sua execução a terceiros se dá precipuamente por meio de instrumentos de concessão e permissão,[3] ambos de natureza contratual. Nada obstante, pode dar-se, ainda, por meio de delegação[4] unilateral do Estado ao particular, o que se perfaz mediante ato administrativo autorizativo[5] para que o particular execute a atividade sob condições determinadas de forma unilateral pelo ente público delegante.
Nesse cenário, o presente módulo objetiva abordar a prestação indireta de serviço público delegado ao particular por meio do instrumento de autorização administrativa, indicando as controvérsias doutrinárias que persistem quanto ao tema. Será nesse campo, portanto, que se desenvolverá a presente temática.
1.2. A polêmica acerca da definição dos serviços públicos federais.
A definição das atividades econômicas (aqui consideradas em seu sentido latu) consideradas como serviço público é tema sobre o qual tem se debatido a doutrina, sem que se tenha chegado a um consenso acerca da questão. A celeuma se mostra presente especialmente no que concerne ao reconhecimento – ou não – como serviço público, das atividades econômicas indicadas constitucionalmente como de competência da União Federal, bem assim do reconhecimento – ou não – da autorização como instrumento apto à delegação dos serviços públicos.
Assim sendo, mostra-se fundamental perquirir o que a doutrina aponta acerca da matéria.
1.2.1. A distinção entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito – Princípio da subsidiariedade.
Eros Roberto Grau fundamenta a importância em se distinguir o serviço público da atividade econômica em sentido estrito:
É que, por um lado, a Constituição de 1988 aparta, a ambos, conferindo tratamento peculiar, atividade econômica e serviço público. No art. 173 enuncia as hipóteses em que é permitida a exploração direta de “atividade econômica” pelo Estado, além de, no §1º deste mesmo art. 173, indicar regime jurídico a que se sujeitam empresa pública, sociedade de economia mista e suas subsidiárias que explorem “atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços”. No art. 175 define incumbir ao Poder Púbico a prestação de “serviços públicos”. Além disso, o art. 174 dispõe sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador da “atividade econômica”. A necessidade de distinguirmos atividade econômica e serviço público é assim, no quadro da Constituição de 1988, inquestionável.[6]
Dentro desse diapasão, Marçal Justen Filho conclui que:
Isso significa que há um segmento de atividades econômicas subordinadas ao princípio da livre iniciativa (art. 170 e parágrafo único da Constituição). Essas atividades não são de titularidade do Estado, que as desempenhará apenas em casos excepcionais [...]. Mas o fundamental é que o art. 173, §1º, da Constituição estabelece que, nesses casos, o Estado deverá subordinar-se ao regime próprio das empresas privadas. [...] Já as atividades de serviço público são de titularidade do Estado e se sujeitam sempre ao regime de direito público. Estão reservadas ao Estado, mas poderão ser delegadas aos particulares por meio de concessão ou permissão. Não se aplica a elas, então, o princípio da livre iniciativa, tal como não serão desempenhadas sob regime de direito privado.[7]
Alexandre Santos de Aragão demonstra que o serviço público não pode ser justificado pelos interesses fiscais e estratégicos do Estado, hipótese em que a atividade só poderá ser explorada pelo Estado em caráter subsidiário e nas hipóteses doa art. 173 da CRFB/1988 (salvo tratar-se de monopólio estatal previsto como tal constitucionalmente).
O ponto fulcral do qual devemos partir é a relação entre serviço público e atividade econômica. Já manifestamos nossa opinião, afinada com a doutrina e jurisprudência majoritárias, de que a Constituição de 1988 distingue claramente o serviço público da atividade econômica explorada pelo Estado, que em seu conjunto constituem as atividades econômicas lato sensu. A atividade econômica lato sensu destina-se à circulação de bens e/ou de serviços do produtor ao consumidor. O serviço público é a atividade econômica lato sensu que o Estado toma como sua em razão da pertinência que possui com necessidades ou utilidades coletivas. Há atividades econômicas exploradas pelo Estado, em regime de monopólio ou não, que possuem, naturalmente, interesse público, mas que não são relacionadas diretamente com o bem estar da coletividade, mas sim com razões fiscais, estratégicas ou econômicas (p.ex., o petróleo, as loterias, em alguns países o tabaco, os cassinos, etc.). O objetivo da publicatio há de ser o atendimento direto de necessidades ou utilidades públicas, não o interesse fiscal ou estratégico do Estado, hipóteses em que estaríamos diante de atividades econômicas stricto sensu, que podem ser monopolizadas pelo Estado apenas nos casos taxativamente estabelecidos na Constituição, e que, ainda que em regime de concorrência com a iniciativa privada, só podem ser exploradas pelo Estado se verificados os requisitos do caput do art. 173 da Constituição Federal.[8]
No mesmo sentido ensina Luís Roberto Barroso:
A exploração da atividade econômica, por sua vez não se confunde com a prestação de serviços públicos, quer por seu caráter de subsidiariedade, quer pela existência de regras próprias e diferenciadas. De fato, sendo o princípio maior o da livre-iniciativa, somente em hipóteses restritas e constitucionalmente previstas poderá o Estado atuar diretamente, como empresário, no domínio econômico. Tais exceções se resumem aos casos de: a) imperativo da segurança nacional (CF, art. 173, caput); b) relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput); c) monopólio outorgado à União (v.g., CF, art, 177).[9]
José Cretella Júnior propugna que a distinção entre serviço público e atividade econômica resultará da opção política do Estado:
A distinção entre atividade privada e atividade pública não resulta, pois, em princípio, da natureza das coisas. Salvo raras exceções, situadas nos extremos da escala, não há atividades intrinsecamente privadas, nem atividades intrinsecamente públicas. A consideração de uma atividade como serviço público, em relação à atividade privada, resulta de um ato de vontade do Estado: são atividades de serviço público aquelas que as autoridades competentes, num dado momento histórico, decidem considerar como tais. Se o Estado, em dado momento, por intermédio de autoridades políticas ou administrativas, decide que determinada atividade é serviço público, isto significa que tal atividade colocada sob a tutela do Estado é submetida a regime jurídico de direito público derrogatório e exorbitante do direito comum.[10]
De qualquer sorte, o que merece ser sublinhado a esta altura é que as atividades econômicas consideradas em seu sentido latu, podem denotar duas categorias de prestação Estatal: o serviço público e a atividade econômica em sentido restrito (essa sujeita ao regime de direito privado - posto que de livre iniciativa - e cuja exploração só será permitida ao Estado em caráter subsidiário à iniciativa privada nas hipóteses do art. 173 da CRFB/1988, salvo tratar-se de atividade sob monopólio estatal previsto constitucionalmente).
1.2.2. O elenco das atividades constantes do inciso XII, do art. 21, da CRFB/1998.
A doutrina divide-se entre aqueles que entendem que o elenco de atividades do inciso XII, do art. 21, da CRFB/1998 - que cabe à União explorar diretamente ou mediante autorização, permissão ou concessão – constitui serviço público e entre aqueles que propugnam que tal elenco traduz-se em mera repartição de atribuições federativas, não implicando em reconhecimento constitucional da atividade como serviço público.
Eros Roberto Grau encontra-se entre aqueles que entendem que as atividades constantes do inciso XII, do art. 21, da CRFB/1988 não podem ser compreendidas necessariamente como serviço público.
Quanto aos serviços públicos do tipo privativo, ao texto do art. 21 da Constituição de 1988 extraímos a conclusão de que há serviço público, de titularidade da União, na prestação dos serviços referidos nos seus incisos X, XI e XII; ao texto do §2º do art. 25, a conclusão de que há serviço público na prestação de serviços locais de gás canalizado; ao texto do art. 30, V, a conclusão de que há serviço público na prestação de transporte coletivo local. Importa, contudo, verificarmos se, efetivamente, basta a mera leitura do texto constitucional para identificarmos determinadas atividades como concernentes a serviços públicos por definição constitucional. Pois é certo que a Constituição encerra todos os elementos e critérios que permitem a identificação de quais atividades empreendidas pelo estado consubstanciam serviço público. [...] Daí a verificação de que a mera atribuição de determinada competência atinente à prestação de serviços ao estado não é suficiente para definir essa prestação como serviço público. Cumpre verificar, sempre, quando isso ocorra, se a atribuição constitucional do exercício de determinada competência ao Estado atende a imposição dos interesses do trabalho, no seu confronto com os interesses do capital, ou se, pelo contrário, outras razões determinaram a atribuição desse exercício pelo Estado. No caso, assim como naquele do art. 177 – monopólio do petróleo e do gás natural -, razões creditadas aos imperativos da segurança nacional é que justifica a previsão constitucional de atuação do Estado, como agente econômico, no campo da atividade econômica em sentido estrito. Não há pois, aí, serviço público. É sob detidos cuidados, pois, que se deve tomar como indicativa da elevação de algumas parcelas da atividade econômica em sentido amplo à categoria de serviço público a circunstância de o texto constitucional atribuir a sua exploração á competência do Estado. Daí, porque, v.g., a afirmação isolada de que o texto constitucional eleva determinadas parcelas da atividade econômica em sentido amplo à categoria de serviço público (os chamados serviços públicos por definição constitucional) é equívoca, pois inúmeras vezes ocorre incluírem-se tais parcelas na categoria das atividades econômicas em sentido estrito.[11]
José dos Santos Carvalho Filho filia-se à corrente que se opõe ao entendimento de que o elenco do inciso XII, do art. 21 da CRFB/1988 constitua indicação de serviço público de competência da União.
Costuma-se fazer remissão ao art. 21, XII, da CF, para justificar a dita autorização de serviço público. Assim, porém, não nos parece. O art. 21 da CF dá competência à União Federal para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, algumas atividades, como serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens, navegação, transportes etc. Essas atividades, contudo, nem sempre são típicos serviços públicos; algumas vezes são exercidas por particulares no próprio interesse destes, ou seja, sem que haja qualquer benefício para certo grupamento social.[12]
Marçal Justen Filho coloca-se na posição daqueles que entendem que o elenco das atividades antes referidas somente se constituirá em serviço público no caso de guardar um elo de pertinência com os direitos fundamentais, de forma tal que a prestação da atividade resulte no oferecimento, aos administrados, de serviço essencial a sua existência. Nessa concepção, entende que tais atividades (ou mesmo outras ali não referidas) poderão ou não consubstanciar serviço público - cuja prestação incumbirá ao Estado – dependendo da essencialidade que sua prestação guarde para a coletividade considerada como um todo. Afasta-se, portanto, da noção de que as atividades constantes do inciso XII, do art. 21, da CRFB/1988, pelo simples fato de ali estarem designadas, possam ser entendidas - e recebidas pelo ordenamento jurídico - como serviço público.
Reputa-se que as atividades referidas nos diversos incisos do art. 21 da Constituição poderão ou não ser qualificadas como serviços públicos, de acordo com as circunstâncias. Existirá serviço público apenas quando as atividades referidas na Constituição envolverem a prestação de utilidades destinadas a satisfazer direta e imediatamente os direitos fundamentais. Se houver cabimento de oferta de utilidades desvinculada da satisfação dos direitos fundamentais, existirá uma atividade econômica em sentido estrito (ou um serviço de interesse coletivo). [...] É pacífico que o elenco do art. 21 tem de ser interpretado no sentido de que haverá serviço público somente se presentes alguns requisitos específicos e determinados – sobre os quais aludido art. 21 silencia. Exige-se o oferecimento de utilidades a pessoas indeterminadas, a exploração permanente da atividade e outros requisitos fixados em lei ordinária. Portanto, não basta a existência da norma constitucional para o surgimento do serviço público. Mas ainda, a lei ordinária pode estabelecer que algumas atividades, subsumíveis ao modelo constitucional, não serão serviço público, e nisso não haverá qualquer inconstitucionalidade. [...] A interpretação é corroborada por um outro elemento literal, de não pequena relevância. Os incisos X, XI e XII do art.21 se referem à competência da União para outorgar concessão, permissão ou autorização para o desempenho daquelas atividades. [...] Ademais, as disposições constitucionais referidas (em especial o art. 21) não se destinam a diferenças de serviço público e atividade econômica em sentido restrito. Sua finalidade é promover a discriminação de competências entre os diversos entes federais. A disciplina da atividade econômica (em sentido amplo) não foi consagrada no art. 21, mas em outro Titulo Constitucional. [...] não se pode deixar de atentar para a finalidade dos diversos dispositivos constitucionais. [...] Por fim, essa sistemática foi admitida expressamente pela Constituição quanto a serviços públicos de elevado grau de essencialidade. No Título VIII – Da Ordem Social, inúmeros dispositivos reconhecem que os particulares são investigados na autonomia de desenvolverem sob regime de direito privado (fortemente regulado), atividades equivalentes ao serviço público. [...] Esses serviços públicos sociais e culturais são tão ou mais essenciais que os ditos comerciais e industriais. Não teria cabimento que a solução constitucional para os serviços públicos sociais e culturais fosse diversa daquela contemplada para os serviços comerciais e industriais. [...] Em suma, cabe à lei ordinária determinar a publicização de certa atividade e as hipóteses em que configurará serviço público. Isso não equivale a reconhecer uma autonomia ilimitada para o legislador ordinário. Não é indiferente para a Constituição que as atividades referidas os incisos X a XII do art. 21 sejam tratadas como serviço público ou como atividade econômica em sentido restrito. Tese dessa ordem é indefensável e infringe os arts. 170, 173 e 175 da Constituição. A Constituição determinou que as atividades referidas no art.21, X a XII, serão qualificadas como serviço público quando estiver presente o pressuposto necessário: a satisfação imediata de direitos fundamentais.[13]
Em primeiro lugar, a interpretação literal do art. 21 conduziria a resultados indefensáveis. Considere-se, para exemplificar, o dispositivo do art.21, XII, “a”. Ali se determina que compete a União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Se esse dispositivo impusesse a qualificação como serviço público de toda e qualquer atividade relacionada à radiodifusão sonora e de sons e imagens, o resultado seria despropositado. Qualquer atividade de transmissão de som por meio de ondas de rádio seria um serviço público. Assim não é, conforme interpretação mansa e pacífica. Mesmo os defensores da tese de serviços públicos por inerência constitucional reconhecem que nem todos os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens são serviços públicos. Idêntica a interpretação prevalece a propósito de todas as previsões contempladas no art.21.[14]
Nada obstante, parte da doutrina entende que a repartição de competências do art. 21, XII, é indicativa da natureza de serviço público atribuído à atividade. Nesse sentido podem ser referenciados:
Hely Lopes Meirelles: “A Competência da União, em matéria de serviços públicos se limita aos que lhe são constitucionalmente reservados (art.21), [...] serviços há, porém, que são de competência comum das quatro entidades estatais (art. 23) [...]”[15]
José Afonso da Silva afirma “que não cabe titularidade privada nem mesmo sobre os serviços públicos de conteúdo econômico”[16] indicados no art. 21, XII, da CFRB/1988.
Dinorá Adelaide Musetti Grotti assim propugna:
No art. 21 encontra-se referência a serviços de titularidade da União nos seus incisos X [...]; XI [...]; XII, letras “a” a “f” [...]; XXIII [...] A segunda é que o art. 21 lista atividades que somente podem ser desempenhadas diretamente pela União ou mediante autorização, permissão ou concessão, o que importa necessariamente no reconhecimento de que são serviços públicos, já que onde não existe serviço público próprio do Estado, não cabe falar em concessão e permissão como formas de prestação. Essa conclusão é ainda forçada pelo art. 66 ADCT, que se reporta aos serviços públicos de telecomunicações.[17]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, no mesmo sentido:
[...] é o Estado, por meio da lei que escolhe quais atividades que, em determinado momento, são consideradas serviços públicos; no direito brasileiro, a própria Constituição faz essa indicação nos artigos 21, incisos X, XI, XII e XXIII, e 25, § 2°, alterados, respectivamente, pelas Emendas Constitucionais 8 e 5, de 1995; isto exclui a possibilidade de distinguir, mediante critérios objetivos, o serviço público da atividade privada; esta permanecerá como tal enquanto o Estado não assumir como própria; [...][18]
Celso Antônio Bandeira de Mello, também se encontra dentre aqueles que entendem que as atividades constantes do inciso XII, do art, 21, da CRFB/1988, são, em regra, serviço público:
A Carta Magna do País, já indica, expressamente, alguns serviços antecipadamente propostos como da alçada do Poder Público Federal. Serão, pois, obrigatoriamente serviços públicos (obviamente quando volvidos à satisfação da coletividade em geral) os arrolados como de competência das entidades públicas.[19]
Alexandre Santos de Aragão, buscando justificar a aptidão do instrumento autorizativo como meio de delegação de serviço público, identifica este em duas categorias distintas: o serviço público propriamente dito (aquele delegado ao particular por meio de concessão e permissão); e o serviço público impróprio (aquele que embora de titularidade particular, sujeita-se a uma regulação estatal de natureza ‘autorizativa-operacional’):
O que podemos constatar então, é que a Constituição Federal deu certa margem de discricionariedade ao Legislador em relação às atividades enumeradas nos incisos X a XII do art. 21 para, diante principalmente das evoluções tecnológicas propiciadoras da concorrência e por força do Princípio da Proporcionalidade, caracterizá-las como serviços públicos propriamente ditos, e, portanto, de titularidade exclusivamente estatal, ou como serviços públicos impróprios ou virtuais, ou seja, como atividades privadas sujeitas a uma regulação de natureza autorizativo-operacional.[20]
Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma que:
E como, efetivamente, todo poder estatal e, por isso, toda competência funcional que dele decorre, haverão de estar formalmente definidos na Carta Magna e totalmente nela contidos, não podendo o legislador ordinário ampliá-los ou reduzi-los sob hipótese alguma, este conceito instrumental do Estado Democrático de Direito suporta, por sua vez, na mesma linha, a construção de um conceito instrumental dos serviços públicos e não mais, conceitos legalistas ou paternalistas, apoiados na mítica idéia de supremacia do interesse público. [...] Assim, no Brasil, os serviços públicos, bem como as respectivas competências para prestá-los, estão todos expressos como funções administrativas, na Constituição de 1988, seja explicitamente, como nos arts. 21, 25, 30 e dispositivos extravagantes dos arts. 194, 196, 200, 201, 203, 205, 208, 211 e 223, seja implicitamente, como os que sejam deles derivados e, ainda, todos os demais, que necessitem ser prestados em regime de exploração de atividade econômica.[21]
O que se constata, portanto, diante da doutrina apontada, é que o elenco de atividades constantes do art. 21 da CRFB/1988 representa, para alguns, critério suficiente para se extrair as atividades econômicas titularizadas pelo poder público (e assim exploradas pelo Estado na qualidade de serviço público), enquanto que, para outra parte da doutrina tais atividades só se configurarão como serviço público se guardarem - e enquanto guardarem - um elo com as necessidades existenciais da população, o que se poderá apurar por meio de seu vínculo de pertinência com os direitos fundamentais.
1.2.3. Definição de serviço público.
Da adoção de uma ou de outra posição acerca do elenco das atividades constantes do art. 21 da CRFB/1988 resulta, ainda, o conceito que se deve atribuir ao serviço público que, por derradeiro também não encontra consenso na doutrina como se verá a seguir. De tudo isso resulta, por sua vez, a polêmica que se estabeleceu acerca da aptidão ou não do instrumento da autorização para atuar como meio do Estado delegar serviço público à execução pelo particular.
A matéria merece ser iniciada pela classificação de serviço público apresentada por Hely Lopes Meirelles:
Serviços públicos: propriamente ditos, são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado. [...] Serviços de utilidade pública: são os que a Administração, reconhecendo sua conveniência (não essencialidade, nem necessidade) para os membros da coletividade, presta-os diretamente ou aquiesce em que sejam prestados por terceiros (concessionários, permissionários ou autorizatários), nas condições regulamentadas e sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração dos usuários. [...] No primeiro caso (serviço público), o serviço visa a satisfazer necessidades gerais e essenciais da sociedade, para que ela possa subsistir e desenvolver-se como tal; na segunda hipótese (serviço de utilidade pública), o serviço objetiva facilitar a vida do individuo na coletividade, pondo à sua disposição utilidades que lhe proporcionarão mais conforto e bem-estar. [...] [22]
Dinorá Adelaide Musetti Grotti propugna que o serviço público será aquele que resultar da repartição de competências previstas constitucionalmente.
(...) não há um serviço público por natureza ou por essência. Só o serão as atividades que estiverem definidas na Constituição Federal – ou na própria lei ordinária, desde que editada em consonância com as diretrizes ali estabelecidas - decorrendo, portanto, de uma decisão política. (...) a competência para a prestação de serviços públicos decorre da repartição de competências prevista na Lei Maior.[23]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que serviço público será “(…) toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.”[24]
Marçal Justen Filho entende que o serviço público será identificado pelo seu vínculo com os direitos fundamentais:
Mas o serviço público é o desenvolvimento de atividades de fornecimento de utilidades necessárias, de modo direto e imediato, à satisfação dos direitos fundamentais. Isso significa que o serviço público é o meio de assegurar a existência digna do ser humano. O serviço de atendimento a necessidades fundamentais e essenciais para a sobrevivência material e psicológica dos indivíduos. Há um vínculo de natureza direta e imediata entre o serviço público e a satisfação de direitos fundamentais. Se esse vínculo não existir, será impossível reconhecer a existência de um serviço público. A advertência é relevante porque há atividades estatais que não se orientam a promover, de modo direto e imediato, os direitos fundamentais. Essas atividades não são serviço público e, bem por isso, não estão sujeitas ao regime de direito público. [...] O serviço público destina-se ao atendimento de necessidades de sujeitos indeterminados. Trata-se de um serviço público em geral. Não é serviço público a atividade em que os benefícios não sejam oferecidos a um número indeterminado de potenciais beneficiários. [...] A atividade de serviço público é um meio de realizar fins disponíveis para a comunidade. Os direitos fundamentais não podem deixar de ser realizados. Por isso, as atividades necessárias à sua satisfação direta e imediata são subordinadas ao regime de direito público. A atividade de serviço público é subordinada ao regime de direito público como conseqüência de sua natureza funcional. Há um fim a ser atingido, o que exige a outorga dos meios necessários. O regime de direito público é o meio formal para assegurar a satisfação dos direitos fundamentais. [...] Alguns autores têm cogitado de serviços públicos prestados sob regime de direito privado, o que se traduziu concretamente na regulação dos serviços de telecomunicação. Rigorosamente, serviço público sob regime de direito privado é uma contradição em termos. A aplicação do regime de direito privado desnatura o serviço público. A expressão serviço público sob regime de direito privado indica serviços privados subordinados a uma regulação jurídica intensa.[25]
Uma questão fundamental, portanto, reside em determinar quando e por que uma atividade pode (ou deve) ser considerada serviço público e, desse modo, submeter-se a um regime jurídico peculiar. [...] Certa atividade é qualificada como serviço público em virtude de dirigir-se à satisfação direta e imediata de direitos fundamentais. [...] Em segundo lugar, a qualificação de uma atividade como serviço público exclui a aplicação do regime próprio do direito privado. [...] Quanto mais amplo o universo dos serviços públicos, menor é o campo das atividades de direito privado. E a recíproca é verdadeira. [...] Discutir serviço público conduz a enfrentar questões políticas e jurídicas essenciais. Trata-se de definir a função do Estado, seus limites de atuação e o âmbito reservado à livre iniciativa dos particulares. [...] A instituição de um serviço público depende do reconhecimento jurídico da pertinência daquela atividade para a satisfação dos direitos fundamentais. Costuma-se aludir a publicatio ou publicização para indicar o ato estatal formal necessário à qualificação de uma atividade como serviço público. Esse ato de publicização deverá constar de uma lei. A instituição de um serviço público por meio de ato administrativo é ilegal. Essa consideração é de extrema relevância porque significa que, na ausência da publicização legislativa, a atividade não é considerada serviço público, presumindo-se sua qualificação como atividade econômica em sentido restrito.[26]
Ruy Cirne Lima, ao pensar o serviço público, assim o define:
Serviço público é todo o serviço existencial, relativamente à sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado, que, por isso mesmo, tem de ser prestado aos componentes daquela, direita ou indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa administrativa. [...] Tais serviços são, realmente reputados existenciais relativamente à sociedade; não se compreenderia tamanho rigor de direito para assegurar-se a só conveniência, conforto ou recreio dos individuais ou da coletividade. [...] Determinado, porém, que o serviço público seja todo serviço existencial, relativamente à sociedade, fica, não obstante, por determinar o que se há de entender-se por existencial. A condição de existência relativamente à sociedade, pela qual o serviço público se caracteriza, filia-lhe a noção ao conceito de utilidade pública, no qual se sub-sume tudo quanto se haja por essencial ao bem do indivíduo, ao bem da coletividade, e a própria sociedade, como bem em si mesma. [...] No conceito de utilidade pública encontrar-se-á, portanto, implícita, a noção de serviço essencial.[27]
Contudo, a noção de essencialidade guarda subjetividade e buscando esclarecer o seu significado, Marcos Juruena Villela Souto esclarece que:
Pode-se concluir que o conceito de “essencialidade” é estritamente político, sendo necessária uma decisão que a defina, tanto para fins de “continuidade”, como para fins de “compulsoriedade”, de modo a exigir o exercício do poder de império do Estado para a prestação do serviço público. Tal decisão vai depender de lei, haja vista que criará a obrigação de utilização e do custeio do serviço.[28]
Eros Roberto Grau reforça sua posição ao aproveitar-se de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal – em julgamento do qual participou - no qual ficou decido que a prestação de transporte aquaviário de mercadoria não é serviço público a que incumbe ao Estado prestar, tendo em vista que não se constitui em serviço essencial a existencialidade da coletividade.[29]
Suponha-se tenha que a União deixado de prestar serviços de transporte via fluvial, atividade que, enquanto empreendida por determinada empresa estatal federal, permitia o transporte de produtos agrícolas. O exemplo de que me sirvo ensejou, recentemente, debate no Supremo Tribunal Federal a propósito da caracterização dessa atividade como serviço público ou não.
Lembro dizer o art. 21, XII, “d”, da Constituição de 1988, o seguinte: “Art. 21. Compete à União: [...] XII – explorar, diretamente ou mediante autorização concessão ou permissão: [...] d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território”.
A mera leitura do preceito constitucional poderia levar-nos á conclusão de que estamos, no caso – serviços de transporte por via fluvial em trajeto que transpõe os limites de um Estado -, diante de serviço público de competência da União.
Sucede que, no caso, a empresa estatal federal prestava fundamentalmente serviços de transporte fluvial de produtos agrícolas, não sendo possível sustentarmos – o exemplo, na versão que dele tomo, é assim, definitivamente – que a sua prestação é indispensável à realização e ao desenvolvimento da interdependência social (Duguit) ou que ele corresponda a um serviço essencial, relativamente à sociedade (Cirne Lima).
Daí não caber no caso, a qualificação da atividade de que se cuida (transporte aquaviário) como serviço público.
Essa atividade, no caso, reclama mera autorização para que possa ser empreendida por empresa privada – compreende atividade econômica em sentido estrito.
Pelo contrário, acaso houvesse, no caso, prestação de serviço público, então a sua prestação por uma empresa privada exigiria a obtenção de permissão ou concessão da União, nos termos do disposto no art. 175 da Constituição de 1988.
Por isso mesmo, aliás, é que glosando o que anteriormente anotei, se a empresa estatal federal de que se cuida estivesse a prestar serviço público ao empreender a atividade de transporte aquaviário, estaria a fazê-lo para atender ao interesse social. Ao contrário, se estivesse então a empreender atividade econômica em sentido estrito, haveria de estar a fazê-lo para atender a relevante interesse coletivo.
Desejo deixar bem vincado, neste passo, o seguinte: o interesse social exige a prestação de serviço público: o relevante interesse coletivo e o imperativo da segurança nacional, o empreendimento da atividade econômica em sentido estrito pelo Estado.[30]
Marçal Justen Filho, dentro da linha que adota, afirma que uma mesma atividade econômica – aqui considerada em sentido lato - pode assumir, em um determinado caso concreto, a natureza de serviço público desde que guarde um vínculo de pertinência com os direitos fundamentais que justifique esta assunção; enquanto que em outra hipótese (onde não haja o vínculo de pertinência com os direitos fundamentais) a mesma atividade pode assumir a natureza de atividade econômica em sentido estrito – ou seja, de livre iniciativa.
Segundo a tese adotada, a configuração de atividades como serviço público faz-se essencialmente a partir do critério da referibilidade direta e imediata aos direitos fundamentais. Algumas utilidades apresentam intensa pertinência a tanto, motivo pelo qual foram referidas constitucionalmente. Isso não significa que a Constituição teria transformado em serviço público toda e qualquer atuação relacionada a tais atividades. Sempre se impõe como indispensável a vinculação com os direitos fundamentais. Por outro lado, não se pode reputar que todos os possíveis serviços públicos teriam sido referidos exaustivamente na dimensão constitucional. Excluídos dois campos – aquilo que é obrigatoriamente serviço público e aquilo que não pode ser serviço público -, existe a possibilidade de o legislador infraconstitucional determinar outras atividades como tais, respeitados os princípios constitucionais.[31]
Marcos Juruena Villela Souto acresce que:
É preciso que, ao se retirar uma atividade do regime de liberdade seja absolutamente necessário fazê-lo e que se possa, a partir dali, dar um tratamento mais eficiente do que aquele outrora dado no regime de liberdade para que os benefícios preponderem sobre os custos (não só financeiros, mas para a liberdade), o que é feito caso a caso, sem que haja regra geral [...].[32]
O autor, a propósito dos efeitos que a atividade reguladora estatal produz sobre as atividades econômicas, salienta, ainda, que:
A atividade econômica não transformada em serviço público continua sendo privada; a regulação só reduz a liberdade, mas não atrai a titularidade estatal nem cria o regime de responsabilidade civil objetiva, típica das prestadoras de serviços públicos.[33]
Alexandre Santos Aragão,[34] se agrega à corrente que admite que uma atividade econômica de livre iniciativa seja transformada em serviço público, e nessa linha de idéias reforça que:
[...] a transformação de uma atividade até então sob a égide da livre iniciativa em serviço público propriamente dito, o que implica a titularidade exclusiva do Poder Público (publicatio), terá que ter um juízo de proporcionalidade bastante eficaz, noutras palavras, a publicatio terá que ser realmente necessária para ser constitucional. É por esta razão que se impõem a ordenatio (não a publicatio) sempre que se tratar de atividade que não comporte uma limitação de acesso aos agentes econômicos que queiram desempenhá-la.[35]
A hipótese, contudo, distingue-se daquela onde se verifica que a intervenção estatal encontra fundamento na segurança nacional e em relevante interresse coletivo caso em que o Estado, se desejar assumir a sua prestação, deverá fazê-lo nas mesmas condições do particular, com base no art. 173 da CRFB/1988. Nesse sentido, Eros Roberto Grau:
De mais a mais, segurança nacional e relevante interesse coletivo não justificariam a prestação de serviço público, mas sim de atividade econômica em sentido estrito. Interesse coletivo não é interesse social. Este está ligado à coesão social, aferido no plano do Estado, plano da universalidade. Os interesses coletivos são aferidos no plano da sociedade civil, expressando particularismos, interesses corporativos. Um determinado aspecto deve, porém, ser desde logo sublinhado: a Constituição autoriza o Estado a explorar diretamente a atividade econômica exclusivamente nas hipóteses expressamente por ela previstas e quando essa exploração se impuser como necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, “conforme definidos em lei”.[36]
Por fim, no que se refere ao regime jurídico de direito público adotado na exploração de serviço público executado pelo particular, Marçal Justen Filho esclarece que:
O regime jurídico de direito público consiste no conjunto de normas jurídicas que disciplinam o desempenho de atividades e de organizações de interesse coletivo, vinculadas direta ou indiretamente à realização dos direitos fundamentais, caracterizado pela ausência de disponibilidade e pela vinculação à satisfação de determinados fins. [...] O regime de direito privado se alicerça na idéia de ‘autonomia de vontade’ que se traduz nos institutos da ‘propriedade’ e do ‘contrato’. [37]
Por tudo o que se falou o que se constata é que - apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter se pronunciado afastando a natureza de serviço público de atividade constante do inciso XII, do art. 21, da CRFB/1988 – parte da doutrina entende que o serviço público se define segundo a eleição política do Estado (por meio de norma) de determinada atividade como tal; enquanto parte da doutrina rejeita tal critério definidor do serviço público, admitindo como tal as atividades econômicas cujo oferecimento de sua prestação atenda a necessidades existenciais da sociedade assim considerada como um todo.
1.3. A polêmica acerca da autorização.
O debate travado na doutrina - acerca da aptidão da autorização para prestar-se ao papel de instrumento apto para a delegação de serviço público ao particular - encontra fundamento no fato de a CRFB/1988, por um lado, em seu art. 21, inciso XII, determinar que à União compete explorar, de forma indireta, as atividades ali elencadas por meio de concessão, permissão ou autorização, enquanto que, em seu art. 175, por outro turno, a CFRB/1988 refere-se apenas à concessão e à permissão como instrumentos de delegação de serviço público. Nessa medida, alguns autores reconhecem a autorização como instrumento para a delegação de serviços públicos (por força do inciso XII, do art. 21 da CRFB/1988), enquanto outros entendem que a autorização não configura instrumento do qual o Estado possa lançar mão para a delegação de serviço público (por força do art. 175 da CRFB/1988).
1.3.1. A função instrumental da autorização segundo a doutrina.
Cabe distinguirem-se os instrumentos de concessão, permissão e autorização. Odete Medauar, ao distinguir a concessão da permissão, salienta que:
[...] a Constituição Federal, no art. 175, estabeleceu a exigência de licitação para ambas, o que levava a aproximar a permissão da natureza de contrato. Essa é a natureza que lhe confere a Lei 8.987/95, ao determinar sua formalização mediante contrato de adesão, observada a precariedade e revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente (art. 40). Assim, para veicular a permissão de serviço público foi criado o contrato administrativo de adesão. Além do mais, o mesmo art. 40 determina a aplicação, às permissões, do disposto na lei, sem ressalvas. Ante a Lei 8.987/95 a diferença entre concessão e permissão de serviço público situa-se em dois aspectos: a) a concessão é atribuída à pessoa jurídica ou consórcio de empresas, enquanto a permissão é atribuída à pessoa física ou jurídica; b) a concessão destinar-se-ia a serviços de longa duração, inclusive para propiciar retorno de altos investimentos da concessionária; a permissão supõe média ou curta duração.[38]
Marcos Juruena Villela Souto, acrescenta que:
Tendo em vista a moderna concepção de Estado, na qual dele não se exige a execução direta dos serviços públicos para a sua prestação, desenvolveu-se a técnica de descentralização, por meio de parceria entre o setor público e o setor privado. Essa parceria é calcada em atos administrativos e não na lei como ocorre nas relações entre a Administração Direta e Indireta. Tais atos podem ser unilaterais (as autorizações), bilaterais (contratos) e multilaterais (parcerias formalizadas via convênios e consórcios). [...] A concessão de serviços públicos é contrato administrativo por meio do qual a Administração Pública – poder concedente – transfere ao particular a execução, por sua conta e risco, de atividade definida por lei como serviços públicos, atividade-fim do Estado (CF, art. 175). Ao Poder Concedente cabe acompanhar a adequada execução do contrato e o atendimento do interesse público, podendo, a qualquer tempo retomar a atividade. A permissão difere da concessão pelo fato de ser considerada pela doutrina como um ato administrativo precário e não um contrato, aplicando-se, no mais, os demais princípios gerais regedores da concessão. A Lei de Concessões (Lei nº 8.987/95), em seu art. 40, tratou a permissão também como contrato, criando dificuldades para distingui-la da concessão.[39]
José dos Santos Carvalho Filho propugna que a autorização não é instrumento hábil para a delegação de serviço público ao particular, motivo qual repudia a idéia de serviço público autorizado. Ao revés, afirma que a autorização só se fará presente quando tratar-se de atividade econômica de exclusivo interesse do autorizado (ou seja, atividade econômica de titularidade da iniciativa privada).
Desse modo, a única interpretação cabível, em nosso entender, para a menção às três espécies de consentimento federal, reside em que a concessão e a permissão são institutos próprios para a prestação de serviços públicos, e a autorização o adequado para desempenho da atividade do próprio interesse do autorizatário. [...] Além disso, há o argumento que consideramos definitivo: a Constituição Federal, ao referir-se à prestação direta de serviços públicos, só fez menção à concessão e à permissão (art. 175). Parece-nos, pois, que hoje a questão está definitivamente resolvida, no sentido de que o ato de autorização não pode consentir o desempenho de serviços públicos. A conclusão, desse modo, é a de considerar, inaceitável a noção dos denominados serviços públicos autorizados. A atividade, quando for autorizada há de refletir interesse exclusivo ou predominante de seu titular, ou seja, haverá na atividade autorizada interesse meramente privado, ainda que traga alguma comodidade a um grupo de pessoas.[40]
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao distinguir a autorização como instrumento de transferência do Estado ‘com ou sem delegação’ preconiza a autorização como instrumento de delegação (art. 21, XI e XII) e como instrumento para o poder público “anuir discricionariamente com o desempenho pelos particulares de certos serviços privados de interesse público, assim por lei considerados todos aqueles que não obstante o prevalecente interesse privado, atendam também ao público; neste caso, porém, recorde-se, não existe qualquer delegação de serviço público.”[41]
Alexandre Santos de Aragão, dentro da concepção que adota, de que os serviços públicos qualificam-se como serviços públicos propriamente ditos e serviços públicos impróprios, assim aloca o instrumento da autorização:
O art. 175 da Constituição Federal parece afirmar a titularidade estatal sobre as atividades econômicas lato sensu qualificadas como serviços públicos, ao estabelecer que devem ser prestados diretamente pelo Poder Público ou pelas empresas privadas, concessionárias ou permissionárias, que dele recebam a competente delegação. Não alude no art. 175 às atividades privadas ordenadas pelo Estado mediante autorização. Mas os incisos XI e XII do art. 21 tratam da prestação direta pela União ou indireta, mediante autorização, concessão ou permissão. [...] Ao se referir à prestação de serviços mediante autorização, a Constituição incluiu entre os serviços públicos atividades não titularizadas pelo Poder Público. Apenas a concessão e a permissão transferem a particulares a execução de serviços públicos de titularidade estatal. As autorizações são instrumentos de ordenação pública de atividades de titularidade privada. Destarte, em razão do contexto inegavelmente liberalizante em que nos encontramos, e da disciplina constitucional que trata de atividades meramente autorizadas como serviços públicos, a depender da disciplina a ser dada pelo Legislador, seria sustentável em nosso direito que os serviços públicos possuíssem um conceito amplo, identificado com toda as atividades de interesse da coletividade sujeitas aos princípios da continuidade e universalidade, sejam elas titularizadas pelo Estado ou pela iniciativa privada.[42]
Marçal Justen Filho, diante da posição que adotara no que concerne à definição de serviço público, propugna que a autorização não é instrumento apto para a delegação de serviço público – e mais, entende que autorização e serviço público encerram uma contradição em si mesmo, pois veja-se:
Ora a expressão autorização é incompatível com a existência de um serviço público. Não se outorga autorização de serviço público – fórmula verbal destituída de sentido lógico-jurídico. Somente se cogita de autorização para certas atividades econômicas em sentido restrito, cuja relevância subordina seu desempenho à fiscalização mais ampla e rigorosa do Estado. Sendo outorgada autorização, não existirá serviço público.[43]
Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, indagando para o que se presta, então, o instrumento da autorização previsto no inciso XII, do art. 21, conclui que:
Se não seja a de delegar, só consigo ver que ela é um instrumento para admitir que alguém venha, sem ser delegado ou titular se serviço público, a explorar aquela atividade sujeito a uma regra regulatória, sujeito a uma série de disciplinas, inclusive a licença via mecanismo de autorização. E aí eu vejo, para nos aprofundar, uma vertente do princípio da subsidiariedade nisto, que é, para mim, presente na Constituição de 88.[44]
Apesar da polêmica doutrinária antes apontada no que respeita à definição de serviço público, Sara Jane Leite de Farias, ao tratar da discricionariedade clássica da autorização como instrumento do exercício da polícia administrativa, salienta que “o tratamento dado à autorização de serviço público de telecomunicações [...] inovou na matéria e rompeu com os conceitos tradicionais do Direito Administrativo Brasileiro,”[45] conduzindo ao reconhecimento jurídico de uma autorização de natureza vinculada.
Sucintamente, pode-se dizer que estas são as distinções básicas entre as autorizações discricionária e vinculada: a) a primeira é ato constitutivo e a segunda, ato declaratório de direito; b) a relação jurídica entre a administração e o administrado, requerente do ato autorizatório é episódica na primeira, ou seja, logo que outorgado o ato, esgota-se a função administrativa. Quanto à autorização vinculada, o vínculo permanece, uma vez que cabe ao Poder Público tutelar permanentemente o interesse público.[46]
Nesse diapasão, Sara Jane Leite de Farias, reconhece a modalidade de autorização conferida para o desenvolvimento de atividade econômica da seguinte forma:
Significa que existem algumas atividades econômicas que não poderão ser exercidas pela iniciativa privada sem que seja conferido um ato autorizatório prévio. Todavia, deve-se perquirir o que pautará o legislador a impor a necessidade de uma autorização prévia para realização de uma atividade econômica. Os motivos podem ser os mais diversos possíveis, de acordo com o setor em que se encontra aquela atividade econômica. [...] Tal autorização configura-se como consentimento de polícia administrativa e vai receber uma denominação própria do comércio e da indústria, polícia das profissões, etc. Da dicção do art.170, parágrafo único, da CRFB verifica-se que se trata de função de polícia inerente ao desenvolvimento de atividade econômica, que a lei exige uma autorização prévia para que possam ser exercidas, impondo-se ainda a sua contínua sujeição à regulação da autoridade autorizante e, muitas vezes, a obrigação de universalidade e continuidade. Destaque-se como característica desta modalidade regulatória a sua setorização, ou seja, as autorizações são emitidas em consideração de cada setor da economia a ele vinculado, para o qual, via de regra, também há um específico órgão ou entidade estatal regulador.[47]
Eduardo García De Enterría e Tomás-Ramón Fernández demonstram que a crise do conceito de autorização não consiste em fenômeno que se opera apenas no Brasil:
O conceito de autorização em sentido estrito que chegou até nós se formou no final do século passado (…). A crise do esquema tradicional se fez especialmente aguda a partir do momento em que, excedido âmbito próprio da ordem pública, em sua tríplice dimensão compreensiva da tranqüilidade, segurança e salubridade, em função da qual foi pensado dito esquema, a autorização se vê transplantada ao complexo campo das atividades econômicas, no qual a faz cumprir sistematicamente um papel que não se limita ao simples controle negativo do exercício de direitos, mas que se estende a regulação mesma do mercado, com o propósito decidido de orientar e encaminhar positivamente a atividade autorizada no sentido de objetivos previamente programados ou ao menos, implicitamente definidos nas normas aplicáveis [...]. A troca de perspectiva exposta exige, pois, formular um novo conceito de autorização capaz de compreender todas suas diferentes variedades, sem prejuízo de uma especificação posterior desse conceito genérico com base nas peculiaridades estruturais e funcionais de cada um dos tipos. Isto não supõe abandonar totalmente a idéia clássica do direito pré-existente, que continua tendo um importante papel em relação a certos tipos de autorizações (as de caráter regrado), sem dele prescindir como elemento definidor geral, papel que já não pode seguir desempenhando. Neste novo conceito, hão de permanecer como inalteráveis o dado da existência de uma proibição geral prévia que atua sobre atividades que a norma considera como próprias dos particulares, o qual é suficiente para distinguir a autorização das concessões, que operam a partir de uma prévia ’publicatio’ ou reserva formal do setor aos entes público, que deste modo ostentam no mesmo uma titularidade primária da qual dispõem livremente (Villar Palasí). Sobre estas bases, a autorização se apresenta hoje como um ato da administração pelo qual esta consente a um particular o direito de uma atividade privada ainda que inicialmente proibida com fins de controle administrativo de seu exercício, constituindo ao mesmo tempo a situação jurídica correspondente.[48]
Diante da constatação de novas funções atribuídas ao instrumento autorizativo, os autores antes citados apresentam classificação das autorizações, de forma a compatibilizar o instrumento com o modelo de Estado Regulador, classificação esta da qual merecem ser destacadas as autorizações regradas e discricionárias, bem assim as autorizações simples e operativas:
Ao expor a formulação e crise do conceito clássico de autorização vimos que dita formulação havia tido lugar a partir da noção de polícia, basicamente referida então ao típico tradicional da ordem pública (tranqüilidade, segurança, saúde pública), enquanto que a crise havia se produzido ao compasso de uma progressiva programação dos objetivos setoriais, principalmente econômicos, que havia feito da autorização um instrumento a seu serviço, impossível de explicar sobre as bases tradicionais. Ficam assim enunciadas a partir deste momento duas classes de autorizações, em razão de sua distinta funcionalidade, que Giannini denomina expressivamente autorizações em função do controle e autorizações em função de programação. As primeiras (autorizações simples) se propõem unicamente controlar a atividade autorizada e, quando muito, enquadrá-la negativamente dentro de uns limites determinados. Seu âmbito mais próprio é por isto o da ordem pública e as zonas mais ou menos próximas ao mesmo (exercício de direitos fundamentais – de onde, por certo, a técnica autorizativa pura resulta contraditória com o princípio da liberdade; [...].) As autorizações operativas, ao contrário, sem renunciar a função primária de controle, que também canalizam, pretendem ir mais além dela, disciplinando e orientando positivamente a atividade de seu titular na direção previamente definida por planos e programas setoriais, e bem, ainda que de forma esquemática, e, inclusive, implicitamente, pela própria norma em cada caso aplicável. [...] De um ponto de vista geral, que é agora o nosso, a análise destes tipos de autorizações não pode levar-se muito mais longe, dadas as particularidades das distintas regulações. Se convém ressaltar, sem embargo, o freio que os processos de liberalização em curso colocaram na anterior tendência à ampliação do âmbito das autorizações operativas e dos poderes discricionários que revela, poderes de difícil controle tendo em vista a indeterminação da função programadora a que respondem.[49]
Boa parte da polêmica suscitada em torno do conceito clássico de autorização tem relação, como já temos visto, a estes dois tipos de autorizações, o primeiro do qual (autorizações regradas) se segue ajustando substancialmente ao esquema tradicional do direito preexistente, em que, sem embargo, não é fácil encaixar aquelas autorizações para cuja outorga a Administração dispõe de faculdades discricionárias, que, em maior ou menor medida, lhe permite opor-se ao exercício de um <<direito>>, de cuja entidade de tal se duvida justamente, supostas essas amplas faculdades (Manzanedo). Deixando à margem esta questão e prescindindo, também, das variações de ordem terminológica pela quais tem debatido um setor da doutrina, questão que não tem demasiado interesse, o que importa sublinhar é a distinta posição em que a Administração se encontra em um e outro caso e a diferente amplitude dos poderes que pode colocar em jogo, com conseqüente incidência que ele tem não apenas na hora de outorgar a autorização pedida, senão também aos efeitos de configurar seu concreto conteúdo.[50]
Conclui-se, portanto, que parte da doutrina propugna pela inaptidão da autorização como forma de delegação de serviço público, posto que tal instrumento é conferido no interesse do próprio particular na exploração da atividade econômica em sentido restrito; por outro turno, parte da doutrina admite a autorização como forma de delegação de serviço público, hipótese sobre a qual se cuidará a seguir.
1.3.2. Serviço público delegado por meio de autorização.
Sara Jane Leite de Farias, à propósito da “prestação descentralizada de serviço público por meio de autorização administrativa”, assim leciona:
A autorização é a mais importante modalidade unilateral, expressamente prevista para a execução de serviços públicos de competência da União, previstos nos incisos XI e XII do art. 21 da Constituição.
Alguns esclarecimentos são necessários no que se refere à modalidade de prestação unilateral: nem sempre essa outorga unilateral será precária, uma vez que o legislador pode optar pela estabilidade das relações. Significa que a referida autorização, por opção legal, pode ser discricionária ou vinculada. Aquela, conforme visto, caracteriza-se pela precariedade, enquanto esta, pela estabilidade. A importância de tal distinção encontra-se no fato de que muitas vezes uma atividade, embora definida por lei como serviço público, não se destina ao atendimento de uma generalidade de pessoas; possui, portanto, um interesse restrito. Neste caso, a outorga pode se dar por meio de um consentimento estatal, mediante uma autorização discricionária, assemelhado ao conferido por meio da polícia administrativa. Entretanto, quando uma atividade implica no direito de uma coletividade em receber do Poder Público determinado serviço, a autorização de serviço público não pode ser discricionária, tem que ter o caráter de estabilidade. Isso pode ser observado nas autorizações vinculadas, em que, uma vez preenchidos os requisitos legais, o administrador não pode furtar-se em conferir tal provimento. Ocorre quando a noção de serviço público não tem o condão de afastar a liberdade de iniciativa, como é o caso dos serviços prestados sem o compromisso de generalidade, modalidade de custos e continuidade.
Outra diferença entre as duas modalidades de autorização encontra-se no fato de que na autorização discricionária o consentimento, às vezes, é estático, em outras palavras, uma vez outorgado o ato, esgota-se seu conteúdo, o que o torna irrevogável. Desta forma, tem-se que na autorização vinculada o consentimento é dinâmico, pois podem ser incorporados pela via da regulação novas orientações ou comandos para o desenvolvimento da atividade.[51]
Odete Medauar, ao distinguir as concessões, permissões e autorizações, sobre a última destaca que:
Quanto à autorização, permanece sua formalização por ato administrativo discricionário e precário. Em geral, pela autorização se transferem ao particular serviços de fácil execução, de regra sem remuneração por tarifas; é o caso da autorização para conservação de praças, jardins ou canteiros de avenidas, em troca da afixação de placa com o nome da empresa. A autorização de serviço não é objeto da Lei 8.987/95.[52]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro caracteriza a autorização como ato administrativo que pode ser entendido sob várias acepções, dentre as quais destaca a autorização de serviço público, assim identificada:
Na terceira acepção autorização é o ato administrativo unilateral e discricionário pelo qual o Poder Público delega ao particular a exploração de serviço público, a título precário. Trata-se da autorização de serviço público. Esta hipótese está referida, ao lado da concessão e da permissão, como modalidade de delegação de serviço público de competência da União. Até a 17ª edição, vínhamos entendendo que a autorização não existe como forma de delegação de serviço prestado ao público, porque o serviço é prestado no interesse exclusivo do autorizatário. A partir da 18ª edição, esse entendimento é reformulado. Os chamados serviços públicos autorizados, previstos no artigo 21, XI e XII, da Constituição Federal, são de titularidade da União, podendo ou não ser delegados ao particular por decisão discricionária do poder público; e essa delegação pode ser para atendimento de necessidades coletivas, com prestação a terceiros (casos da concessão e da permissão), ou para execução no próprio benefício do autorizatário, o que não deixa de ser também de interesse público. A essa conclusão chega-se facilmente pela comparação entre os serviços de telecomunicações, energia elétrica, navegação aérea e outros referidos no artigo 21, XI e XII, com os serviços públicos não exclusivos do Estado, como educação e saúde. Estes últimos, quando prestados pelo Estado, são serviços públicos próprios; quando prestados por particular, são serviços públicos impróprios, porque abertos à iniciativa privada por força da própria Constituição; no primeiro caso, existe autorização de serviço público; no segundo, existe autorização como ato de polícia.
Pode-se, portanto, definir a autorização administrativa, em sentido amplo, como o ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração faculta ao particular o uso de bem público (autorização de uso) ou a prestação de serviço público (autorização de serviço público), ou o desempenho de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seriam legalmente proibidos (autorização como ato de polícia).
A Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472, de 16-7/97), no artigo 181, §1º, define a “autorização de serviço de telecomunicações” como “ato administrativo vinculado que faculta a exploração, no regime privado, de modalidade de serviço de telecomunicações, quando preenchidas as condições objetivas de subjetivas necessárias”.
No entanto, esse emprego do vocábulo, utilizado para dar a impressão de que a lei se afeiçoa aos termos do artigo 21, XI, da Constituição (que fala em concessão, permissão e autorização) não está corretamente utilizado, não se amoldando ao conceito doutrinário. O uso indevido do vocábulo não justifica a alteração do conceito. [...].
Na Constituição Federal ainda se emprega o vocábulo no sentido de consentimento de um poder a outro para a prática de determinado ato; é o caso previsto no artigo 49, II e III, que dá a competência ao Congresso Nacional para autorizar o Presidente da República a declarar a guerra e fazer a paz; permitir que forças estrangeiras transitem pelo Território Nacional ou nele permaneçam temporariamente e para autorizar o Presidente e o Vice-presidente da República a se ausentarem do País. No artigo 52, V, é estabelecida a competência do Senado para autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios. Tais autorizações podem ser consideradas atos administrativos em sentido material (quanto ao conteúdo), pois equivalem, também, a um consentimento manifestado por um Poder a outro para a prática de ato que não seria válido sem essa formalidade. Sob o aspecto formal, não se trata de ato administrativo, mas de ato legislativo, que se edita sob a forma de decretos-legislativos ou de resoluções. O próprio fundamento e diverso.
A autorização administrativa baseia-se no poder de polícia do Estado sobre a atividade privada; a autorização legislativa, nos casos mencionados, é a modalidade de controle do Legislativo sobre os atos do Executivo.[53]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ainda sobre a questão continua a lecionar que:
A autorização de serviço público está prevista no art. 21, inciso XI e XII, da Constituição (com a redação dada pela Emenda Constitucional nº. 8, de 15/8/95) [...].
A Lei nº 8.987 somente cuida da concessão e da permissão; já a Lei nº 9.074 cuida também de hipóteses de autorização. [...]
Isto ocorre porque a autorização de serviço público (da mesma forma que a autorização de uso de bem público) é dada no interesse exclusivo do particular que a obtém; ele não exerce uma atividade que vá ser usufruída por terceiros, mas apenas por ele mesmo, vale dizer que aquela mesma atividade que constitui serviço público propriamente dito, quando prestado diretamente pelo Poder Público ou pelas concessionárias, praticamente perde essa qualidade quando prestado mediante autorização, por faltar-lhe uma característica essencial que é o atendimento de necessidades coletivas.
Exemplo disso se encontra na Lei nº 9.074, cujo art. 7º diz que são objeto de autorização: “I – a implantação de usinas telemétricas, de potência superior a 5.000kW, destinada a uso exclusivo do autoprodutor; II – o aproveitamento de potenciais hidráulicos, de potência superior a 1.000kW e igual ou inferior a 10.000kW, destinados a uso exclusivo do autoprodutor.”
Precisamente por ser a autorização dada no interesse exclusivo do particular, não há necessidade de que lhe sejam delegadas prerrogativas públicas. O poder público titular do serviço dá a autorização com base no poder de polícia do Estado e, com base nesse mesmo poder, estabelece as condições em que a atividade será exercida e fiscaliza o exercício da atividade.
Totalmente diferente é o que corre na permissão e na concessão, em que o Poder Público delega ao particular uma atividade que vai atender a necessidades coletivas, definida pela lei como serviço público e, por isso mesmo, deve ser prestada sob regime jurídico parcialmente público, à medida que o concessionário e o permissionário estarão sujeitos aos princípios inerentes à prestação de serviços públicos (continuidade, mutabilidade, igualdade entre os usuários) e exercerão as prerrogativas públicas que lhe forem conferidas pela lei e pelo contrato, ao contrário do que ocorre na autorização, à qual não se aplicam nem os princípios referidos nem as prerrogativas públicas.
Sendo a autorização, por definição, um ato precário, a rigor deve ser outorgada sem prazo, de tal forma que o Poder Público pode revogá-la, a qualquer momento, sem direito à indenização; a fixação de prazo poderá investir o beneficiário em direito subjetivo oponível à Administração, consistente em perdas e danos, em caso de revogação extemporânea.[54]
Marçal Justen Filho, por seu turno, rejeita a idéia de autorização como meio de delegação de serviço público, senão excepcionalmente, tendo em vista que entende que a sua admissibilidade configura uma contradição em si mesma. Trata, portanto, da autorização, como instituto próprio para o consentimento para a exploração das atividades econômicas privadas e, apenas excepcionalmente, para a execução de serviço público, nos seguintes termos:
Como exposto, existem serviços que não são públicos, mas que atendem a relevantes interesses. Costuma-se utilizar a expressão serviço público virtual e se propôs, acima, a expressão serviços de interesse coletivo. A hipótese abrange os casos de transporte por meio de táxi, profissões regulamentadas, atividades de hotéis, bancos, seguros, etc.
A hipótese está prevista no art. 70, parágrafo único da Constituição que faculta à lei subordinar o exercício de certas atividades a uma autorização estatal prévia. O ato estatal destina-se a verificar o preenchimento pelo particular dos requisitos necessários. A intervenção do Estado, nesses casos, não atinge a natureza do serviço nem altera o regime jurídico sob o qual se desenvolve, ainda que se imponham requisitos para o desempenho das atividades e se as subordine a controle de intensidade variável.
Todo aquele que preencher os requisitos previstos em lei terá direito a desenvolver as atividades pertinentes. Portanto, a intervenção estatal representa um cunho constitutivo do direito ao exercício da atividade, mas se trata de um ato de cunho declaratório. Bem por isso, não se trata de transferir ao particular o exercício de uma atividade pública.
Enfim, concedem-se serviços públicos; autorizam-se serviços privados. [...]
Existe o risco de qualificar-se como autorização uma avença dotada de outro conteúdo. Muitas vezes, produz-se a outorga de “autorização de serviços públicos”, impondo-se ao particular os encargos correspondentes à concessão ou permissão. Ou seja, a figura apresenta apenas o nome da autorização, uma vez que o regime jurídico aplicável é o da permissão ou da concessão.
Obviamente, são distintos entre si os regimes jurídicos de autorização, permissão e concessão. Os poderes, direitos e deveres que decorrem para as partes, nas três hipóteses, são inconfundíveis entre si. É impossível a substituição de concessão e permissão por autorização. Não são três institutos fungíveis entre si, cuja adoção dependeria de mera opção da Administração Pública.
A alteração da denominação é irrelevante, e cabe aplicar o regime correspondente à atividade adequada.
Tal acima exposto, a Constituição alude à autorização para certas atividades, que comportam delegação por meio de concessão ou permissão.
É o que ocorre no art. 21, XII, por exemplo. Da forma como anteriormente apontado, a utilização do vocábulo autorização, nesses dispositivos constitucionais, decorre a possibilidade de certas atividades, configurarem-se ou como serviço público ou como atividade econômica em sentido restrito, a depender das circunstâncias e características. [...]
Há hipótese excepcional em que a autorização pode ser aplicada a proveito do serviço público. A situação é apontada por LUCIA VALLE FIGUEIREDO, nos casos de serviços públicos “emergenciais, não constantes”, e dita como exemplo “autorização que vier ser dada para, durante greves, empresas de turismo prestarem serviços de transporte à população”, demonstrando que a autorização requer um acontecimento relevante, “sem natureza constante, cuja necessidade seja absolutamente aleatória ou passageira”. CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA dota entendimento similar, fundando-se no Decreto nº 952/93, que prevê a autorização como instrumento de delegação ocasional, com prazo limitado e, usualmente, curto, para a prestação de serviços em situação de emergência ou especialidade.[55]
Dinorá Adelaide Musetti Grotti filia-se à corrente que distingue os serviços públicos em próprios e impróprios, de forma tal que estes serão explorados pela iniciativa privada mediante autorização pública, enquanto que aqueles mediante concessão ou permissão.
Na tentativa de preservar o conceito de serviço público de generalizações excessivas, deve-se distingui-lo de determinadas atividades que constituem o chamado serviço público impróprio ou virtual, categoria descrita na doutrina como extrapolação da teoria tradicional do serviço público sem título de concessão.[56]
Com efeito, o regime jurídico em um caso e outro é profundamente distinto. Analisando o significado que se pretende atribuir aos serviços públicos impróprios ou virtuais, não conseguimos vislumbrar diferença substancial entre essa atividade e qualquer outra realizada pelos particulares.
Os direitos que amparam essas atividades privadas devem ser exercidos de conformidade com as leis que regulamentam seu exercício. Todavia, a sujeição a especial regime jurídico, a regras mais detalhadas e estritas, que os autorizados devem aceitar, em função do interesse público envolvido, não é razão suficiente para elevar tais atividades à categoria de serviços públicos, embora se lhes aplique a qualificação de impróprios, objetivos ou virtuais.
Imagine-se o alcance que teria predicar-lhes o regime próprio dos serviços públicos em matéria de bens, equilíbrio financeiro, poderes unilaterais da administração sobre a criação, modificação e extinção do serviço público.
Por intensa que seja a intervenção administrativa sobre a atividade, ditada por motivos de interesse público, em tais hipóteses a Administração não assume a atividade, direta ou indiretamente, mantendo uma posição externa ao seu desenvolvimento.
Todas as atividades consideradas pela doutrina como serviços públicos impróprios, objetivos ou virtuais, não são verdadeiros serviços públicos porquanto em nenhuma delas há publicatio da atividade (reserva de titularidade a favor do Estado), nem se exige, a rigor, concessão, embora, como pontifica Ariño Ortiz, “a chamada autorização não seja uma mera remoção de limites (simples declaração de licitude), e crie uma relação permanentemente de sujeição entre a Administração e os particulares, com “um dever de fazer ou prestar”. Daí a referência doutrinária a um ato administrativo tipificado com diversas denominações (“Autorizações constitutivas de relações jurídicas permanentes entre a Administração e os particulares”, ou “autorizações com funcionalidade operativa” ou “autorizações constitutivas de situações jurídico-seccionais”, ou “autorizações conformadoras” ou “concessões de gestão econômica de interesse público”). “No fundo”, acentua Gaspar Ariño, “atos que projetam sobre um indivíduo destinatário, toda uma situação jurídica geral e objetiva configurada previamente pelo ordenamento (não pela autorização), na qual fica incurso o autorizado. Dá-se, aqui, o que a doutrina francesa denominou ato-condição (a autorização) que abre a aplicação do ato-regra (o estatuto), com um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, que são o conteúdo da relação”.
Trata-se de atividades privadas submetidas a intensas manifestações do poder de polícia, tendo em conta que são exercidas pelos particulares, no uso de usa “competência privada originária”, sujeitas a um regime jurídico de Direito privado, caracterizado pela liberdade de exercício e contratação, cujas normas regulamentares devem observar os limites das garantias constitucionais para o desempenho de uma atividade livre.[...]
Em síntese, pode-se concluir que:
- No Direito brasileiro, o Estado é sempre titular do serviço público (art. 175 cf/88).
- Os serviços públicos impróprios, objetivos e virtuais têm por titulares os sujeitos privados que os exploram.
- Os serviços públicos impróprios e os virtuais não são os serviços públicos em sentido jurídico, e nem se deve, tampouco, dar-lhes essa designação de serviço público, que apenas concorre para criar mais dificuldades que soluções. Nos dois casos, destaca Escola, trata-se de situações jurídicas administrativas “surgidas da lei, em sentido lato, e estabelecidas pela Administração Pública em vista de um interesse público que pode ser atendido e satisfeito, desse modo, conforme um regime especial previsto para esse fim, e que são assemelhadas ou equiparadas aos serviços públicos (próprios), por oferecer ou reunir algumas das notas ou elementos característicos destes”.[57]
Em vista do que se falou, verifica-se que a autorização é modalidade de consentimento público que assume na atualidade, por força do modelo econômico adotado pela CRFB/1988, novos paradigmas, encontrando-se em um limbo jurídico ainda não totalmente desvendado, embora fartamente explorado pela doutrina pátria.
Fato é, nada obstante, que a lei de telecomunicações prevê a hipótese de exploração de serviço público pelo particular, em regime de direito privado, sujeito, contudo, a determinadas regras próprias de direito público e pertinentes ao oferecimento de serviço público, tal qual a exigência de continuidade e regularidade do serviço, tendo a lei atribuído, a tal modalidade de consentimento estatal, a denominação de autorização vinculada (exatamente com o propósito de distingui-la da autorização clássica), como forma de viabilizar o investimento privado no setor, bem como o desenvolvimento técnico e qualitativo do respectivo serviço para a população.
1.3.3. Discricionariedade administrativa.
Celso Antônio Bandeira de Mello, justificando a fungibilidade do Direito Administrativo com o Direito Público, ensina que o Direito Administrativo se pauta precipuamente pelos princípios da Supremacia do Interesse Público – em face ao interesse particular – e pela indisponibilidade do interesse público pela administração estatal.
(...) partindo do universal para o particular, diríamos que o Direito Administrativo, entroncando que está no Direito Público, reproduz, no geral, as características do regime de Direito Público, acrescidas àquelas que o especificam dentro dele. Aquele resulta da caracterização normativa de determinados interesses como pertinentes à sociedade e não aos particulares considerados em sua individuada singularidade. Juridicamente esta caracterização consiste, no Direito Administrativo, segundo nosso modo de ver, na atribuição de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em função da consagração de dois princípios: a) supremacia do interesse público sobre o privado; b) indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos.[58]
Disso resulta a discricionariedade administrativa que, nada obstante, não consiste em cheque em branco para a administração pública, de vez que é exercida mediante previsão legal e nos limites estabelecidos pela lei. Nesse sentido leciona Hely Lopes Meirelles:
Atos Discricionários são os que a administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização. [...] Para o cometimento de um ato discricionário, indispensável é que o Direito, nos seus lineamentos gerais, ou a legislação administrativa confira explícita ou implicitamente tal poder ao administrador e lhe assinale os limites de sua liberdade de opção na escolha dos critérios postos à sua disposição para a prática do ato. [59]
Tal limitação à discricionariedade se estende também ao legislador, que não pode conferir tal poder para a administração estatal, senão nos limites suficientes ao atingimento da finalidade para a qual o ato vise. “Em outros termos: a discricionariedade não pode ser exercida nem contra a finalidade nem mesmo sem ela, mas, apenas, em favor dela.”[60]
Neste sentido, a discricionariedade não representa um cheque em branco, nem para o legislador, muito menos para a administração pública “afinal, ela própria, é uma competência e, portanto, um poder vinculado à finalidade que dita a sua existência”.[61]
Nessa perspectiva é que Hely Lopes Meirelles formula sua classificação dos atos administrativos:
Atos vinculados ou regrados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase que por completo, a liberdade do administrador, uma vez que sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal, para a validade da atividade administrativa. Desatendido qualquer requisito, compromete-se a eficácia do ato praticado, tornando-se passível de anulação pela própria Administração, ou pelo Judiciário, se assim o requerer o interessado. Na prática de tais atos o Poder Público sujeita-se às indicações legais ou regulamentares, e delas não se pode afastar ou desviar, sem viciar irremediavelmente a ação administrativa. Isso não significa que nessa categoria de atos o administrador se converta em cego e automático executor da lei. Absolutamente não. Tanto nos atos vinculados como nos que resultam da faculdade discricionária do Poder Público, o administrador terá de decidir sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstâncias que conduzem a atividade administrativa ao seu verdadeiro e único objetivo – o bem comum. Poderá assim, a Administração Pública atuar com liberdade, embora reduzida, nos claros da lei ou do regulamento. O que não lhe é lícito é desatender às imposições legais ou regulamentares que regram o ato e bitolam a sua prática. [...] Tratando-se de atos vinculados ou regrados, impõem-se à Administração o dever de motivá-lo, no sentido de evidenciar a conformação de sua prática com as exigências e requisitos legais que constituem pressupostos necessários de sua existência e validade.[62]
No mesmo sentido atua a discricionariedade técnica própria do exercício das funções regulatórias das agências reguladoras, conforme nos ensina José dos Santos Carvalho Filho:
De fato, se de um lado há aspectos da área técnica que se revestem de absoluta precisão quanto à hipótese a ser empregada – e nesse caso a atuação do administrador não pode senão caracterizar-se como vinculada – de outro é certo que, havendo mais de um critério ou solução a ser adotada, a escolha só pode mesmo constituir prerrogativa de quem faz a gestão do interesse coletivo, ou seja, o administrador público (..). Todavia, o que se quer mostrar é que, em virtude do aspecto técnico de que se reveste a atividade do ente regulador, haverá atividade não vinculada com suporte na natureza técnica da função. Inafastável, pois, o processo de escolha deferido ao ente administrativo [...]. A despeito da inevitável prerrogativa de opção conferida ao administrador, não se pode deixar de reconhecer que a discricionariedade técnica só pode ser utilizada dentro dos padrões básicos estabelecidos, expressa ou implicitamente na lei. Não há, portanto, liberdade total para o administrador. Atuando este fora dos padrões legais, o ato será írrito e nulo, sujeito à invalidação [...]. Assim, como toda a atuação fundada no poder discricionário, o exercício da discricionariedade técnica deve submeter-se a controle de legalidade, aplicando-se, para esse fim, as técnicas e os princípios administrativos que visam enfrentar o abuso de poder. Dentre estes, merecem destaque os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verdadeiros elementos de contenção contra o emprego indevido do poder discricionário.[63]
Rita Tourinho acrescenta que:
No entanto, entendemos que, na concretização do caso, a situação é completamente diversa. O “dever jurídico de boa administração” impõe à Administração Pública a escolha da melhor solução e não qualquer solução prevista in abstrato. Logo, ocorrida a situação concreta, o administrador deverá adotar a solução ótima para o alcance do fim da norma, uma vê que a discricionariedade que lhe é conferida tem por escopo atingir a finalidade normativa e não a simples atribuição de poder de agir ao administrador. Além disso, no momento da ação discricionária, o administrador não estará somente vinculado às amarras estabelecidas na lei, mas também a todos os princípios que regem a atuação administrativa, conforme demonstrado. Assim, existem situações em que a discricionariedade abstratamente prevista na norma pode deixar de existir por completo no confronto com as peculiaridades do caso concreto frente aos princípios administrativos, quando somente um comportamento será possível para se alcançar a finalidade da norma de forma satisfatória. Com efeito, adotada uma solução ao caso concreto no exercício de competência discricionária, o administrador estará perante o dever jurídico de praticar não qualquer ato dentre os previstos na norma, mas aquele que além de atender com absoluta perfeição à finalidade da lei, respeite os princípios administrativos. Podemos, então, afirmar que a liberdade discricionária fixada de forma abstrata na norma jurídica, não coincide com o possível campo de liberdade do administrador diante do caso concreto.[64]
Ainda sobre a discricionariedade técnica, Marçal Justen Filho reforça essa posição ao esclarecer que:
Nos casos de discricionariedade técnica, a lei não autoriza uma escolha de natureza política, a ser realizada pelo aplicador. O silêncio legislativo sobre a solução cabível resulta de outras razões. A norma legal estabelece parâmetros normativos gerais. A Administração disporá de autonomia para decidir, mas a escolha concreta deverá vincular-se a juízos técnico-científicos. Será a ciência ou a técnica que fornecerá a solução a ser adotada.[65]
Nada obstante, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto propugna que o Princípio da Subsidiariedade, constitui elemento limitador ao conferimento de discricionariedade administrativa, de forma tal que antes deve-se buscar o atingimento do fim desejado pelas forças privadas, sem a atuação do corpo estatal.
Por força de tal princípio nem mesmo o legislador poderia impor restrições, condicionamentos ou sujeições aos particulares (decorrentes de competências atribuídas ao poder público) com vistas ao atingimento de fim que possa ser alcançado pelos próprios entes sociais, sem atuação estatal.[66]
Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto ressalta, ainda, a relatividade que atualmente permeia o Princípio da Supremacia do Interesse Público:
Não mais podendo ser sustentada a existência de um interesse público (prescrito em lei ou identificado pela burocracia), não há como aceitar a tese de oposição e supremacia absoluta deste interesse geral frente aos diversos interesses encontradiços na sociedade - interesses, estes, que inclusive, acabam por estar refletidos, a partir de locuções genéricas ou de cláusulas abertas [...], na lei ou mesmo na Constituição. Em outras palavras, as transformações havidas na sociedade e no Estado contemporâneos põem em xeque a concepção clássica de prevalência absoluta e indesviável do Estado sobre a sociedade; da Administração sobre o administrado; do público sobre o privado. [...] Não mais prevalecendo tais concepções, perde sentido a noção universal, absoluta, singular, de interesse público, definido unilateral e autoritariamente pelo Estado (quer por meio da lei, quer, mais posteriormente, por meio do aparato burocrático no exercício da sua crescente margem de discricionariedade).[67]
Seja como for, “O certo é que só se pode utilizar a autorização quando não houver a predominância do interesse público sobre o particular; do contrário, deve-se firmar uma concessão ou permissão, submetidas ao princípio licitatório.”[68]