1. Considerações iniciais
O art. 59 da Constituição Federal[1] trata do processo legislativo, tendente a produzir as leis complementares, as leis ordinárias, os decretos legislativos e os demais atos normativos, que prescrevem aos cidadãos obrigações, direitos e proibições, estabelecendo, enfim, condutas às pessoas.
Com efeito, o processo legislativo é o conjunto de atos que garante a legitimidade da lei e dos atos normativos, notadamente porque, na confecção dessas normas, há documentação dos projetos, dos debates, dos pareceres, das audiências públicas, da votação, da sanção ou do veto do Chefe do Poder Executivo, da promulgação, da publicação e de quaisquer outros documentos pertinentes aos mais diversos casos, que atestem a regular tramitação do projeto que deu origem à lei.
É válido sublinhar que o escopo do presente estudo é apresentar o panorama geral do processo legislativo como um todo e, além disso, detalhar algumas características específicas do processo legislativo municipal, englobando, dessa forma, atividades típicas dos agentes públicos atuantes nos Poderes Executivo (iniciativa, veto, sanção...) e Legislativo (discussão, votação, publicação...).
Evidentemente que não se objetiva aqui esgotar o tema ou apresentar um manual completo de consulta para gestores públicos e/ou legisladores em geral. O que se pretende, na verdade, é fornecer um material prático, simples e compacto para a consulta diária daqueles que se deparam quotidianamente com os conceitos aqui abordados.
Na medida do possível, serão apresentadas sugestões de aperfeiçoamento ao processo legislativo municipal, como, por exemplo, a possibilidade de edição de medidas provisórias assinadas pelos Prefeitos Municipais, que não é comum na realidade municipal brasileira, mas que poderia tranquilamente ser utilizada, a teor do que constar na Constituição do Estado e na Lei Orgânica do Município.
Ressalte-se, por derradeiro, que não se pode confundir o processo aqui abordado com o procedimento que se faz na aprovação de indicações, moções, recomendações e outros requerimentos mais simplificados que tramitam nas casas Legislativas. Referidos procedimentos são atos administrativos e independem da participação do Chefe do Poder Executivo.
2. A Função Legislativa
Dentre as funções do Estado, está a de produzir leis e atos normativos primários, inovando o Direito. Tal função, salvo algumas poucas exceções, compete primordialmente ao Poder Legislativo, seja ele federal (Congresso Nacional), estadual (Assembleia Legislativa), distrital (Câmara Legislativa do Distrito Federal) ou municipal (Câmara Municipal) e se concretiza por meio do processo legislativo.
No âmbito federal, por força do disposto no art. 59 da Constituição do Brasil, o processo legislativo compreende a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
O Estado de Santa Catarina, no art. 48 de sua Constituição, seguiu a mesma lógica, prevendo um processo legislativo que compreende a elaboração de proposta de emenda à Constituição Federal, emendas à Constituição do Estado, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
Os Municípios catarinenses, em suas leis orgânicas, prescrevem os seus próprios processos legislativos, tendentes a elaborar, com algumas variações de um Município a outro, emendas à Lei Orgânica Municipal, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, decretos legislativos e resoluções.
3. Competência legislativa na Constituição Federal
A Constituição Federal prevê, em seu texto, matérias que carecem de regulamentação legislativa, instituindo também a competência para tratar delas. Assim, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não possuem competência irrestrita para legislar, competindo-lhes tratar apenas dos assuntos de sua competência.
Nesse sentido, o art. 22 da Constituição Federal determina que compete privativamente à União legislar sobre direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial, do trabalho, desapropriação, serviço postal, nacionalidade, cidadania, naturalização etc.
Destarte, percebe-se que a Constituição reserva à União determinadas matérias relevantes, o que demonstra, segundo o jurista Alexandre de Moraes, a supremacia da União, neste aspecto, em relação aos demais entes federativos.[2]
Tal assertiva parece ser correta, ainda mais quando se leva em conta o disposto no art. 24 da Carta Federal, que dispõe acerca da competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal (não inclui os Municípios). Aqui, há uma divisão interessante: enquanto à União cabe editar normas gerais acerca de direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico, entre outros, aos Estados e ao Distrito Federal cabe editar leis específicas, logicamente harmônicas com os preceitos federais, sobre os mesmos temas.
Aos Municípios, por força do art. 30 da Constituição Federal, cabe legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Assim, compete ao Município instituir, por lei, tributos de sua competência (tais como o IPTU e o ISS), normas sobre parcelamento do solo, o Plano Diretor do Município, normas que tratem do tempo adequado de espera dos consumidores em filas bancárias etc.
4. Fases de elaboração das leis
4.1. Iniciativa
O processo legislativo municipal de criação das leis é iniciado sempre que o Prefeito ou os Vereadores apresentam projeto de lei. As leis orgânicas municipais, respeitando sempre os preceitos das Constituições Federal e Estadual, e por força do princípio da simetria[3], devem estabelecer as matérias cuja iniciativa compete ao Chefe do Poder Executivo e aquelas que são de competência comum dos Poderes Executivo e Legislativo.
De acordo com Hely Lopes Meirelles, são de iniciativa do Prefeito as leis que versem sobre “a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades da Administração Pública Municipal; a criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta e autárquica, fixação e aumento de sua remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos suplementares e especiais”.[4] As outras matérias são de iniciativa comum. Vale dizer: tanto o Chefe do Poder Executivo quanto os edis podem propor projetos de lei para regulamentá-las.
Destarte, sempre que a iniciativa para propor projetos de lei for desrespeitada, haverá inconstitucionalidade formal, sendo cabível a impugnação judicial da lei ou do ato normativo viciados na origem por meio do controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade) ou por meio do controle difuso de constitucionalidade (em qualquer processo judicial em que a questão constitucional se apresentar).
4.2. Discussão
Após a apresentação do projeto de lei ao Poder Legislativo, seja ele de autoria do Prefeito ou de qualquer dos Vereadores, tem início a fase das discussões, que visa a aprimorar o projeto. É nessa fase que os parlamentares apreciam e dão sugestões acerca do tema, podendo emendar o projeto de lei. Os debates travados pelos edis geralmente modificam a proposta legislativa inicial, adaptando-a aos anseios da sociedade.
Contudo, é importante advertir que, em projetos de lei de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, não são admitidas emendas parlamentares que acarretem aumento de despesa, conforme preceitua o art. 63, I, da Constituição Federal, e art. 52, I, da Constituição de Santa Catarina. Nos dizeres de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, “não se impede a emenda em casos de iniciativa reservada, mas a emenda estará vedada se importar incremento de dispêndio”.[5]
Estará eivada de inconstitucionalidade, por exemplo, a emenda parlamentar à lei de orçamento anual que for incompatível com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.[6]
4.3. Votação
Após a discussão acerca da proposta legislativa, tem início a fase de votação. É nesse momento do processo legislativo que o projeto de lei, com ou sem emendas, será aprovado ou rejeitado pela Câmara Municipal.
A Constituição de Santa Catarina, em seu art. 36, estipula as regras de votação da Assembleia Legislativa, que devem ser observadas também, por força do princípio da simetria, pelas Câmaras Municipais.
Dispõe a Constituição Estadual:
Art. 36. Salvo disposição constitucional em contrário, todas as deliberações da Assembléia Legislativa e de suas comissões, presente a maioria absoluta dos seus membros, serão tomadas através do voto aberto, exigida a maioria simples.
De acordo com Michel Temer, “só se instala a sessão deliberativa com a presença da maioria dos integrantes da Casa Legislativa. Esta é a maioria absoluta. Presente essa maioria, delibera-se. Aprova-se mediante voto favorável da maioria dos presentes à sessão. Trata-se da maioria simples”.[7]
Ressalte-se, entretanto, que, para algumas matérias, há exigência de quórum específico. É o caso das leis complementares, que dependem de voto favorável da maioria absoluta dos membros do Parlamento.
4.4. Sanção ou Veto
Após a votação do projeto de lei, e uma vez aprovado pela Câmara Municipal, ele é encaminhado ao Chefe do Poder Executivo, que poderá sancioná-lo ou vetá-lo, conforme veremos adiante.
a) Sanção
Para Hely Lopes Meirelles, “Sanção é o ato de aprovação do projeto de lei pelo Executivo”.[8] É dizer: sempre que o Prefeito sanciona o projeto de lei, ele o transforma imediatamente em lei.
A sanção pode ser expressa ou tácita. É expressa quando o Chefe do Poder Executivo Municipal a declara formalmente, por meio de sua assinatura no projeto. É tácita quando o Prefeito deixa transcorrer o prazo constitucional de quinze dias para manifestação sem realizar qualquer ato.[9]
Saliente-se, por fim, que a sanção é ato de natureza política, exclusivo do Chefe do Poder Executivo, não admitindo o ordenamento jurídico brasileiro, em qualquer hipótese, a sua delegação, conforme, aliás, já elucidou Meirelles[10].
b) Veto
Ao vetar o projeto de lei, o Prefeito demonstra a sua insatisfação com a versão final da proposta. Pode fazê-lo, de forma irretratável, em duas hipóteses: ao entender ser o projeto inconstitucional, quando é chamado de veto jurídico, ou ao entender ser o projeto contrário ao interesse público, quando é chamado de veto político.
O veto, sempre editado de forma escrita, pode ser total, quando engloba toda a proposta legislativa, ou parcial, quando engloba apenas parte dela.
No entanto, é importante ressaltar, com Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, que “O veto parcial não pode deixar de incidir sobre o texto integral de artigo, parágrafo, inciso ou alínea. Busca-se prevenir, assim, a desfiguração do teor da norma, que poderia acontecer pela supressão de apenas algum de seus termos”.[11]
No Brasil, os efeitos do veto não são definitivos, são relativos, pois, quando o Prefeito veta o projeto de lei, não está invalidando a proposta legislativa, mas apenas suspendendo-a. É que a Câmara Municipal poderá, posteriormente, mediante votação, derrubar o veto, dando origem à lei.
Importante destacar, por derradeiro, que o Poder Legislativo pode aceitar o veto apenas de forma parcial, se assim o entender. Nesses casos, a Câmara Municipal pode acatar o veto em relação a algum dos dispositivos da lei, mas o rejeitar em relação a outros. No que concerne ao processo legislativo, a última palavra, portanto, é sempre do Poder Legislativo.
4.5. Promulgação
A promulgação é o ato pelo qual se atesta a existência da lei. Diz-se, por essa razão, que não se promulga o projeto de lei, mas sim a própria lei, que nasce com a sanção ou com a derrubada do veto do Prefeito pela Câmara Municipal.
Quando o Prefeito sanciona a lei, incumbe-lhe promulgá-la. Quando a sanção é tácita, ou quando há veto, pode o Presidente da Câmara Municipal, diante da omissão do Chefe do Poder Executivo, promulgar a lei.
Conforme ensina Hely Lopes Meirelles, a partir da promulgação “a lei não pode ser revogada senão por outra lei. Sua vigência, entretanto, dependerá de publicação, visto que a promulgação completa apenas o processo de formação da lei. A promulgação exige sempre manifestação expressa, diversamente da sanção, que pode ser tácita, isto é, presumida do transcurso do prazo sem oposição formal de veto”.[12]
4.6. Publicação
O processo legislativo é finalizado com a publicação da lei, ocasião em que se dá ciência a todos os cidadãos de que a ordem jurídica foi inovada. A partir desse momento, diz Michel Temer, ninguém mais poderá alegar “ignorância da lei”.[13]
Ressalta Kildare Gonçalves Carvalho que “A competência para publicar recai sobre a autoridade que promulga”.[14]
A publicação há de ser sempre feita em órgão oficial. Michel Temer adverte que, “Nos locais onde não haja jornal oficial, considera-se publicado o ato governamental pelos meios em que rotineiramente se os veiculam no local (afixação de texto no quadro próprio da Câmara Municipal ou da Prefeitura, por exemplo)”.[15]
É importante mencionar que a interpretação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina quanto ao tema é no sentido de que a publicação de lei realizada exclusivamente em mural existente na sede da Prefeitura é possível somente se não existirem jornais de circulação local. Caso contrário, a norma será inconstitucional:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS N. 061/97 E 134/99, DO MUNICÍPIO DE PIÇARRAS. PUBLICAÇÃO RESTRITA AO MURAL EXISTENTE NO EDIFÍCIO SEDE DA PREFEITURA. EXISTÊNCIA DE JORNAIS DE CIRCULAÇÃO LOCAL. VÍCIO DE FORMA. EXEGESE DO ART. 111, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO. MEDIDA LIMINAR. PRESSUPOSTOS PRESENTES. CONCESSÃO. Têm aparência de inconstitucionalidade as lei municipais publicadas em mural existente no edifício sede da Prefeitura, havendo jornais da microrregião com circulação local, onde deveria ocorrer a publicação, segundo o preceituado no artigo 111, parágrafo único, da Constituição Estadual.[16]
Por fim, quanto ao prazo de entrada em vigor da lei após a sua publicação, convém citar o disposto no art. 1º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”.