A Lei 12.403 de 4 de maio de 2011 trouxe novos contornos as medidas cautelares, especialmente no que tange a prisão preventiva. Longe de agradar a todos, a lei veio a lume com o fim de atender os anseios da sociedade, dispondo sobre critérios mais sólidos para determinação da prisão no processo penal.
Há muito a doutrina clamava por mudanças no Código de Processo Penal (CPP). A jurisprudência, por sua vez, tornava-se dissonante do texto legal. Neste contexto de insatisfação - principalmente dos atingidos pelas medidas coercitivas - surge a Lei 12.403/11.
Apesar da substancial evolução, lacunas continuam presentes. O legislador permaneceu inerte diante de discussões seriíssimas. Uma delas concentra-se em torno do artigo 312 do CPP, o qual autoriza a decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
O recolhimento preventivo pode ser dividido em dois grupos, tendo como critério os pressupostos constantes no artigo 312 do CPP: de um lado a prisão por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal; e de outro a prisão decretada como garantia da ordem pública e da ordem econômica.
A prisão preventiva determinada por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, tem como finalidade proteger o processo, seja para que este cheque ao seu termo ou, para que não existam embaraços a execução da decisão.
Por sua vez, o encarceramento visando à garantia da ordem pública e da ordem econômica repousa em fundamentos que fogem aos objetivos estritamente processuais. A prisão é um fim em si mesmo. Sua razão está em afastar da sociedade o sujeito passivo da medida cautelar.
A lei processual, ao estabelece a garantia da ordem pública como um dos pressupostos para decretação da prisão, não trouxe consigo um conceito. Logo, é imprescindível para aplicar a regra determinar o alcance do termo, a fim de evitar distorções na realização da norma.
O termo “ordem pública”, por características próprias, é de difícil conceituação, sendo determinado de acordo com a necessidade da sociedade ou do Estado. Nessa tarefa, vários autores empreendem esforços para definir o termo, e se percebe a diferença de conteúdo, o que confirma cada vez mais a sua elasticidade.
Eugênio Pacelli de Oliveira (2010) diz que a prisão para garantia da ordem pública:
Dirige-se à proteção da própria comunidade, coletivamente considerada, no pressuposto de que ela seria duramente atingida pelo não-aprisionamento de autores de crimes que causassem intranqüilidade social.
O ilustre processualista acentua o caráter lesivo da conduta do sujeito ao qual se destina e subjetividade no critério de determinação da prisão. O meio ambiente em que se desenvolve a sociedade é objeto primário de proteção. Assim torna se relevante a opinião pública no momento da determinação da medida, à medida que somente a partir desta é possível mesurar o nível de aborrecimento causado pelo agente à coletividade.
O conceito de Fernando da Costa Tourinho (2010) identifica desordem pública com a possibilidade de o acusado reiterar nas práticas criminosas.
Normalmente se entende por ordem pública a paz, a tranqüilidade no meio social. Assim, se o indiciado ou réu estiver cometendo novas infrações penais, sem que se consiga surpreendê-lo em estado de flagrância, se estiver fazendo apologia ao crime, ou incitando ao crime, ou se reunindo a quadrilha ou bando, haverá perturbação da ordem pública
A mera possibilidade do agente vim a cometer novos delitos seria suficiente para o encarceramento. O fato de o mesmo está sendo processado e continuar em sua prática anti-social afetaria a credibilidade do Estado.
Guilherme de Souza Nucci (2008) também se debruça sobre o pressuposto da ordem pública para decretação da prisão preventiva. Para este, a decretação da medida cautelar deve obedecer ao trinômio - gravidade da infração, repercussão social e periculosidade do agente- devendo ocorrer todos para a prisão ser legítima.
Sobre o pressuposto para decretação da prisão, escreve o autor:
Entende-se pela expressão a indispensabilidade de se manter a ordem na sociedade, que, como regra, é abalada pela prática de um delito. Se este for grave de particular repercussão, com reflexos negativos e traumáticos na vida de muitos, propiciando àquele que tomam conhecimento de sua realização um forte sentimento de impunidade e de insegurança, cabe ao judiciário determinar o recolhimento do agente.
A doutrina, como se percebe, não consegue encontrar uma definição clara e uniforme sobre o termo. Essa inconsistência causa desconforto no ambiente jurídico, uma vez que acentua a problemática sobre a legitimidade da norma.
A primeira grande discussão surge, então, da análise do próprio conceito de ordem pública. O fato de o legislador usar de conceitos vagos, não traz a segurança jurídica almejada aos destinatários da norma, além de tornar-se ambiente fértil ao arbítrio do aplicador do Direito.
Neste primeiro momento verifica-se uma afronta ao principio da legalidade estrita, vetor primordial do Direito Penal. Não é possível, portanto, determinar que a medida seja aplicada com justiça, uma vez que falta ao termo “ordem pública” significado objetivamente definido.
Os conceitos doutrinários de ordem pública citados concentram-se no alcance da conduta que afeta a sociedade e causa desordem. O prejuízo que ocorra ou esteja em sua eminência deve ser capaz de afetar a sociedade de tal maneira, que a segregação do acusado seja a única capaz de trazer a paz ao seio da sociedade.
Apesar de parecer incontestável a necessidade da verificação do alto de nível de lesividade da conduta para a decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, nossos tribunais utilizam-na indiscriminadamente, tornando-a medida subsidiaria. Significa dizer, quando não se verifica os demais critérios que autorizam a medida cautelar, apela-se a ordem pública, devido à fácil maleabilidade em sua utilização.
O controle a fim de impedir o uso indiscriminado da prisão preventiva como garantia da ordem pública parti principalmente dos tribunais superiores. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) não faltam decisões sobre o tema.
Para a Corte Maior a necessidade da decretação da prisão preventiva deve ser objetivamente identificada mediante elementos concretos que possam determinar a periculosidade do agente e a gravidade da conduta.
Logo “A prisão cautelar para garantia da ordem pública é ilegítima quando fundamentada tão somente na gravidade in abstracto, ínsita ao crime”. (STF - HC 121250/SE Rel.: Min. Luiz Fux)
Outro requisito que por si só autoriza a segregação cautelar é conduta social danosa. Segundo o STF “a periculosidade do agente, evidenciada pelo modus operandi mediante o qual foi praticado o delito, demonstra a necessidade de se acautelar o meio social, para resguardar a ordem pública, e constitui fundamento idôneo para a prisão preventiva”. (STF - HC 119476/RS Rel. Min. Ricardo Lewandowski).
O Superior Tribunal de Justiça seguindo orientação do STF consigna que “Não há falar em constrangimento ilegal quando a custódia cautelar está devidamente justificada na garantia da ordem pública, em razão da gravidade concreta do delito em tese praticado e da periculosidade social do agente, bem demonstradas pelas circunstâncias em que ocorrido o fato criminoso.” (STJ - RHC 44435/SP Rel. Min. Jorge Mussi)
As decisões dos tribunais revelam dois critérios que não constam na lei processual penal, mas vêm servindo de base para decretação da medida cautelar, reforçando a tarefa árdua de interpretar o Direito e fazer os destinatários das normas enxergarem neste, sua força.
Porém, a indeterminação do termo “ordem pública” não é o único problema que surge na aplicação da prisão preventiva, uma vez que no Direito Positivado é comum e necessário comumente o uso de expressões de significado aberto. Isso se deve a incapacidade de prever todos os fatos sociais possíveis de acontecer, dignos de assistência do Direito.
A controvérsia é mais profunda. A celeuma que se instala diante do encarceramento cautelar, nesses casos, reside no choque entre a natureza desta e os fins que se busca com a medida, entre o ser e o dever ser.
A paz pública significa, sinteticamente, a necessidade social de um ambiente confortável para desenvolver-se a civilização, cumprindo ao Estado a função de mantenedor do sistema, o qual deve permitir aos homens plena liberdade para usufruir das vantagens de estar sobre o império das regras, que asseguram que os direitos serão respeitados e os deveres, cumpridos.
Paulo Rangel (2013) entende ordem pública como, “a paz e a tranqüilidade social, que deve existir no seio da comunidade, com todas as pessoas vivendo em perfeita harmonia, sem haja qualquer comportamento divorciado do modus vivendi em sociedade”.
Assim, deve os o Estado, através de instrumento jurídico próprios fazer cessar qualquer interferência no seio do ambiente social. Neste contexto insere-se a prisão preventiva como garantia da ordem pública.
A prisão preventiva tem entre suas características marcantes a cautelaridade, ou seja, visa naturalmente assegurar o resultado útil do processo. Contudo este não necessariamente estará em risco nas mesmas condições e momento da ordem pública.
Qualquer ato que vise preservar a paz e tranqüilidade pública deixa de ser um instrumento direcionado a um objetivo principal e torna-se um fim em si mesmo. A manutenção da ordem ameaçada ou violada é o querer final e único. A prisão perde com isso o caráter de acessoriedade, inerente às medidas cautelares.
Há no mínimo uma quebra da lógica jurídica com a inserção dessa espécie de prisão no CPP junto às demais medidas cautelares, mesmo sendo possível que a medida tenha efeito dentro do processo, em virtude de seus fundamentos vincularem-se à proteção da tranqüilidade social.
Em relação aos fundamentos para decretação da medida, é inquestionável que esta pressupõe a prática, pelo investigado ou réu, de atos suficientemente lesivos ao bem jurídico tutelado pela norma. Não é qualquer ato perturbador capaz de legitimar a decretação da medida de encarceramento.
O agente que sofre a prisão deve representar uma ameaça concreta à sociedade. Sua segregação representa a vontade socialmente dirigida à própria preservação. Seu uso indiscriminado e sem motivos plausíveis deixa claro que as instituições responsáveis pela manutenção da ordem falharam.
Percebe-se do exposto que a celeuma envolvendo o tema passa de um lado pela garantia dos direitos individuais do acusado e de outro, o superior interesse da coletividade em um ambiente socialmente adequado a seu desenvolvimento, abordadas sob o enfoque jurídico-normativo e/ou lógico-jurídico.
A extinção da prisão preventiva como garantia da ordem pública está longe de tornar-se uma realidade. O Estado dificilmente abdicará de importante instrumento de preservação da paz pública. É preciso, portanto, compatibilizá-lo com o ordenamento jurídico através da regulamentação normativa da matéria, para que se realize o que pretende o Direito: a resolução de conflitos justamente.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 527.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 21ª ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2013, p. 789.
TOURINHO,Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 13ª ed. Saraiva: 2010, p. 672.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5ª ed. São Paulo: RT, 2008.
BRASIL. STF. Habeas Corpus nº 121.250/SE. Relator: Ministro Luiz Fux, Brasília, DF, 06 de maio de 2014, 1ª Turma.
BRASIL. STF. Habeas Corpus nº 119.476/RS. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Brasília, DF, 06 de maio de 2014, 2ª Turma.
BRASIL. STJ. Recurso em Habeas Corpus nº 444.35/SP. Relator: Ministro Jorge Mussi, Brasília, DF, 13 de maio de 2014, 5ª Turma.