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Tribunal Penal Internacional e o ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 02/02/2015 às 12:33

O artigo tem por meta discorrer sobre Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, e analisar a compatibilidade ou não com o ordenamento jurídico brasileiro

1.Tribunal Penal Internacional – panorama geral

Atendendo as necessidades da comunidade internacional, em 17 de julho de 1998 foi criado, pelo Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional, pelos Estados que participaram da Conferência Diplomática dos Plenipotenciários das Nações Unidas para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, que entrou em vigor em 01 de julho de 2002, primeiro dia útil do mês subsequente ao transcurso de sessenta dias da data em que o sexagésimo Estado depositou seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, conforme determinação do parágrafo 1º do artigo 121:

“O presente Estatuto entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um período de 60 dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas”.

A ideia de manter uma corte para julgar crimes em âmbito internacional começou a ser mais bem trabalhada após a Segunda Guerra Mundial, com a criação dos tribunais de Nuremberg e Tóquio, para julgar nazistas e japoneses por crimes de guerra. Todos foram temporários e voltados para uma situação específica. Ainda no final da década de 40 do século passado, foi iniciada uma proposta para criar um tribunal internacional permanente, mas o projeto acabou arquivado.

A necessidade de manter uma corte permanente voltou à baila com a criação de mais dois tribunais temporários: um para julgar acusados nos conflitos da extinta Iugoslávia e outro para punir responsáveis por massacres em Ruanda. Em 1998, foi adotado o chamado Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. Com as 60 (sessenta) ratificações necessárias, quatro anos depois, nasceu o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, na Holanda.

É o primeiro tribunal penal internacional permanente independente, criado pelo Tratado de Roma, em 1998[1], em que membros adotaram tal diploma como base jurídica para criação deste tribunal para defesa das causas da humanidade.

Sobre a importância do Tribunal Penal Internacional, Ana Luísa Riquito leciona:

“O Estatuto do novelíssimo Tribunal Penal Internacional é nesta linha antropológica internacionalista, ambicioso: o Preâmbulo refere que o fundamento da sua competência jurisdicional lhe advém da própria comunidade internacional, que se une para punir os crimes da mais alta relevância à escala planetária. Esta audaciosa empreitada, porém, não pode ignorar décadas de crítica realista à assunção sequer da existência de uma tal comunidade e ao caráter essencialmente apologético do seu direito: isto é, em vez de adequado a realizar a utopia de uma cosmopolita paz universal, o Direito Internacional seria ainda e sobretudo tão somente ratificador da prática estadual e um instrumento dependente da prioridades dos grandes actores;

O surgimento do Tribunal Penal Internacional ocorre, pois, no seio da contradição entre o velho soberanismo/estatismo e o novo comunitarismo/universalismo, num ambiente que não se caracteriza nem por uma insularidade nacional absoluta, nem por uma suave integração jurisdicional, em matéria de crimes internacionais: o desenho esquissado pelo seu Estatuto não pode, por isso, deixar de refletir esta oscilação de paradigmas[2]”.

Segundo site do Tribunal Penal Internacional, atualmente são 122 países membros[3][4], sendo 34 Estados-Africanos, 18 são da Ásia-Pacífico, 18 são da Europa Oriental, 27 são de Estados da América Latina e Caribe, e 25 são de Estados europeus e de outros ocidentais.

A sede do Tribunal fica em Haia, na Holanda (Estado anfitrião) e é independente, sendo custeada por seus membros. Há possibilidade do Tribunal funcionar em outro local, sempre que se entender conveniente[5].

Diferentemente do Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas (ONU) e Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização Americana dos Direitos Humanos (OEA), o Tribunal Penal Internacional julga indivíduos, pois os dois outros julgam litígios entre Estados.

O que se tinha até então eram Tribunais de exceção, em que vencedores julgavam vencidos, comprometendo todas as garantias processuais existentes. São exemplos destes modelos o Tribunal de Nuremberg e de Tóquio.

A adesão ao Estatuto não permite reservas[6] e a apresentação de emendas a seu texto só poderia ocorrer após sete anos da entrada em vigor[7].

Outra característica importante é que o Estatuto não retroage, sendo considerado crime para o Tribunal, apenas crimes cometidos após a entrada em vigor do diploma legal, o que está em consonância com a legislação penal brasileira.

Os Estados Partes ficam obrigados a cooperar com o Tribunal[8], inclusive assegurando em seu direito interno, procedimentos necessários.

O Estatuto define o direito a ser aplicado, sendo em primeiro lugar o Estatuto e o Regulamento Processual, num segundo plano, há previsão de aplicação dos princípios e normas de direito internacional, na falta, é possível, ainda, os princípios gerais do direito que o Tribunal retire do direito interno dos diferentes sistemas jurídicos existentes, podendo utilizar-se de decisões proferidas anteriormente[9].

Regulamenta os direitos do acusado (ne bis in idem[10], nullum crimen sine lege[11], nulla sine lege[12], não retroatividade em razão da pessoa[13], responsabilidade individual[14], não aplicação para menores de 18 anos[15], igualdade[16], assistência de um advogado ou um defensor dativo[17], direito ao silêncio[18], conhecer acusação que pesa contra si[19], presunção de inocência[20] e outros direitos no decurso do processo[21]), além de procedimentos para proteção das vítimas e testemunhas[22] [23].

As penas privativas de liberdade serão cumpridas em Estado, determinado pelo Tribunal, dentre aqueles que manifestarem disposição para tanto, ficando o Tribunal responsável pela supervisão da execução da pena. Tanto o Tribunal pode transferir como o condenado pode solicitar a transferência de Estado para cumprimento de sua pena. Já as penas de multas e medidas de perdas são aplicadas pelos Estados parte, nos moldes do artigo 109[24] do Estatuto.

Quanto às partes, podem dar início à persecução penal internacional o Estado Parte, Conselho de Segurança das Nações Unidas e o Procurador que tiver dado início a um inquérito sobre um dos crimes de responsabilidade do Tribunal Penal Internacional.

O Procurador sponte propria, ou através de manifestação do Conselho de Segurança ou Estado Parte é a figura que apresentará a suposta violação.

Uma dos princípios que regem o Tribunal Penal Internacional é o da complementaridade[25]. Pois, se trata de instituição com funções complementares às jurisdições penais nacionais. Duas razões para este princípio: respeito à soberania dos Estados e a segunda diz respeito aos direitos humanos.

Elio Cardoso, a este respeito, leciona:

“Em repetidas situações, crimes de alta gravidade – violações graves e sistemáticas dos direitos humanos e do direito humanitário – foram cometidos impunemente por indivíduos em nome dos Estados, tanto no âmbito interno quanto internacional. (...) Na Conferência de Roma, o Brasil posicionou-se favoravelmente ao princípio da complementaridade, tendo aceito proposta segundo a qual caberia ao TPI determinar a admissibilidade de um caso, com base nos critérios de incapacidade ou falta de disposição dos Estados competentes para instaurar os processos[26]”.

Ana Luisa Riquito disserta sobre as razões subjetivas ou a falta de vontade dos tribunais nacionais:

“... considera-se que um Estado ‘não quer’ investigar e punir um dos crimes compreendidos no âmbito da competência material do TPI quando, tendo em atenção os princípios do processo justo e equitativo reconhecido pelo Direito Internacional, ocorra uma das seguintes situações: a) o processo ou a decisão a nível nacional foram tomadas com o propósito de subtrair a pessoa em questão à responsabilidade pelos crimes cometidos; b) tenha havido uma demora injustificada do processo que, nas circunstâncias do caso, seja inconsciente com a intenção de trazer o suspeito a julgamento; c) o processo não tenha sido, ou não esteja a ser conduzido de forma independente ou imparcial, o que, nas circunstancias do caso, revela a intenção de não julgar a pessoa em questão[27]”.

Superadas estas linhas iniciais, passaremos ao funcionamento do Tribunal Penal Internacional.

2. Funcionamento

O Tribunal é composto por quatro órgãos, sendo eles: Presidência, Seção de Recursos (uma seção de Julgamento de Primeira Instância e uma Seção de Instrução), o Gabinete do Procurador e Secretaria.

A Presidência é responsável pela administração geral do Tribunal, com a exceção do Gabinete do Procurador, e para funções específicas atribuídas à Presidência, de acordo com o Estatuto. A Presidência é composta de três juízes do Tribunal, eleitos para a presidência pelos seus colegas juízes, por um período de três anos.

Os juízes são eleitos e desempenham suas atividades em regime de exclusividade. São requisitos para investidura na função: pessoas de elevada idoneidade moral, imparcialidade e integridade, que reúnam os requisitos para o exercício das mais altas funções judiciais nos seus respectivos países. Os candidatos a juízes deverão possuir reconhecida competência em direito penal e direito processual penal e a necessária experiência em processos penais na qualidade de juiz, procurador, advogado ou outra função semelhante; ou reconhecida competência em matérias relevantes de direito internacional, tais como o direito internacional humanitário e os direitos humanos, assim como vasta experiência em profissões jurídicas com relevância para a função judicial do Tribunal. Ademais, os candidatos a juízes deverão possuir um excelente conhecimento e serem fluentes em, pelo menos, uma das línguas de trabalho do Tribunal.

Quanto às Divisões Judiciais é composto de dezoito juízes organizados na Divisão de Pré-Julgamento, a Divisão de Experimentação e da Divisão de Recursos. Os juízes de cada divisão se compõem em seções, que são responsáveis pela realização dos processos do Tribunal em diferentes fases.

O Gabinete do Procurador[28], que atua de forma independente, é responsável por receber referências e qualquer informação, devidamente fundamentada, sobre crimes da competência do Tribunal, para examiná-los e para a realização de investigações e processos perante o Tribunal. Os requisitos para Procurador e Procurador adjunto são: ter elevada idoneidade moral, elevado nível de competência e vasta experiência prática em matéria de processo penal. Deverão possuir um excelente conhecimento e serem fluentes em, pelo menos, uma das línguas de trabalho do Tribunal[29].

A Secretaria é responsável pelos aspectos não judiciais da administração e do funcionamento do Tribunal, sem prejuízo das funções e atribuições do Procurador. É chefiada pelo secretário, que é o principal responsável administrativo do Tribunal. O secretário exerce as suas funções sob a autoridade do Presidente do Tribunal. É escolhido através de eleição, por período de cinco anos, cabendo reeleição uma vez[30].

Segundo o Tratado, as línguas francesa, inglesa serão as línguas de trabalho do Tribunal, sendo, ainda que a pedido de qualquer Parte ou qualquer Estado que tenha sido admitido a intervir num processo, o Tribunal autorizará o uso de uma língua que não seja a francesa ou a inglesa, sempre que considere que tal autorização se justifica[31]. As línguas árabe, chinesa, espanhola, francesa, inglesa e russa serão as línguas oficiais do Tribunal. As sentenças proferidas pelo Tribunal, bem como outras decisões sobre questões fundamentais submetidas ao Tribunal, serão publicadas nas línguas oficiais[32].

Estados Partes ou ao Conselho de Segurança das Nações Unidas pode referir-se situações de crimes da competência do Tribunal para o Ministério Público. O Procurador avalia a informação disponível e inicia um inquérito. Entendendo que não há razão para prosseguimento, deve fundamentar sua decisão, sendo que a todo momento pode reconsiderá-la, com base em novos fatos e novas informações, à semelhança do que prevê o artigo 18 do Código de Processo Penal Brasileiro.

O Procurador também poderá alargar o inquérito, investigando as circunstâncias que interessam a defesa ou acusação. Se o Procurador concluir que há uma base razoável para proceder a uma investigação, ele pede um juízo de instrução para autorizar uma investigação. O Procurador investiga as circunstâncias agravantes e atenuantes igualmente e respeita plenamente os direitos do acusado[33].

Durante o transcurso da investigação, cada situação é atribuída a um juízo de instrução, que é responsável pelos aspectos jurídicos do processo. Entre suas funções, o Juízo de Instrução, a pedido do Procurador, poderá adotar as medidas que entender necessárias para assegurar a eficácia e integridade do processo, como, emitir um mandado de detenção ou uma intimação para comparecer, se houver motivos razoáveis para crer que uma pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal.

Após a confirmação das acusações, o caso é atribuído a uma secção de três juízes de julgamento. A Câmara de Julgamento é responsável pela condução de processos imparciais e rápidos, com pleno respeito aos direitos do acusado. Este é presumido inocente até que se prove a culpa pelo Procurador.

O acusado tem o direito de realizar a defesa pessoalmente ou através de advogado de sua escolha. As vítimas podem também participar em processos diretamente ou através de seus representantes legais.

Após a conclusão do processo, a Câmara de Julgamento emite a sua decisão, absolvendo ou condenando o acusado. Este, sendo condenado, o juízo emite uma sentença por um período determinado de até 30 anos ou, quando justificada pela extrema gravidade do crime e as circunstâncias individuais da pessoa condenada, comina a pena de prisão perpétua. Há também a possibilidade de aplicação de multa e perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo de terceiros que tenham agido de boa-fé.

O artigo 75 do Estatuto disciplina sobre a reparação das vítimas, na forma de restituição, a indenização ou a reabilitação, a ser atribuídas às vítimas ou aos titulares desse direito. A indenização pode ser paga pelo Fundo em favor das vítimas, previsto no artigo 79 do mesmo diploma legal.

De fundamental importância são alguns procedimentos que são tomados tanto com testemunhas, como com as vítimas, pois testemunhas que correm risco de morte podem requerer medida protetiva. Já as vítimas têm a proteção do anonimato.

3. Competência

O Tribunal Penal Internacional tem caráter excepcional e complementar ao exercício da jurisdição penal dos Estados. Somente pode haver intervenção deste organismo internacional em casos em que se verifiquem a incapacidade ou falta de disposição dos Estados em processar os responsáveis por crimes previstos no Estatuto.

O Tribunal tem competência para julgar apenas genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.

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3.1. Genocídio

O artigo 6º do Estatuto de Roma traz a definição de genocídio:

Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:

a) Homicídio de membros do grupo;

b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;

d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;

e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

A autora portuguesa Ana Isabel Rosa Pais traz a importância do crime de genocídio para os entes internacionais:

“A comunidade internacional refere-se amplamente ao crime de genocídio como sendo o mais hediondo dos crimes internacionais. (...) A consciência internacional da prática do genocídio emergiu e consolidou-se com a descoberta aterradora das atrocidades cometidas pela Alemanha Nazi, durante a II Guerra Mundial. A consciência da Humanidade vacilou perante a evidência da barbárie colectiva. (...) De todo modo, do ponto de vista jurisdicional, são meritórias as iniciativas encetadas pela comunidade internacional, e, em especial, pela Organização das Nações Unidades, e óbvios os progressos atingidos nesta matéria, uma matéria, uma vez que, com a criação dos Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para o Ruanda e, mais recentemente, com a instituição do Tribunal Penal Internacional, se logrou a consolidação da responsabilização penal individual pela prática de Crimes contra a Humanidade, entre os quais o crime de genocídio. Estas constituem etapas fulcrais, ainda que suficientes, na luta contra a impunidade dos responsáveis pelos atentados aos direitos humanos a uma escala mundial[34]”.

Segundo a doutrina o crime de genocídio ocorre em duas etapas. A primeira se dá com a destruição do grupo oprimido, já a segunda, na imposição do modelo do grupo opressor sobre os membros oprimidos[35].

3.2. Crimes de guerra

O Diploma legal, em seu artigo 8º elenca rol dos crimes de guerra[36].

3.3. Crimes contra humanidade

O Estatuto define como crime contra a humanidade, qualquer um dos atos, quando cometido em um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

3.4 Crimes de agressão

O crime de agressão tem peculiaridade, pois segundo determina o parágrafo 2 do artigo 5º, o Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime.

Cumpre esclarecer que há neste gênero delituoso uma relevância penal muito superior, quando comparado com o crime de lesão corporal abarcado pela codificação penal brasileira.

Para Elio Cardoso:

O crime de agressão foi definido como o planejamento, a preparação, o início ou a execução, por pessoa em posição efetiva para exercer controle ou dirigir a ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão o qual, pelo seu caráter, gravidade e escala, constitui violação manifesta a Carta das Nações Unidas[37]

4.Casos já julgados

  1. - Thomas Lubanga Dyilo - República Democrática do Congo[38]

Thomas Lubanga Dyilo foi o primeiro réu a ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, em 2006. Foi acusado de recrutar crianças com menos de 15 para lutar nos conflitos étnicos na região entre 2002 e 2003, na República Democrática do Congo. O processo foi remetido ao Tribunal pelo governo da República Democrática do Congo, em abril de 2004. Dyilo chegou a ser liberado, mas a acusação entrou com novo recurso e voltou a ser preso. Em 2012 houve a condenação: 14 anos de prisão.

A brasileira Sylvia Steiner, juíza do Tribunal Penal Internacional, participou da instrução do processo. Fez parte de uma das câmaras de pré-julgamento.

  1. - Muammar Mohammed Abu Minyar Gaddafi (Muamar Kadafi)

Foi o Chefe de Estado da Líbia e Comandante das Forças Armadas. Teve mandado de prisão emitido em junho de 2011. O caso deu-se por encerrado, após a morte do réu.

  1. - Bahar Idriss Abu Garda

Foi líder da Frente Unida para a Resistência, um grupo rebelde de Darfur. Acabou não sendo julgado por crimes de guerra, conforme decisão Corte Penal Internacional.

Em 8 de fevereiro de 2010, Juízo de Instrução recusou-se a confirmar as acusações contra Abu Garda. Em 23 de abril de 2010, Juízo de Instrução emitiu uma decisão que indeferiu o pedido do Ministério Público para recorrer da decisão recusando-se a confirmar as acusações.[39].

  1. - Mathieu Ngudjolo Chui – Congo

Contra si pesam três crimes contra a humanidade: assassinato; escravidão sexual, além de sete crimes de guerra: usando as crianças sob a idade de 15 anos a tomar parte ativa nas hostilidades; deliberadamente dirigir um ataque contra uma população civil como tal ou contra civis individuais ou contra pessoa civis que não participem diretamente nas hostilidades; homicídio intencional; destruição de propriedade; pilhagem, a escravidão sexual e estupro.

Em 18 de dezembro de 2012, o juízo de instrução absolveu Mathieu Ngudjolo Chui das acusações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade e ordenou sua libertação imediata. Em 21 de dezembro de 2012, Mathieu Ngudjolo Chui foi libertado da custódia. O Gabinete do Procurador apelou da sentença[40].

  1. O Tribunal Penal Internacional e o ordenamento jurídico brasileiro

Não só o Brasil, mas outros[41] países que ratificaram o Tratado de Roma encontram problemas com seus sistemas jurídicos internos. A respeito do tema, Vital Moreira leciona:

“A ratificação do TPI por parte de Portugal suscitou, tal como noutros países. O problema da sua compatibilidade com a Constituição, isto é, saber se era necessário ou não rever a Constituição para proceder à vinculação nacional ao Estatuto de Roma. Tal como em vários outros países, surgiram duas visões contraditórias sobre esse problema. Parafraseando uma autora que se pronunciou sobre esta matéria (Hellen Duffy, p. 6), as duas teses foram por um lado a ‘tese interpretacionista’ e por outro lado a ‘tese revisionista’. Segundo a tese interpretacionista bastava uma hábil interpretação da Constituição para que se a ratificação do Estatuto de Roma não precisasse de uma revisão constitucional. Esta tese interpretacionista tece defensores qualificados em Portugal, havendo um célebre parecer nesse sentido do actual Procurador-Geral da República (nessa altura ainda Procurador-Geral Adjunto, José Souto de Moura), datado de 27 de janeiro de 2000, que acompanhou a proposta governamental de aprovação parlamentar do Estatuto de Roma, opinião que foi secundada, aliás, por algumas personalidades importantes. Por outro lado, contrapôs-se a tese revisionista, ou seja, a tese de que não havia interpretação constitucional possível que compatibilizasse o TPI com a Constituição, pelo que era necessário proceder a uma revisão da Lei Fundamental para acolher o Tratado. Essa tese foi a que prevaleceu em Portugal, a meu ver bem – sempre defendi que não era possível nenhuma interpretação compatibilizadora -, tal como em França, no Luxemburgo, na Bélgica, no Brasil e em vários outros países[42]”.

O que se nota é que, muito embora o Estatuto de Roma tenha papel fundamental no ordenamento internacional, alguns de seus institutos estão em conflito com o ordenamento pátrio.

5.1 Prescrição

Com a adesão ao Estatuto de Roma pelo Estado brasileiro e, por conseguinte, sua incorporação à ordem jurídica interna, as questões relativas à prescrição também parecem ter sido ofendidas pela norma internacional em comento.

Inicialmente, é oportuno registrar que prescrição em âmbito do Direito Penal, em síntese, consiste no prejuízo do ius puniendi do Estado por falta do seu exercício em determinado lapso temporal.

Atualmente, o Código Penal vigente no Brasil prevê duas espécies de prescrição. Uma, a ação penal (qual poderá ocorrer antes ou durante a instrução processual pendente de trânsito em julgado). Outra, referente à condenação do réu (qual está para a pretensão executiva da sanção penal imposta ao réu)[43].

Outrossim, a própria Constituição Federal de 1988 tratou de excepcionar a imprescritibilidade penal, registrando como imprescritíveis apenas os crimes de racismo e de grupamento armado, civil ou militar, que vise atentar contra a Carta Magna e a instituição do Estado Democrático de Direito[44]. Por essa razão, certo que a todos os demais tipos penais reconhecidos pelo ordenamento jurídico interno, estão à mercê dos efeitos da prescrição em favor do réu.

Todavia, o Estatuto de Roma disciplina que os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão, são imprescritíveis[45].

Neste passo, evidente que o epicentro da problemática estaria na possibilidade de sujeitar o cidadão brasileiro, à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, sem lhes assegurar o benefício da prescritibilidade conferida pela ordem jurídica interna.

Para solucionar a questão, cabe evocar o entendimento de Paula da Rocha e Silva acerca da matéria:

(...) vislumbra-se que a doutrina e a jurisprudência possibilitam o alargamento do rol de imprescritibilidade por norma ordinária. Diante disso e, considerando que o Estatuto de Roma foi – a nosso ver – incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro como norma constitucional, maior razão há para se considerar absolutamente legítimo o alargamento do rol da imprescritibilidade, para fazer incluir nele o crime de agressão, os crimes contra humanidade, os crimes contra a guerra e o genocídio[46]”.

Parece acertado compartilhar do entendimento acima, principalmente, tendo em mente, a essência que definiu a teleologia do Tribunal Penal Internacional, qual consiste em acautelar a prevalência dos direitos humanitários.

Como é o tratado que versa sobre Direitos Humanos, notório que as normas ali contidas passaram a integrar o ordenamento positivo brasileiro com equivalência à edição de Emenda Constitucional[47]. Logo, o conflito em comento se mostra apenas aparente, pois, a Carta Magna admite a imprescritibilidade, ainda que pela via da exceção.

Assim, a partir do momento que o Estado brasileiro admitiu ser signatário do Estatuto de Roma, inseriu em sua ordem jurídica, reconhecendo, desde então, a extensão da imprescritibilidade dos crimes de competência da Corte Internacional.

Ademais, há que se reiterar a relevância penal dos crimes sob a jurisdição daquele Tribunal Penal Internacional.

Cristalino que, caso fosse admitida a prescrição como paradigma no Estatuto de Roma, o risco de os criminosos terminarem impunes seria considerável e iminente. Além disso, comprometer-se-ia a função ostensiva implícita daquela Corte, culminando no declínio certo da credibilidade e da soberania a ela conferida pelos Estados Partes.

Isto posto, e comungando com as conclusões alcançadas[48] por Paula da Rocha e Silva, evidente que, neste caso, o direito individual à prescritibilidade cai por terra diante da materialidade dos crimes submetidos à competência do Tribunal Penal Internacional, para, por conseguinte, garantir a preservação da paz, da segurança e do bem-estar da humanidade.

Posição diversa é a de Luiz Luisi e merece transcrição:

“Outro assunto relevante e polêmico é o da prescrição. Não há razões, em meu entendimento, para a imprescritibilidade de certos delitos internacionais. Ou a prescrição é um princípio válido e deve ser aplicada a todos os crimes, ou não sendo legítimo o fundamento da prescrição deve a mesma ser banida do direito penal em geral. A imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa humanidade ajustados em convenção datada de 26 de novembro de 1968, e com vigência a partir de 11 de novembro de 1970, não me parece ter sido postura juridicamente corretas[49]”.

5.2 Soberania

É por meio do reconhecimento de sua soberania que um Estado, efetivamente, pode se auto afirmar internamente, para, assim, tornar-se personalidade apta a desenvolver políticas e normas de conduta, necessárias à satisfação dos interesses da coletividade a que representa.

Por sua vez, a espinha dorsal que estrutura esta imensa ficção jurídica, é, sem sombra de dúvidas, a sua Lei Maior: a Constituição Federal.

Todavia, os novos tempos impulsionaram as antigas teorias acerca da constituição do Estado a galgarem, pois, um patamar ainda mais complexo na atual ordem globalizada.

Isto significa dizer que, na atualidade, os Estados passaram a interagir entre si de forma muito mais intensa, algo que lhes permitiu a formação de comunidades internacionais, pautadas, fundamentalmente, nos princípios da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, do respeitando a dignidade da pessoa humana e da prevalência dos Direitos Humanos, apesar das diferenças econômicas, culturais e sociais.

Contudo, aderir a uma macro relação jurídica multilateral, onde os Estados Partes interessados apresentam significativas divergências socioculturais, por certo, ainda que voltada a garantir a tutela de bem jurídico de tamanha relevância, as normas que dali derivam, de algum modo, poderão colidir com o ordenamento jurídico interno respectivo.

A soberania de um Estado deve ser considerada sob dois aspectos: o interno e o internacional (externo). Soberania interna consiste no poder que o Estado tem de editar e faz cumprir leis e ordens, quais não podem ser limitadas ou restringidas por nenhum outro poder (a exemplo, destacam-se as "cláusulas pétreas" insertas em nossa Constituição). Já a soberania internacional, indica que nas relações recíprocas entre os Estados, não há subordinação nem dependência, mas sim igualdade, como preceituam as Cartas da ONU e da OEA.

Ainda que distinta a visão perante cada uma as ordens internas e externas, a dialética acerca da prevalência dos tratados, convenções e etc., no momento em que aqueles passam a incorporar o ordenamento jurídico do Estado aderente, não está totalmente pacificada.

Para melhor esclarecimento, evocam-se os ensinamentos de Pinto Ferreira:

O problema da incorporação dos tratados à ordem interna do País é polêmico. Delineiam-se duas correntes: a) monista, para qual não existem limites entre a ordem jurídica internacional e a ordem interna, e assim, uma vez celebrado o tratado, este obriga no plano interno, mesmo sem nenhuma outra finalidade; b) dualista, para o qual existe uma dualidade de ordens jurídicas, uma interna e outra externa, sendo então necessário e indispensável um ato de recepção introduzindo as regras constantes do tratado celebrado no plano de direito interno positivo[50]”.

No caso do Brasil, destaca-se que o preâmbulo da Carta Magna de 1988 sintetizou com maestria os compromissos assumidos pela sociedade brasileira tanto para sua ordem interna, como na internacional[51].

Por isso, cumpre aqui salientar que na Constituição brasileira, de acordo com seu artigo 5º, § 2º, direitos e garantias expressos não excluem outros decorrentes de regimes princípios ou tratados internacionais por ela adotados.

Não obstante, no mencionado artigo 5º da Carta Política, o § 1º registra que normas internacionais aderidas pelo Estado brasileiro, referentes a direitos e garantias fundamentais, têm aplicação imediata.

A incorporação imediata de tratados que versem sobre Direitos Humanos, segundo algumas correntes, indica que, exclusivamente, nestes casos, o ordenamento jurídico interno se curvaria à concepção monista.

O Brasil, portanto, não deve estranhar intervenção de velhos e novos limites ao exercício da soberania na ordem interna, como forma de preservação dos direitos fundamentais, ao aderir Tratados de Direitos Humanos.

Inclusive, compartilha o Supremo Tribunal Federal do mesmo posicionamento aqui sustentado, fundamenta seu entendimento que ao estabelecer em seus princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos Direitos Humanos, a Carta Magna autoriza a imediata incorporação dos tratados relativos à matéria.

Neste sentido, cabe destaque aos seguintes precedentes representativos:

Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matérias de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente. O art. 7º (n.º 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma: 'Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.' Com a adesão do Brasil a essa convenção, assim como ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão 'depositário infiel', e, por consequência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (...) deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...).Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal par aplicação da parte final do art.5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.RE 466.343 (DJe 5.6.2009) - Voto do Ministro Gilmar Mendes - Tribunal Pleno.

DIREITO PROCESSUAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. ALTERAÇÃO DE ORIENTAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. A matéria em julgamento neste habeas corpus envolve a temática da (in)admissibilidade da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do Pacto de São José da Costa Rica no direito nacional. 2. Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7°, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. 3. Na atualidade a única hipótese de prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art. 5°, §2°, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matéria de direitos humanos, expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e, conseqüentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel. 4. Habeas corpus concedido.HC 95.967 (DJe 28.11.2008) - Relatora Ministra Ellen Gracie - Segunda Turma.

Deste modo, considerando que o ordenamento jurídico interno do Estado brasileiro, em concepção monista, admite a incorporação automática de Tratados de Direitos Humanos, e sendo o Tratado de Roma norma que notoriamente versa sobre a matéria em apreço, admitir submissão à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, não ofende diretamente a soberania interna da Constituição Federal de 1988, posto que, há ali como finalidade resguardar a supressão dos direitos e garantias fundamentais do ser humano.

5.3 Prisão de perpétua

Outra polêmica que pode se extrair da aplicação do Estatuto de Roma frente a nossa Constituição Federal de 1988, consiste nas penas que foram conferidas ao Tribunal Penal Internacional, a fim de punir aquele que atentar contra os direitos e garantias fundamentais do ser humano.

Dentre elas, há no artigo 77, alínea “b”, do mencionado Estatuto, previsão para cominação em pena privativa de liberdade perpétua.

Em contra partida, expressamente, a Carta Magna Brasileira registra no seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b”, que não haverá no ordenamento jurídico interno previsão legal de penas privativas de liberdade em caráter perpétuo.

Nesta hipótese, é acertado admitir que a redação da Constituição Federal de 1988, se sobrepõe à norma internacional, e por uma simples razão: a prisão perpétua de um indivíduo caracteriza, igualmente, afronta aos direitos de garantias fundamentais, porém, do próprio criminoso, inserido na qualidade de ser humano.

Por conseguinte, se a teleologia que permitiu a criação de Corte Internacional, voltada a combater crimes praticados contra a humanidade, bem como resguardar, assim, a supremacia dos Direitos Humanos, não resta qualquer dúvida que a aplicação pena perpétua se trata de um desserviço aos Estados Partes.

É possível constatar que a manutenção de tal reprimenda pela comunidade internacional, representaria uma versão moderna da velha Lei de Talião. Ou seja, o criminoso que ofendeu gravemente o bem jurídico tutelado, será punido com o eterno detrimento dos direitos e garantias fundamentais que, em tese, também foram consagrados àquele indivíduo.

Entretanto, mostra-se imperioso compreender o porquê que a sanção perpétua acabou prestigiada pelo Estatuto de Roma.

A priori, insta esclarecer que o escopo da prisão perpétua não é outro senão segregar definitivamente um indivíduo criminoso do convívio social, ceifando-o de sua liberdade como cosequência de prática criminosa gravíssima.

Ato contínuo, por ocasião da apresentação do projeto do tratado em comento à Comissão de Direito Internacional, havia no texto original a previsão da pena de morte, fato que deu início a uma série de discussões.

Naquela oportunidade existiam Delegações que viam a pena de morte como justa, sendo perfeitamente admissível seu uso nos casos considerados mais graves. Contrapondo-se, outras Delegações demonstravam o desinteresse na inserção da pena capital, por entenderem ser contrária às diretrizes que dão suporte aos direitos e garantias fundamentais do ser humano.

Claus Kreb, acerca do uso ou não da pena de morte, asseverou:

Alguns Estados expressaram firmemente que sua visão no sentido de que, em alguns casos, somente a pena capital poderia fazer frente à gravidade dos crimes previstos na competência do Tribunal Penal Internacional. Em particular era sentido por essas delegações que seria inaceitável que os criminosos tivessem tratamento mais brando por parte da Corte do que teriam na jurisdição nacional[52]”.

Axiologicamente, extraiu-se destes posicionamentos a necessidade de equilibrar o tratado perante diante da realidade jurídico-penal respectiva a cada um dos Estados aderentes, razão pela qual prevaleceu o preceito secundário da pena privativa de liberdade ad eternum.

Diante de tamanho embate, mesmo sendo este o meio termo, algumas Delegações, como, por exemplo, as brasileiras e as portuguesas[53], visto que suas ordens jurídicas internas mantêm vedação à aplicação desta espécie de pena, alimentaram a discussão acerca da não introdução da penalidade perpétua, considerando que, ao aderir tal tratado, estes Estados Parte poderiam por em risco seu sistema penal.

Sendo esta a única maneira de firmar o tratado, apesar da pressão contrária à possibilidade de cominação na pena de morte, optar pela aceitação da inserção da pena perpétua foi o único modo que se encontrou para tornar viável o Estatuto de Roma.

Noutro giro, acerca do fato de o Tribunal Penal Internacional ter a seu alcance a possibilidade de cominar pena perpétua, alguns estudiosos entendem que não se teria um conflito real entre as normas jurídicas internas e internacionais. Para Valerio de Oliveira Mazzuoli:

(...) não obstante a vedação das penas de caráter perpétuo ser uma tradição constitucional entre nós o Estatuto de Roma de forma alguma afronta a Constituição (como poderia pensar numa leitura descompromissada de seu texto); mas ao contrário, contribui para coibir os abusos e as inúmeras violações de direitos humanos que se fazem presentes no planeta, princípio esse que sustenta corretamente a tese de que a dignidade da sociedade internacional não pode ficar à margem do universo das regras jurídicas[54]”.

E continua:

(...) a interpretação mais correta a ser dada para o caso em comento é a de que a Constituição, quando prevê a vedação de pena de caráter perpétuo, está direcionando o seu comando tão-somente para o legislador interno brasileiro, não alcançando os legisladores estrangeiros e tampouco os legisladores internacionais (...) A pena de prisão perpétua – que não recebe a mesma ressalva constitucional conferida à pena de morte – não pode ser instituída dentro do Brasil, quer por meio de tratados internacionais, quer mediante emendas constitucionais, por se tratar de cláusula pétrea constitucional. Mas isso não obsta, de forma alguma, que a mesma pena possa ser instituída fora do nosso país, em tribunal permanente com jurisdição internacional, de que o Brasil é parte e em relação ao qual deve obediência, em prol do bem estar da humanidade[55]”.

Com a devida vênia, exclusivamente neste aspecto, não parece acertado se irmanar a tal posicionamento.

Destacando o estudo realizado por Paula da Rocha e Silva, ressalta-se que:

Uma vez incorporado, o tratado tem caráter imperativo e, a nosso ver, a imperatividade é máxima, uma vez que os tratados de direitos humanos possuem caráter constitucional. Neste diapasão, não se pode considerar que sejam ordens absolutamente diferentes: ou a norma se aplica no ordenamento jurídico ou não se pode dizer que o pacto foi efetivamente incorporado ao ordenamento brasileiro[56]”.

Tais argumentos encontram guarida nas conclusões de Cezar Roberto Bittencourt, que destaca a existência de um conflito real entre o Estatuto de Roma e a Constituição Federal de 1988:

O princípio de humanidade do Direito Penal é o maior entrave para a adoção da pena capital e da prisão perpétua. Esse princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados. A proscrição de penas cruéis e infamantes, a proibição de tortura e maus tratos nos interrogatórios policiais e a obrigação imposta ao Estado de dotar sua infra-estrutura carcerária de meios e recursos que impeçam a degradação e a dessocialização dos condenados são corolários do princípio de humanidade, que não se compatibiliza com penas perpétuas. O princípio de humanidade – afirma Bustos Ramirez – recomenda que seja reinterpretado o que se pretende com “reeducação e reinserção social”, posto que, se forem determinados coativamente, implicarão atentado contra a pessoa como ser social. Concluindo, nesse sentido, nenhuma pena privativa de liberdade pode ter uma finalidade que atente contra a incolumidade da pessoa como ser social. Por outro lado, não estamos convencidos de que o Direito Penal, que se fundamenta na culpabilidade, seja instrumento eficiente para combater a criminalidade moderna e a criminalidade internacional. A insistência de governantes em utilizar o Direito Penal como panacéia de todos os males não resolverá a insegurança de que é tomada a população e o máximo que se conseguirá será destruir o Direito Penal, se forem eliminados seus princípios fundamentais. Por isso, a sugestão de Hassemer, de criação de um Direito de Intervenção, para o combate da criminalidade moderna, merece, no mínimo, uma profunda reflexão. Finalmente, um sistema penal – pode-se afirmar – somente estará justificado quando a soma das violências – crimes, vinganças e punições arbitrárias -  que ele pode prevenir for superior ao das violências constituídas pelas penas que cominar. É, enfim, indispensável que os direitos fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis, afastados da livre disposição do Estado que, além de respeitá-los, deve garanti-los[57]”.

Ainda, para Paula da Rocha e Silva:

Diante da natureza jurídica das normas em conflito, quais sejam, regra constitucional de direito individual fundamental e norma de direito fundamental de duplo caráter, é possível afirmar que se está diante de uma antinomia real de segundo grau, a qual deve ser resolvida por meio do princípio supremo da justiça, pelo qual se deve escolher a norma mais justa. A nosso ver, o princípio supremo da justiça em muito se assemelha ao princípio da proporcionalidade, pois a solução mais justa a ser encontrada é a mais adequada e menos gravosa possível[58]”.

Isto posto, apesar dos conflitos técnico-jurídicos observados, o Brasil ratificou sem reservas o Estatuto de Roma, devendo, portanto, aceitar a imposição da pena perpétua aos seus naturais, caso submetidos à jurisdição daquele Tribunal Penal Internacional, não obstante esta modalidade de prisão represente um retrocesso no sistema internacional de proteção humanitária, em prol de um bem jurídico supremo, tutelado pela comunidade internacional globalizada. O que se espera, com urgência, é a revisão do texto para exclusão da pena de prisão perpétua.

5.4 Extradição

Conforme define o Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional é competente para julgamento de crimes considerados mais graves, quais afetam a comunidade internacional em seu conjunto.

Assim, temos que o alcance do Tribunal Penal Internacional restringe-se à análise de 04 (quatro) gêneros criminosos, sendo eles: crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.

A competência para processar e julgar daquela Corte Internacional será sempre subsidiária, ou seja, atuará sempre de forma complementar, considerando que a primazia da atuação prevalece conferida ao próprio Estado para que ele mesmo julgue o seu cidadão. Denota-se que o Estatuto de Roma respeitou a soberania do Estado Parte, não intervindo enquanto aquele agir no sentido de punir os criminosos[59].

Uma vez que submetido indivíduo à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o referido tem a seu alcance um instituto denominado surrender (entrega), qual possibilita a apresentação do sujeito à presença daquele para julgamento. Trata-se de procedimento congênere a uma extradição, embora, distintos em suas essências.

Dispõe o artigo 102 do Estatuto de Roma que a “entrega” consiste na entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal Penal Internacional. Já a “extradição”, define-se pela entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado, conforme previsto em tratado ou convenção específica firmada entre ambos ou no próprio direito interno.

Neste diapasão, parece que o instituto surrender (entrega) cria conflito direto com a Constituição Federal brasileira, no que tange a vedação expressa de extradição de brasileiro nato. Algo, inclusive, que preocupou a Delegação brasileira que por ocasião das negociações para aprovação do Estatuto de Roma.

Leisa Boreli Prizon, no que atine à matéria, em sua dissertação para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afastou, com brilhantismo, a possibilidade de atentado às normas constitucionais internas, registrando a exegese de TARCISO DAL MASO JARDIM e ANTÔNIO PAULO CACHAPUZ DE MEDEIROS, respectivamente[60]:

Não se trata do antigo instituto da extradição, que se reporta a entrega de uma pessoa, submetida à sentença penal (provisória ou definitiva), de uma jurisdição soberna a outra. Trata-se de entrega sui generis, em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdição internacional que ajudou a construir”.

É essencial para que se garanta a efetiva administração da Justiça Penal Internacional que esta tenha a faculdade de determinar que os acusados da prática dos crimes reprimidos pelo Estatuto sejam colocados à disposição do Tribunal. Seria inútil o esforço de criar o Tribunal Penal Internacional caso não se conferisse ao mesmo o poder de determinar que os acusados sejam compelidos a comparecer em juízo. O Estatuto de Roma fixou um regime de cooperação entre os Estados-partes e o Tribunal Penal Internacional, fundamental para a viabilidade e o êxito da instituição. (...) Integra este dever de cooperação a obrigação de prender e entregar os acusados ao Tribunal”.

Isto posto, e considerando que o Tribunal Penal Internacional, criado a partir da cooperação conjunta dos Estados Partes, com o fito de punir o indivíduo que concorrer para prática de crimes graves contra humanidade, de fato, não seria razoável admitir justificativa fundada no ordenamento jurídico interno do Estado brasileiro, para denegar a entrega de cidadão nato à jurisdição daquela Corte. Por conseguinte, destaca-se que se suprimido o instituto da “entrega”, perder-se-ia relevante instrumento, capaz de submeter o criminoso ao crivo das penas disponibilizadas àquele Tribunal.

O autor português, Pedro Caeiro, sobre a entrega e extradição disciplinada no Tratado de Roma, toma posição:

“O êxito dos procedimentos de entrega de um cidadão será, inquestionavelmente, o termômetro da viabilidade do Tribunal, pois aí convergem, de forma imediata, as grandes linhas de tensão do Estatuto de Roma: efectividade da jurisdição do Tribunal, co-constituição da justiça internacional penal por parte dos Estados e respeito pelos direitos do visado. Numa matéria de tão extraordinária delicadeza, os arquitectos, em equilíbrio difícil e inteligente, guardando uma prudente distância do brocardo ‘fiat iustitia pereat mundus’. Assim, saiba o Tribunal, no exercício concreto da sua jurisdição, compreender que, tão importante como assegurar a justiça penal no mundo, é preservar o mundo a que ela se destina[61]”.

Sobre as dificuldades de adequação do Estatuto de Roma ao ordenamento jurídico pátrio, Luiz Luisi arremata:

“Extremas, portanto, são as dificuldades para que os Países onde a proibição das penas perpétuas é constitucional, para ratificação do Estatuto de Roma. Em geral as disposições proibitivas das penas perpétuas estão inseridas num elenco dos direitos e garantias individuais. É o ocorrente na Constituição brasileira. E o mais relevante é que as normas inseridas neste título têm sido entendidas como pétreas, ou seja: não podem ser suprimidas ou alteradas mediante Emendas Constitucionais. Somente uma nova Constituição, revogando a anterior, poderia não prever a proibição das penas perpétuas. (...) No caso brasileiro os empecilhos à ratificação não se restringem ao problema da disposição que no Estatuto prevê a reclusão perpétua. O conflito também se verifica por não ter o Estatuto individualizado a pena para cada um dos tipos penais nele previstos. (...) O impasse, portanto, é de evidência induvidosa. E mesmo insuperável, pois está a exigir, ou uma nova Constituição Brasileira, ou uma nova redação do artigo 77 do Estatuto. Lamentavelmente ao elaborar-se o Estatuto de Roma a Corte Penal Internacional prevaleceram ranços de uma concepção do direito penal com função marcadamente retribucionista. Enfoque este persistente qual erva daninha, e de forte presença, como faz certo a adesão de ponderáveis setores ao famigerado movimento da lei e da ordem, estimulados pelos ditos formadores de opinião geralmente jejunos em matéria penal, e que tem gerado um clamor por uma desvairada ampliação do campo de incidência das normas incriminadoras e uma severidade cada vez maior das penas[62]”.

  1. Conclusão

Não se nega a importância e a necessidade de um Estatuto para tratar de crimes que afetam a humanidade. O ser humano deve ser passível proteção sempre e mesmos nos lugares mais distantes que a civilização possa conhecer. Não há mais dúvida que o Direito, em especial, os Direitos Humanos, ultrapassam fronteiras, mesmo sem afrontar soberania, em nome do ser humano, seja ele brasileiro, russo, italiano, haitiano, africano.

O que não é possível admitir que em nome de um direito internacional, outros tantos direitos conquistados pela humanidade, sejam colocados de lado.

O acusado, ainda que lhe sejam imputadas as práticas mais atrozes, não pode aguardar eternamente pelo desenrolar de seu processo, sob o manto da imprescritibilildade que o Estatuto de Roma prevê.

No mesmo sentido é a manutenção da pena de prisão perpétua no rol de penas aplicáveis do Estatuto de Roma. O argumento de a pena de prisão perpétua teve que ser aceita para não ser a eleita a pena de morte, não se sustenta. Admitir pena perpétua é continuar compactuando contra a humanidade, apenas e tão somente, revestido de legalidade.

No caso do Brasil, os dois institutos citados acima, afrontam seu ordenamento interno. Imprescritibilidade é exceção e elas estão no Texto Constitucional. Prisão perpétua, não é possível, pois, a Constituição veda.

O que se espera é que o Estatuto de Roma se adeque não só as legislações da maioria dos seus Estados Parte, mas aos reclames da humanidade.

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Sobre o autor
Luciana Rossato Ricci

Advogada. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior da Advocacia - ESA/SP. Mestranda em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.

Informações sobre o texto

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