I. Introdução
Há muito que se revelar sobre o controle de constitucionalidade das leis municipais. Primeiramente, faz-se necessária explanação acerca dos princípios que fundamentam o controle de constitucionalidade, uma identificação do sistema de controle de constitucionalidade conduzido pelo ordenamento brasileiro, uma descrição breve do que seja a via recursal extraordinária, e por último, uma análise do princípio da autonomia municipal e do que dela decorre, para que nos seja possível uma análise firme da atividade do controle de constitucionalidade da lei do município frente às constituições federal e estadual.
II. Princípio da Supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade
A Constituição Federal de 1988, lei fundamental de todo ordenamento brasileiro, encontra no princípio da supremacia argumento básico para a criação de instrumentos que a protejam de quaisquer condutas que contrariem sua configuração. O princípio em questão confirma que as normas constitucionais são fundamento de validade para todas as demais disposições do ordenamento – é necessário reconhecer essa hierarquia de normas, onde a constituição assume um caráter de “superlegalidade”1, fazendo uso da expressão dos escritos do mestre Paulo Bonavides. Pelo o que dita Celso Ribeiro Bastos: "as normas de direito encontram sempre seu fundamento em outras normas jurídicas"2 ; assim, pela via constitucional é que encontramos os fundamentos e os meios de se assegurar a eficácia e a eficiência de todo o sistema normativo. Todas as situações destinadas à apreciação jurídica devem acordar plenamente com os princípios e disposições constitucionais. O controle de constitucionalidade decorre diretamente das cartas rígidas, como ainda asseverou Paulo Bonavides. O princípio da rigidez tem intrínseca relação com o princípio da supremacia na medida em que revela a máxima preocupação com a preservação do conteúdo da norma superior – a rigidez celebra mecanismos rigorosos e solenes para a revisão de qualquer matéria de teor constitucional.
III. Sistema de controle de constitucionalidade brasileiro
A Constituição Federal mantém sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade, através dos critérios: difuso, quando está conectado à atividade jurisdicional de fato, sendo exercido de forma incidental, na ocasião do julgamento de um caso concreto, e compreende uma pluralidade de órgãos legitimados para exercer a fiscalização; assim, todos os órgãos do Poder Judiciário podem atuar nesse sentido; e o concentrado, de competência exclusiva do órgão de cúpula: o Supremo Tribunal Federal. O STF, guardião da constituição, assume o papel decisivo no controle, na medida em tem competência legitimada pela constituição para julgar e processar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, segundo o expresso no artigo 102, I, a).
O controle é exercido por via de exceção e por via de ação (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade). A via de exceção ou via de defesa, última denominação usada por alguns doutrinadores, é própria do controle difuso. Pode ser definida de forma simples como a possibilidade de qualquer interessado argüir com legitimidade questão de inconstitucionalidade de qualquer natureza, quando ela surge incidentalmente em um processo judicial – o interessado busca se defender ao tentar impedir a aplicação de uma lei que contraria disposições constitucionais. Quanto aos efeitos desse controle por via de exceção, sabe-se que vinculam somente as partes do litígio que provocou a declaração - a decisão faz coisa julgada somente entre as partes -, não atua aqui, portanto, o efeito erga omnis, na medida em que a decisão não tem poder para suspender a vigência da lei inconstitucional posta em questão - a lei continua eficaz e aplicável em todo o território nacional. Um efeito presente da decisão no caso concreto é o ex tunc, ou seja, a relação jurídica consolidada entre as partes é eliminada desde sua origem. Para que haja possibilidade de surtir efeitos sobre terceiros, seria necessário que a questão chegasse até o Supremo Tribunal Federal através de recurso extraordinário, nos termos do art. 102, inciso III e alíneas, da Constituição Federal. Nesse caso, passaria de um controle difuso para um controle concentrado, que veremos logo adiante.
O controle por via de ação, no entanto, tem alcance amplificado. No controle abstrato, outra denominação, a finalidade primordial da ação é a própria declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade. O escopo precípuo desse método de controle é eliminar do ordenamento jurídico qualquer preceito que se afirme inconstitucional, possibilitando a vinculação da atividade declaratória a terceiros. O efeito erga omnis decorre dessa declaração. A ação direta de inconstitucionalidade tem a típica finalidade de defender o conteúdo constitucional. Não se exige situação concreta de onde surge uma questão incidente, porque o único objeto da ação já é a inconstitucionalidade da lei em tese. Fazer defesa de direitos subjetivos pontuais não constitui alvo desse controle; seu interesse é preservar a estrutura normativa da carta, sanar as possíveis deficiências do ordenamento, no que diz respeito às contrariedades, como forma de viabilizar uma coerente aplicação normativa. O efeito vinculante dessa apreciação está confirmado pelo artigo 103, § 2, CF/88:
Art.102, § 2º - As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
A constituição de 1988 amparou bem o rol de partes capazes e legítimas para propor o controle por via de ação, o que não se podia verificar nas disposições das cartas anteriores. O seu art. 103 nomeia essas partes competentes para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e a declaratória de constitucionalidade: "I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa; V - o Governador de Estado; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; e VIII - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional".
IV. Autonomia Municipal
A postura da constituição, quando aperfeiçoa o federalismo, confere aos municípios a autonomia. Autonomia, pelos dizeres de José Afonso da Silva, significa “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”3. A atual constituição traz uma autonomia ao município que se reflete nas capacidades de auto-organização, de autogoverno, de auto-administração, de compor uma normatividade própria. A capacidade de se auto-organizar e de autogoverno derivam de uma autonomia política: a primeira se realiza na elaboração de regimento próprio, a chamada lei orgânica. Esta lei orgânica é uma espécie de constituição do município, confeccionada pela Câmara Municipal, e tem como dever o regulamento de matéria específica que fora encarregada à sua competência exclusiva pela constituição federal – necessária para essa atividade é a observância das particularidades locais e fazer uma análise das competências municipais comuns à União, aos Estados e ao Distrito Federal. Tudo aquilo que for de interesse local – não se trata aqui de interesse exclusivo - fará parte do rol de matérias dentro da competência legislativa do município. Dedução lógica dessa confecção normativa é respeitar os limites das previsões da constituição estadual que conduz o município e da constituição federal. A constituição federal, em seu artigo 29, indica os preceitos básicos da lei orgânica. Em seu caput define:
“Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado.”
A segunda capacidade decorrente da autonomia política do município se exerce pela possibilidade de eleger representante para a chefia do município – a figura do prefeito -, e também pela eletividade dos vereadores às respectivas Câmaras Municipais. A autonomia normativa se traduz na capacidade de realizar feitura de leis próprias sobre matéria reservadas à sua competência exclusiva e suplementar. A autonomia administrativa, todavia, confere a capacidade de realizar a manutenção e prestação de serviços de interesse local. Dentro da autonomia financeira, o município encontra-se apto para decretar seus tributos e realizar a aplicação de suas rendas.
Do usufruto dessas autonomias política (que oferece a capacidade de auto-organização) e normativa (que propõe composição de própria normatividade) é que nascem situações jurídicas enquadradas como inconstitucionais e aptas para incidência de um controle de constitucionalidade. Nesse exercício, o legislador do município, ao defender o interesse local, pode perder-se diante da orientação constitucional e ferir algum de seus preceitos. Como será feito esse controle é a questão primordial que deve ser perseguida.
V. Controle de constitucionalidade da lei municipal
Com as prévias explanações acerca do princípio da supremacia e rigidez constitucional, do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, do recurso extraordinário, do que seja a autonomia conferida ao município, pode-se iniciar o estudo do controle de constitucionalidade da lei do município.
O artigo 29 da Constituição Federal, como já citado anteriormente, dita que o município será regido por lei orgânica. Dessa forma se afirma como entidade autônoma, criada dentro dos Estados-Membros, mas que encontra seus limites nos princípios e determinações das Cartas Estadual e Federal. Isso pode ser confirmado quando o artigo 35, CF/88, disponibiliza previsão sobre a intervenção do Estado-Membro no município:
“Art. 35 - O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:
I - deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada;
II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;
III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;
IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.”
Isso pode ser percebido também quando o texto constitucional delega aos Estados a competência para instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais frente às suas disposições. Dispõe em seu artigo 125, “§ 2º:
Art. 125 - Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
(...)
§ 2º - Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.”
O controle jurisdicional da constitucionalidade, da forma que é atualmente concebido, no que se refere especificamente ao controle das leis e atos normativos municipais em face da Constituição Estadual, comporta três mecanismos de controle: o difuso; o concentrado, exercido por via de ação direta interventiva; e o concentrado, exercido por via de ação direta genérica. Quando analisamos o método difuso -que se dá por via de exceção - devemos tomar como ponto de partida a diferenciação da argüição de inconstitucionalidade frente às disposições das Cartas Federal e Estadual. Primeiramente, quando disposição de lei do município viola preceito constitucional federal, através desse método difuso, por via de exceção, o que for decidido pelos Tribunais inferiores poderá sofrer revisão pelo Supremo Tribunal Federal através do recurso extraordinário, já delimitado aqui de forma geral. Entretanto, quando a determinação da legislação municipal viola preceito constitucional estadual, as decisões proferidas por órgãos judiciais inferiores serão reavaliadas somente pelo Tribunal de Justiça dos Estados. O recurso extraordinário é cabível somente quando há contraste entre lei local e disposição constitucional federal. Não há cabe a instauração de recurso extraordinário que vem para argüir inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do município frente à constituição estadual. A súmula 280 vem confirmando essa consideração:
STF Súmula nº 280 - Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário.
Quando analisamos o método concentrado, por sua vez, próprio da via de ação, a questão de constitucionalidade não se conecta com nenhum caso concreto, sendo apenas analisado em tese; aqui, deve-se novamente fazer distinção entre a inconstitucionalidade de lei municipal frente à constituição federal, da inconstitucionalidade dessa mesma lei frente à constituição estadual.
Em linhas anteriores já se apresentaram as determinações do artigo 125, § 2º. É competência, portanto, do constituinte estadual definir métodos para defesa e proteção de sua constituição estadual. Ao mesmo tempo em que exerce sua autonomia federativa, não pode o legislador estadual vir a contrariar princípios constitucionais federais. O que se tem que perceber é que somente através do exercício do controle que respeita os preceitos da constituição federal que o Estado é capaz de garantir essa autonomia federativa. Assim, o que começa a se propor é uma possível declaração de inconstitucionalidade em tese – exercício do controle concentrado, por via de ação – da lei estadual e municipal frente à constituição do Estado-Membro. Gerada a contradição entre lei municipal e Constituição Estadual, já se definiu anteriormente que não caberá recurso extraordinário.
V.1. Ausência de autorização constitucional federal
A questão sobre a declaração de inconstitucionalidade, por via de ação, no conflito entre leis de natureza municipal e natureza constitucional federal não recebeu qualquer previsão – quanto a esse julgamento de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal ainda não foi definido sobre quem recai tal competência – note-se que a constituição não direcionou a competência para o conhecimento e julgamento desse conflito a nenhum outro Tribunal. O Supremo Tribunal Federal, segundo a previsão legal, só tem dever de processar e julgar ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, o que se pode verificar no disposto do artigo 102, inciso I, (alínea a):
“Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.”
Perante o Supremo Tribunal Federal, quando se realiza o controle concentrado, o parâmetro haverá de ser apenas a Constituição Federal. Já o parâmetro de controle abstrato de normas perante o Tribunal de Justiça estadual será apenas a Constituição estadual - nos casos onde há lesão de lei municipal frente à lei constitucional estadual, se proposto o controle, tanto por método difuso como por método concentrado, o julgamento será de competência desse Tribunal.
V.2. Controle de Constitucionalidade frente à Constituição Federal
O conflito que preserva o alcance bilateral – lei municipal contrariando constituição federal - só poderá, portanto, ser analisado se incidir sobre ele o controle por método difuso por via de exceção. A lacuna constitucional limita o controle e o torna deficiente. Mesmo que haja o controle por método difuso, serão produzidas decisões conferindo constitucionalidade ao preceito normativo e outras que conferindo ao mesmo preceito caráter de inconstitucionalidade. É certo que através dessa via de exceção possa caber a via recursal extraordinária ao Supremo Tribunal Federal, havendo repetição e o pré-questionamento (requisitos). Entretanto, o Supremo Tribunal Federal não poderá avaliar uma questão em tese, que venha a ser proposta por via de ação direta de inconstitucionalidade, que advenha desse conflito entre lei municipal e lei constitucional federal.
É interessante a consideração do Professor Fernando Ximenes Rocha sobre a não concepção do controle concentrado da lei municipal frente à lei constitucional federal. Assim assevera o professor: “Em verdade, não é concebível que as leis e os atos normativos municipais sejam submetidos ao controle de constitucionalidade concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inviabilizá-lo para o desempenho de tarefa que lhe é reservada constitucionalmente, haja vista as incontáveis leis e atos normativos produzidos pelos milhares de comunas espalhadas por esse Brasil afora. Também não comungamos com a idéia de confiar tal mister aos Tribunais de Justiça, não só pode entender tratar-se de uma usurpação da atividade precípua do Supremo Tribunal Federal, qual a de guarda da Constituição da Republica, mas igualmente pelo inconveniente de gerar essa providência um sem-número interpretações dos preceitos da Carta Federal, com repercussões na chamada ‘crise do supremo’, que se agravaria com a avalanche de recursos extraordinários, interpostos contra as decisões proferidas pelas diversas Cortes de Justiça estaduais“4.
V.3. Controle de Constitucionalidade frente à Constituição Estadual
A constituição federal, como já definido em linhas anteriores, promove a criação de jurisdição constitucional no âmbito do Estado-Membro. A Constituição Federal delega aos Estados não só o potencial para criar suas constituições, como também o potencial para regular a defesa judicial de sua Constituição, através do controle de constitucionalidade. Quando há choque entre legislação municipal e disposição constitucional estadual, há possibilidade tanto de um controle difuso - através da incidência do conflito em caso concreto em processo judicial - quanto de um controle concentrado, que será celebrado pelo Tribunal de Justiça do Estado. Cabe, então, a esse órgão da justiça julgar ação de inconstitucionalidade de lei municipal frente à lei constitucional estadual.
V.4. Controle de Constitucionalidade frente à Constituição Estadual que reproduz dispositivo da Constituição Federal
Algumas vezes é possível que uma determinada lei municipal que fere preceito constitucional estadual possa lesar igualmente preceito de constituição federal (quando há reprodução obrigatória constituição estadual de preceitos da carta magna); assim ocorrendo, o conflito recebe amparo do Tribunal de Justiça dos Estados, ao realizar seu controle concentrado. Entretanto, se a mesma matéria, por via de exceção, for apreciada pelo Supremo Tribunal Federal e receber diversa interpretação, haverá uma duplicidade de interpretações. Ou seja, essa dualidade interpretativa nasce quando a decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade pelo Tribunal de Justiça - que tem como escopo a contrariedade da lei municipal em face de dispositivo constitucional estadual que reproduz preceito constitucional federal - transitar em julgado, sem que se recorra extraordinariamente ao Supremo Tribunal Federal.
Em julgado do Supremo Tribunal Federal (RE 187.142-RJ, Min. Rel. Ilmar Galvão, 13/08/98), foi afirmada a eficácia erga omnes – efeito que sustenta como obrigatório o disposto em todo o território nacional - da decisão do Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário contra decisão contrária de Tribunal de Justiça do Estado atuando em controle direto.
a) Recurso extraordinário e norma de reprodução obrigatória
Se o Tribunal de Justiça do Estado, no julgamento de ação direta de inconstitucionalidade, proferir decisão com interpretação de norma estadual de reprodução obrigatória que se revele incompatível com a Constituição Federal, é cabível o recurso extraordinário?
O Ministro Moreira Alves, na Reclamação 383, busca elucidar essa questão:
"Isso implica dizer que as normas que a Constituição Federal, explícita ou implicitamente, impõe à observância do Estado devem ser transplantadas (normas de reprodução) para as Constituições estaduais, ao passo que as outras podem, ou não, ser copiadas (normas de imitação) por estas. E é óbvio que esse transplante não se faria necessário se essas normas de reprodução fossem inócuas, por não serem sequer jurídicas. São elas eficazes também no ordenamento jurídico estadual, permitindo, obviamente, que aí atuem como normas estaduais, nos limites da competência dos Estados de aplicá-las e fazê-las respeitar.
A essa eficácia, que tradicionalmente é reconhecida no direito brasileiro - jamais se negou, no âmbito do recurso extraordinário, que questão discutida em face de norma constitucional de reprodução obrigatória pelos Estados (e várias das normas gerais de direito tributário o são) era exclusivamente estadual -, a essa eficácia, repito, a única objeção que se lhe pretende opor como intransponível é a de que o Supremo Tribunal Federal, assim, poderá perder sua posição de guardião da Constituição. E isso porque, nesse caso, as decisões em ação direta estadual, por se tratar de processo objetivo, ou não admitiriam sequer recurso extraordinário, ou, se admitido este, a declaração de inconstitucionalidade da norma local, no âmbito do Estado-membro, impediria que esta Corte a reexaminasse, em controle difuso, em face da Constituição Federal.
Essa única objeção que se apresenta como se fosse ela intransponível para não se admitir o controle de constitucionalidade das leis estaduais e municipais, pelos Tribunais de Justiça, em face das Constituições estaduais na sua globalidade - que é o parâmetro de confronto adotado pela Constituição Federal -, também se aplica, em seus exatos termos, à orientação da inadmissibilidade dessas ações diretas de inconstitucionalidade estaduais com relação às normas de reprodução. Com efeito, ainda que se considere, adotando essa tese, que essas ações diretas estaduais não são admissíveis, se elas forem ajuizadas - como o têm sido inúmeras vezes, segundo noticiam as informações nestes autos -, e se o Tribunal de Justiça as julgar, sem que se proponha reclamação, essa decisão será insusceptível de ataque, e a lei municipal ou estadual declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça sairá, irremediavelmente, do mundo jurídico. Também, portanto, com tal orientação ficará arranhado o papel do Supremo Federal como guardião da Constituição Federal.
Assim, se o único inconveniente de uma tese é também inconveniente da outra, que, além dele apresenta vários outros - como demonstrei - pelas conseqüências inadmissíveis que provoca, parece insustentável restringir a autonomia constitucional dos Estados, que a Constituição não restringe, e, com base no inconveniente comum, sustentar que correta é a orientação que, além dele - que é o único da outra -, apresenta outros diversos “.
Concluiu o Ministro:
"Ocorre, porém, que não é certo afirmar-se que, em ação direta de inconstitucionalidade estadual, por ser processo objetivo, dada a natureza de seu objeto, não é admissível recurso extraordinário.
Tanto na ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição federal perante o Supremo Tribunal Federal quanto na ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição estadual perante Tribunal de Justiça, pode surgir a questão - que é sempre federal - de a norma constitucional federal ou estadual, que levará à declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada, ser inconstitucional. Com efeito, em ação direta proposta perante esta Corte em face da Constituição Federal, não poderá ela declarar incidentemente que a emenda constitucional que introduziu na Constituição Federal o preceito que é incompatível com o ato normativo atacado é que é inconstitucional, por defeito formal no processo legislativo observado, ou por violação da cláusula pétrea? É claro que poderá, pois seria inadmissível que o Supremo Tribunal Federal, para impor a observância da Constituição, não pudesse declarar inconstitucional o que realmente o seria (o princípio nela introduzido inconstitucionalmente), e tivesse de ter como inconstitucional a norma infraconstitucional que, em verdade, não infringiu a Constituição.
Ora, se essa questão raramente surgirá em ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição Federal perante esta Corte dada a limitação dessas causas de inconstitucionalidade, o mesmo não se poderá dizer com relação às ações diretas de inconstitucionalidade em face das Constituições estaduais. Haja vista a freqüência com que esta Corte tem declarado inconstitucionais normas constitucionais estaduais. E, se levantada questão dessa natureza no âmbito das ações diretas de inconstitucionalidade estaduais, não terá ela de ser julgada pelo Tribunal local, com recurso extraordinário a esta Corte, com base, conforme o caso, nas letras "a" ou "c" do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal? É evidente que sim, pois a ação direta de inconstitucionalidade não é incompatível com recurso - no âmbito desta Corte, os embargos infringentes sempre foram admitidos -, e não há como se sustentar que as lides objetivas não sejam causas para efeito de recurso extraordinário, que visa a preservar a observância da Constituição Federal.
Assim sendo, nas ações diretas de inconstitucionalidade estaduais, em que lei municipal ou estadual seja considerada inconstitucional em face de preceito da Constituição estadual que reproduza preceito central da Constituição federal, nada impede que nessa ação se impugne, como inconstitucional, a interpretação que se dê ao preceito de reprodução existente na Constituição do Estado por ser ela violadora da norma reproduzida, que não pode ser desrespeitada, na federação, pelos diversos níveis de governo. E a questão virá a esta Corte, como, aliás, tem vindo, nos vários recursos extraordinários interpostos em ações diretas de inconstitucionalidade de leis locais em face da Constituição Federal ajuizadas nas Cortes locais, a questão da impossibilidade jurídica dessas argüições (RREE 91740, 93088 e 92169, que foram todos conhecidos e providos".
Segundo a interpretação dos escritos do ministro, sempre será cabível o recurso extraordinário contra qualquer decisão do Tribunal de justiça que contrariar norma de reprodução obrigatória.
VI. Conclusão
Essa foi uma breve análise de como se dá o controle de constitucionalidade das Leis Municipais frente à Constituição Federal e à Constituição Estadual. A ausência de disposição constitucional federal relativa à competência para o controle por via de ação em caso de conflito de norma ou ato municipal frente à norma constitucional (deficiência do artigo 102, CF/88), limita demasiadamente a atuação desse controle constitucional, que vai buscar no controle difuso, por via de exceção, e em último grau, no recurso extraordinário, mecanismos para a resolução e eliminação do preceito inconstitucional. Quanto ao controle da norma municipal contraposta à norma estadual, será possível tanto o controle concentrado, sob competência do julgamento dos Tribunais de Justiças Estaduais, e o controle difuso.
VI. Bibliografia