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A usucapião de bens imóveis no direito brasileiro

Agenda 08/02/2015 às 17:06

Este trabalho consta do estudo do Instituto da Usucapião de Bens Imóveis no Direito Brasileiro através da apresentação de suas várias espécies, pontos de vista doutrinário, surgimento e inovações que adentraram a esfera do Direito Civil.

INTRODUÇÃO

Este trabalho consta do estudo do Instituto da Usucapião de Bens Imóveis no Direito Brasileiro através da apresentação de suas várias espécies, pontos de vista doutrinário, surgimento e inovações que adentraram a esfera do Direito Civil.

A Usucapião é um instituto que integra a teoria geral do direito compreendendo espécies próprias do direito privado bem como outras específicas do direito público.

A Usucapião, em síntese, pode ser considerada como a aquisição do domínio pelo decurso do tempo de posse, desde que respeitados os dispositivos legais, cujo objetivo é acabar com a incerteza da propriedade assegurando a paz social pelo reconhecimento da propriedade em relação àquela pessoa que de longa data é o seu possuidor.

O acervo bibliográfico concernente à usucapião de bem imóvel é muito amplo. A doutrina majoritária aduz que os dispositivos legais visam garantir o pleno ordenamento das funções sociais, além de garantir o bem-estar de seus habitantes e regular todas as espécies de usucapião, inclusive o Constitucional.

Neste trabalho, a metodologia utilizada é a revisão bibliográfica, em especial a doutrinária, trazendo ao seu bojo os pontos-de-vista de diferentes jurisconsultos.

1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DE USUCAPIÃO

O conceito de usucapião, segundo o dicionário AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA,[1] é o modo de adquirir propriedade móvel ou imóvel pela posse pacífica e ininterrupta da coisa durante certo tempo. Convém destacar, a título de língua portuguesa, que o vocábulo é tratado no gênero feminino. O art. 1.238 do Código Civil enfatiza a usucapião como modo de aquisição da propriedade imobiliária preocupando-se com a exatidão terminológica ao inserir o vocábulo no feminino, apesar de a comunidade jurídica do nosso país tê-lo convencionado no masculino. Seja qual for o gênero adotado, o termo usucapião é oriundo do latim usu capio, ou seja, tomar a coisa pelo uso.

A doutrina conceitua usucapião como modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, como a servidão e o usufruto, pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais.[2]

A posse é o poder de fato sobre a coisa, ao passo que a propriedade é o poder de direito nela incidente. O fato objetivo da posse, unido ao tempo (fator capaz de transformar o fato em direito, bem com o cumprimento dos demais requisitos legais, conferem juridicidade a uma situação de fato, convertendo-a em propriedade. A usucapião é o elo entre a situação fática e o direito, como alternativa jurídica à solução de tensões derivadas do confronto entre posse e propriedade provocando uma transformação objetiva na relação de ingerência entre o titular e o objeto.

A Usucapião tem como fundamento a consolidação da propriedade. O proprietário desidioso, em falta de cuidado com seu próprio patrimônio deve ser privado da coisa em favor daquele que, da união dos fatores posse e tempo, deseja consolidar e pacificar a sua situação perante o bem e a sociedade.

2 BREVE HISTÓRICO

O instituto da Usucapião já era disciplinado pelo Direito Romano como modo aquisitivo do domínio em que o tempo era elemento precípuo. A própria etimologia da palavra indica isso: capio significa “tomar” e usu quer dizer “pelo uso”. Entretanto, “tomar pelo uso” não era fato instantâneo; exigia, sempre, um complemento de cobertura sem o qual esse capio nenhum valor ou efeito teria. Esse complemento consistia no fator tempo.

A usucapião restou consagrada na Lei das Doze Tábuas, datada de 455 antes de Cristo, como forma de aquisição de coisas móveis e imóveis pela posse continuada por um ou dois anos. Só poderia ser utilizada pelo cidadão romano, eis que os estrangeiros não gozavam dos direitos preceituados no ius civile. Desta forma, os romanos mantinham os seus bens perante os peregrinos e podiam reivindicá-los quando bem entendessem. Sendo a transmissão da propriedade romana cercada de diversas solenidades, no início a ação de usucapião era utilizada para convalidar aquisições formalmente nulas ou aquelas ineficazes por vício ou defeito de legitimação, quando presente a boa-fé do possuidor.[3]

Com o passar do tempo e com a expansão do império, concedeu-se ao possuidor peregrino que não tinha acesso à usucapião, uma espécie de prescrição, como forma de exceção fundada na posse por longo tempo da coisa, nos prazos de 10 e 20 anos, servindo de defesa contra ações reivindicatórias. O legítimo dono não mais teria acesso à posse se fosse negligente por longo prazo, mas a exceção de prescrição não implicava a perda de propriedade.

Em 528 d.C, Justiniano funde em um só instituto a usucapio e a praescriptio, pois já não mais subsistiam diferenças entre a propriedade civil e a pretoriana (dos peregrinos). Ambos os institutos se unificam na usucapião, concedendo-se ao possuidor longi temporis a ação reivindicatória para obter a propriedade e não uma mera exceção, que não era capaz de retirar o domínio do proprietário.

Assim, a usucapião se converteu, simultaneamente, em modo de perda e aquisição de propriedade, considerada como prescrição aquisitiva. Ainda em Roma, a prescrição passou a ser isolada como meio de extinção de ações. Assim, sob o mesmo vocábulo, praescriptio surgem duas instituições jurídicas: a primeira de caráter geral destinada a extinguir todas as ações e a segunda, um modo de adquirir, representado pela antiga usucapião. Ambas as instituições partiam do mesmo elemento: a ação prolongada do tempo.[4]

No Brasil, o Direito pré-codificado a prescrição longissimi temporis se consumava em 30 anos, fossem os bens móveis ou imóveis e, em 40 anos, tratando-se de bens públicos e coisas litigiosas inclusive as furtadas.

Na França, o Código Civil adotou o critério monista da prescrição como modo comum de aquisição e perda de direitos acabando por identificar prescrição e usucapião sob uma forma unitária, apenas com o cuidado de nomear a primeira como prescrição extintiva e a segunda como prescrição aquisitiva.

CLÓVIS BEVILÁQUA, em sentido contrário, buscou a corrente dualista, diferenciando prescrição da usucapião. Em sede legislativa, tanto o Código Civil de 1916 como o Código Civil de 2002 seguiram orientação do Código Civil alemão e separaram a prescrição da usucapião, com a instalação da prescrição extintiva na parte geral e da usucapião no Livro do Direito das Coisas, como modo de aquisição da propriedade.

Hoje, é sabido que é impróprio conceituar a usucapião como prescrição aquisitiva.

3 DA POSSE

3.1 Breve histórico da Posse

A posse é explicada historicamente através do poder físico sobre as coisas e na necessidade de o homem apropriar-se de bens. Inúmeras teorias procuram, então, justificar a necessidade de proteção à posse. Inobstante, a cultura jurídica da modernidade é profundamente influenciada pelas teorias de SAVIGNY e IHERING, sendo que cada qual fornece elementos identificadores dos limites da tutela da posse individualizando a seu modo as figuras do possuidor e do detentor procurando justificar a essência da proteção possessória.

Como enfatiza MENEZES CORDEIRO, a dicotomia Savigny/Ihering tem o sentido dos dilemas permanentes que, esgotando a realidade do espaço humano, acabam sempre por surgir, como igualmente ocorre com as dicotomias coletivo/individual, exterior/interior, Platão/Aristóteles ou Hegel/Kant. “Por certo que os discursos concretos de Savigny e Ihering não podem, hoje, ser pura e simplesmente subscritos: nem um, nem outro. As realidades que eles traduzem são, porém, bem reais. Os estudiosos da posse têm o dever de as conhecer e o ônus de optar, em termos justificados”.[5]

3.2 Teorias da Posse

3.2.1 Teoria Subjetiva (Clássica) de Savigny

Em 1803, aos 24 anos de idade, Friedrich Karl Von Savigny elaborou a sua monografia Recht dês Besitzes, o Tratado da Posse. Em sua concepção, a posse seria o poder que a pessoa tem de dispor materialmente de uma coisa, com intenção de tê-la para si e defendê-la contra a intervenção de outrem.

Para o mestre, a posse apresenta dois elementos constitutivos: a) Corpus: é o elemento que se traduz no controle material da pessoa sobre a coisa, podendo dela imediatamente se apoderar, servir e dispor, possibilitando ainda a imediata oposição do poder de exclusão em face de terceiros; b) Animus: é o elemento volitivo, que consiste na intenção do possuidor de exercer o direito como se proprietário fosse, de sentir-se o dono da coisa, mesmo não sendo. Não basta deter a coisa (corpus), mas haver uma vontade de ter a coisa para si. Só haverá posse, onde houver animus possidendi.

Para Savigny, os dois elementos agregam-se em singela fórmula matemática: P = C + A. Excepcionalmente, nas situações em que alguém atue materialmente sobre a coisa sem o animus, cogitar-se-ia de mera detenção (locatário, comodatário, usufrutuário e outras pessoas que entraram na coisa em virtude de relação jurídica). Os detentores não fariam jus à tutela possessória, justamente pela carência do elemento volitivo. Por atribuir tamanha ênfase ao aspecto psicológico, anímico, a teoria de Savigny sobejou conhecida como subjetiva.

Critica-se na teoria subjetiva, a exacerbação do papel da autonomia da vontade pela incondicionada ligação da posse ao animus domini. Segundo Savigny, refletindo o ideário liberal e individualista vigente na época, a pessoa era o indivíduo abstrato que ocupava um dos polos da relação jurídica, possuindo autodeterminação nas relações econômicas. Esta visão restrita e unitarista camufla o ser humano concreto, capaz de se manifestar em uma pluralidade de relações possessórias, nas quais não releva o exame do animus domini, mas sim a proteção à moradia, ao trabalho e a defesa incondicional dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana.

Contudo, o grande mérito de Savigny foi o de projetar autonomia à posse, por explicar que o uso dos bens adquire relevância jurídica fora da estrutura da propriedade privada, e que a titularidade forma deste direito subjetivo não encerra todas as possibilidades de amparo jurídico. A posso passa a ser vislumbrada como uma situação fática merecedora de tutela, que decorre da necessidade de proteção à pessoa, manutenção da paz social e estabilização das relações jurídicas.

A posse seria um fato na origem e um direito nas consequências, pois confere ao possuidor a faculdade de invocar os interditos possessórios quando o estado de fato for objeto de violação, sem que isto implique qualquer ligação com o direito de propriedade e a pretensão reivindicatória dela emanada.

3.2.2 Teoria Objetiva de Ihering

Na linha de Savigny, Rudolf Von Ihering (1818 – 1892) encontra a base da controvérsia possessória no direito romano. Porém, e Ihering, a posse é o mero exercício da propriedade.

O célebre romanista admite a anterioridade histórica da posse em relação à propriedade, para justificar a inferioridade daquela em relação a esta. Na prática traz para o direito o determinismo darwiniano que expressa a evolução biológica pela necessária precedência na natureza dos seres inferiores aos superiores.

A posse seria o poder de fato e a propriedade, o poder de direito sobre a coisa: “O fato e o direito: tal é antítese a que se reduz a distinção entre a posse e a propriedade”. [6] A posse não é reconhecida como modelo jurídico autônomo, pois o possuidor seria aquele que concede destinação econômica à propriedade, isto é, visibilidade ao domínio. A posse é a porta que conduziria à propriedade, um meio que conduz a um fim. A propriedade sem a posse seria um tesouro sem a chave, uma árvore frutífera sem a escada que atingisse os frutos, pois a propriedade sem a posse restaria paralisada.

Em outras palavras, não é possível conceder espaço ilimitado à vontade do possuidor, pois a liberdade da pessoa encontra limites na norma. Portanto, a posse merece respeito na conformação encontrada pelo ordenamento jurídico, que considera a posse como exteriorização e complemento necessário à proteção da propriedade.

Em suma, para Ihering a tutela da posse não decorre da necessidade de evitar a violência, mas tem como único fundamento a defesa imediata da propriedade. Os interditos possessórios nascem em razão da propriedade e não da posse em si mesma, pois a origem das referidas ações no direito romano reside na proteção da propriedade, mesmo que em um primeiro momento culminem elas por socorrer a posse e, indesejavelmente, a figura do não proprietário.[7]

A teoria objetiva repele a conceituação da posse que se baseia no elemento puramente subjetivo – animus –, pois ele está implícito no poder de fato exercido sobre a coisa. A posse é evidenciada pela existência exterior, sem qualquer necessidade de descermos a intrincada questão do plano íntimo da vontade individual de quem possui. Bem percebe Moreira Alves que o animus para Ihering é a “consciência e a vontade do corpus, razão por que se acham ambos indissoluvelmente ligados, estando este para aquele como a palavra para o pensamento”.[8]

A fórmula de Ihering – P = C – indica que a posse é reconhecível externamente por sua destinação econômica, independentemente de qualquer manifestação volitiva do possuidor, sendo suficiente que ele proceda em relação à coisa como se comportaria o proprietário em relação ao que é seu. Não é o elemento psicológico que revela a posse, e sim a forma como o poder fático do agente sobre a coisa revela-se externamente.

Ademais, corpus para Ihering não estaria na dominação material ou na vigilância pessoal sobre a coisa. Com efeito, se na teoria objetiva, a posse não existe sem que exista a propriedade, a questão da dominação material sobre o bem se torna secundária, pois é sabido que a propriedade sobrevive sem o contato com a coisa. Substitui-se a noção do controle material pela ideia da posse como exercício da propriedade, pois só ela justifica a relação material entre a pessoa e a coisa, assim como a necessidade de sua tutela. Não mais importa a possibilidade de apreensão imediata da coisa, mas o fato do possuidor agir como agiria o proprietário, concedendo destinação econômica ao bem, fazendo valer a finalidade para a qual é naturalmente vocacionada. O que vale é o uso econômico facilmente reconhecido por qualquer pessoa, tenha ou não o possuidor o animus domini.[9]

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Assim, vem a ser a posse o exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real. Ao dispensar-se o elemento psicológico do animus, estende-se a condição de possuidores àqueles que seriam considerados meros detentores pela teoria clássica (locatários, arrendatários). Outrossim, por dispensar o aspecto subjetivo da intenção de dono, a doutrina objetiva consagra a admissibilidade da coexistência das posses direta e indireta.

Do ponto de vista econômico e prático, a teoria de Ihering é inegavelmente um avanço em comparação com a de Savigny, eis que ao abdicarmos da exigência do animus domini, ampliamos consideravelmente o rol dos possuidores, deferindo àqueles antes considerados meros detentores pela teoria subjetiva, proteção possessória direta e imediata, podendo agir por conta própria na tutela de sua situação jurídica.

Savigny e Ihering concebem suas teorias com base em um ponto de partida comum: a detenção. Todavia, visceral é compreender que a teoria de Ihering é tida por objetiva pelo fato de explicar que a distinção entre possuidores e detentores não é traduzida à luz do elemento anímico da vontade de possuir, e sim por uma prévia conformação do ordenamento objetivo, que cuidará de explicitar as hipóteses em que certas pessoas não alcançarão a tutela possessória por expressa opção de política legislativa, em razão da forma pela qual ingressaram na coisa. De fato, Ihering vislumbrava na detenção uma posse desqualificada pelo sistema jurídico, por razões objetivas e de ordem prática.

Ihering considerava que o interesse jurídico movimenta a vontade. É o interesse da realização da destinação econômica da propriedade que justifica a proteção, pois em si mesma, ela não teria qualquer valia. A posse se converte em direito, em homenagem ao direito superior de propriedade.[10]

A crítica veemente que se faz à concepção objetiva concerne ao fato de reduzir a posse a um direito ínfimo, como mera exteriorização do direito de propriedade, ou seja, um complemento indispensável à sua tutela. A proteção possessória seria uma sentinela avançada da propriedade, pois através da posse poderia o titular formal aliviar a defesa do seu direito subjetivo mediante a adoção de uma vida defensiva preliminar (interditos possessórios). Neste particular, temos evidente retrocesso, comparando-se à teoria de Savigny, na qual há um prenúncio de tutela à função social da posse.

Ao conceituar a posse da mesma maneira que o seu antecessor, o Código Civil de 2002 filia-se à teoria objetiva, repetindo a nítida concessão à teoria subjetiva no tocante à usucapião como modo aquisitivo da propriedade que demanda o animus domini de Savigny. Com efeito, predomina na definição da posse a concepção de Ihering. A teor do art. 1.196, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Assim, pela letra do legislador, o possuidor é quem, em seu próprio nome, exterioriza alguma das faculdades da propriedade, seja ele proprietário ou não.

O Código Civil de 2002 ratificou a via eleita pelo Código de 1916, pela inserção da posse no livro do direito das coisas. Seguidor das teses de Ihering, Clóvis Beviláqua entendeu que a posse é um caminho para a propriedade e deve ser inserida antes de seu estudo, como um ponto de transição momentânea. Aliás, neste ponto contrariou o próprio mentor, que entendia ser essencial o estudo prévio da titularidade, para posteriormente se alcançar a posse.

Será possível observar adiante que, nos dias atuais, as teorias de Savigny e Ihering não são mais capazes de explicar o fenômeno possessório à luz de uma teoria material dos direitos fundamentais. Mostram-se envelhecidas e dissonantes da realidade social presente. Surgiram ambas em momento histórico no qual o fundamental era a apropriação de bens sob a lógica do ter em detrimento do ser. Ambas as teorias se conciliavam com a lógica do positivismo jurídico, na qual a posse se confina no direito privado como uma construção científica, exteriorizada em um conjunto de regras herméticas.

Todavia, todo o processo contemporâneo de interpretação do Direito Privado inicia-se na investigação dos princípios que se colocam como substrato do Estado Democrático de Direito. Apesar do Código Civil conceituar a posse de forma abstrata e unitária, com sujeição à propriedade, ameniza-se a concepção patrimonialista e utilitarista no restante do tratamento da matéria, conferindo à posse um tratamento sistemático aperfeiçoado em comparação ao Código de 1916, com relevantes manifestações de uma intenção de dotá-la de autonomia com relação ao direito de propriedade.

4 NOÇÕES GERAIS SOBRE PROPRIEDADE

4.1 Breve Histórico

A raiz histórica da propriedade é encontrada no Direito Romano.

Na era romana preponderava um sentido individualista de propriedade, apesar de ter havido duas formas de propriedade coletiva: a da gens e a da família. Nos primórdios da cultura romana a propriedade era da cidade ou gens, possuindo cada indivíduo uma restrita porção de terra (1/2 hectare), e só eram alienáveis os bens móveis. Com o desaparecimento dessa propriedade coletiva da cidade, sobreveio a da família, que, paulatinamente, foi sendo aniquilada ante o crescente fortalecimento da autoridade do pater famílias. A propriedade coletiva foi dando lugar à privada, passando pelas seguintes etapas, que Hahnemann Guimarães assim resume: 1º) propriedade individual sobre os objetos necessários à existência de cada um; 2º) propriedade individual sobre os bens de uso particular, suscetíveis de ser trocados com outras pessoas; 3º) propriedade dos meios de trabalho e de produção; e 4º) propriedade individual nos moldes capitalistas, ou seja, seu dono pode explorá-la de modo absoluto.[11]

Na idade média, a propriedade sobre as terras teve papel preponderante, prevalecendo o brocardo nulle terre sans seigneur.[12] Inicialmente, os feudos foram dados como usufruto condicional a certos beneficiários que se comprometiam a prestar serviços, inclusive, militares. Com o tempo a propriedade sobre tais feudos passou a ser perpétua e transmissível apenas pela linha masculina. Havia distinção entre os fundos nobres e os do povo, que, por sua vez, deveria contribuir onerosamente em favor daqueles, sendo que os mais humildes eram despojados de suas terras.[13]

 O feudalismo só desapareceu do cenário jurídico mundial com o advento da Revolução Francesa em 1789.

4.2 Fundamento jurídico do domínio

A questão da legitimidade da propriedade é divergente entre os autores.

Alguns, como Grócio, pretendem encontrar o fundamento da propriedade na ocupação de bens ainda não apropriados por ninguém, e que alargaria o domínio do homem sobre a natureza, convertendo os objetos da natureza em valores econômicos ou culturais, enriquecendo o patrimônio da nação. Contudo, a ocupação não justifica o domínio, porque este só pode surgir ante uma lei que o organize e que inclua a ocupação entre os modos aquisitivos de propriedade. Além do mais, muitas das propriedades atuais são originárias da violência, quer na esfera interna quer na internacional, e não da ocupação[14].

Outros lhe deram a lei por fundamento, como Montesquieu, Hobbes, Benjamin Constant, Mirabeau, Bentham. Entretanto, insuficiente é essa teoria porque não se pode fundar a propriedade na vontade do legislador que a cria, pois a mesma poderia ser levada a suprimi-la[15].

Para a teoria da especificação preconizada pelos economistas, Locke, Guyot, Mac Culloch, o trabalho seria o único criador de bens, consistindo no título legítimo da propriedade, que não seria uma mera apropriação do bem da natureza, mas a transformação desse objeto por meio da forma que o homem, com seu trabalho, daria à matéria bruta[16].

Planiol[17] critica essa concepção dizendo que o trabalho deve ser recompensado com o salário e não com o objeto por ele produzido. Há ainda, o inconveniente apresentado pela divisão do trabalho, pois o trabalho de várias pessoas concentrado na produção de uma coisa daria origem a múltiplas propriedades sobre o mesmo bem, acarretando dificuldades. Radbruch[18] aponta o fato de que essa doutrina da propriedade coletiva dos trabalhadores leva à espoliação do proprietário dos meios de produção, de que não participou com seu trabalho.

Ante todas essas críticas não hesitamos em afirmar que a corrente doutrinária mais sólida a esse respeito é a teoria da natureza humana, segundo a qual a propriedade é inerente à natureza do homem, sendo condição de sua existência e pressuposto de sua liberdade. É o instinto da conservação que leva o homem a se apropriar de bens seja para saciar sua fome, seja para satisfazer suas variadas necessidades de ordem física e moral. A natureza humana é de tal ordem que ela chegará a obter, mediante o domínio privado, um melhor desenvolvimento de suas faculdades e de sua atividade. O homem, como ser racional e eminentemente social, transforma seus atos de apropriação em direitos que, como autênticos interesses, são assegurados pela sociedade, mediante normas jurídicas, que garantem e promovem a defesa individual, pois é imprescritível que se defenda a propriedade individual para que a sociedade possa sobreviver. Sendo o homem elemento constitutivo da sociedade, a defesa de sua propriedade constitui defesa da própria sociedade[19].

Assim, a propriedade foi concebida ao ser humano pela própria natureza para que possa atender às suas necessidades e às de sua família. Por todas essas razões, pela sua função social e pelo serviço que presta às sociedades civilizadas, justifica-se, plenamente, a existência jurídica da propriedade[20]

5 – MODALIDADES DE USUCAPIÃO DE BENS IMÓVEIS

5.1 Da usucapião ordinária

O Art. 1.242 do Código Civil expressa que “Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório cancelado posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”.

Assim, usucapião ordinária é a que exige a posse contínua e incontestada, durante certo lapso de tempo, com justo título e boa-fé. Esses requisitos suplementares caracterizam-na porque, exigidos, o lapso de tempo é abreviado. A usucapião ordinária, por sua vez, recebeu alteração no diploma de 2002, visto que o prazo cogente reduziu-se para 10 anos quando o adquirente possuir justo título e boa-fé.

Para haver usucapião ordinária, é preciso, em primeiro lugar, que a posse seja fundada em justo título. A expressão é condenada, por ensejar confusão. O vocábulo justo título pode dar a impressão de que se trata de instrumento, isto é, de escrito. Mas não tem esse sentido. Título se emprega, no caso, como sinônimo de ato jurídico. Ainda assim, teria compreensão muito ampla, porque nem todo ato jurídico serve de causa à posse. O título, a que se referem os Códigos, corresponde aos atos jurídicos cuja função econômica consiste em justificar a transferência de domínio. Numa palavra, os atos translativos. Por outro lado, a qualificação do título é imprópria. O título deve ser justo no sentido de idoneidade para transferir. Melhor, assim, dizer-se título hábil, para significar o negócio jurídico que habilita qualquer pessoa a tornar-se proprietária de um bem.

Com a locução justo título, o que se designa, por conseguinte, é o ato jurídico cujo fim, abstratamente considerado, é habilitar alguém a adquirir a propriedade de uma coisa. Todo negócio jurídico apto a transferir o domínio considera-se justo título.

Mas, se a despeito de sua existência, a propriedade não se transfere, é preciso, para que se a transferência se consuma e que o adquirente possua o bem pelo tempo necessário, para usucapi-lo. Desse modo justo título vem a ser o ato translativo que não produziu efeito; o título de aquisição ineficaz.

Necessário investigar a causa da ineficácia, isto é, a razão por que um ato jurídico destinado a habilitar uma das partes a adquirir o domínio de uma coisa não produz seu efeito. Três são as causas que impedem a sua eficácia:

  1. A aquisição a non domino, isto é, o fato de não ser o transmitente dono da coisa;
  2. A aquisição a domino, na qual o transmitente não goza do direito de dispor, ou transfere por ato nulo de pleno direito;
  3. O erro no modo de aquisição.

Quem adquire um bem de quem não é seu proprietário realiza negócio eficaz. Ninguém pode transferir mais direito do que tem. Consequentemente, quem não é proprietário não pode transmitir propriedade. Mas, se o adquirente está na convicção de que trata com o dono da coisa, o título que serve de causa à aquisição serve como elemento para que realmente adquira o bem mediante usucapião ordinária. Exige a lei, apenas, que esse título seja adequado à transferência; justo é que tenha a virtude de justificá-la, enfim, que a possibilitasse, se emanado do proprietário genuíno. Mas, para que sirva a esse fim, o defeito há de consistir unicamente na falta de qualidade do transmitente. Se a ineficácia resulta de outra causa de nulidade, não pode haver usucapião ordinária.

O título pode provir do verdadeiro proprietário e, ainda assim, o adquirente não se tornar dono da coisa. A hipótese ocorre quando o ato jurídico translativo é contaminado de nulidade. Distingue-se, no entanto, a nulidade absoluta da nulidade relativa ou anulação. Se o ato é nulo de pleno direito, a aquisição só se verifica, em princípio, mediante usucapião extraordinária, porque o fim da usucapião ordinária é sanar o defeito que resulta da falta de qualidade do transmitente e não todos os que tornam ineficaz a alienação. Mas, se o ato é simplesmente anulável, a aquisição se opera mediante usucapião ordinária, até porque é mais curto o prazo de prescrição dentro do qual deve ser proposta a ação de rescisão.

Finalmente, pode haver erro no modo de aquisição, como na hipótese de quem adquire por instrumento particular bem cuja transmissão requer escritura pública. Embora o ato seja nulo, por defeito de forma, é de se admitir a possibilidade de ser sanado o defeito com a usucapião ordinária. Certo que a ninguém é lícito ignorar a lei, mas o erro de direito, como o erro de fato, deve ser considerado em pé de igualdade, porque, afinal, se converte numa questão de boa-fé.

Contudo, não se deve confundir justo título com boa-fé. A ideia de que se requer justo título porque se exige a boa-fé o eliminaria como um dos requisitos da usucapião ordinária. A boa-fé, como elemento que integra o fato jurídico da usucapião, é tomada em seu sentido subjetivo. Entretanto, proclama a maioria dos escritores que o título deve ser certo e real. Se há boa-fé sem justo título, a usucapião ordinária não pode ser invocada. Nestas condições, o chamado título putativo não a justifica. Não basta, pois, que o adquirente tenha a convicção de que adquiriu mediante justo título. É preciso que o título tenha existência real. Do contrário, esse elemento seria absorvido pelo de boa-fé. É por essa razão, além da assinalada, que um justo título de pleno direito não pode ser considerado justo título, salvo quando, pelo jogo de outros princípios, é aconselhável aceitá-lo como elemento constitutivo da usucapião ordinária. Além da usucapião, o Código Civil de 2002, no art. 70, permite o aproveitamento do ato nulo mediante conversão, substancial ou formal.

Em resumo: todo fato jurídico apto a transferir o domínio pode servir para sua aquisição mediante usucapião ordinária, se o seu efeito específico não se produziu em virtude de um dos obstáculos apontados.

Os atos translativos mais comuns, que podem ser considerados justo título, são: a) A compra e venda; b) A troca; c) A dação em pagamento; d) A doação; e) O dote; f) O legado; f) A arrematação; h) A adjudicação; i) O compromisso de compra e venda.

Além do justo título, requer-se a boa-fé. Poderia parecer, à primeira vista, que a existência do justo título implicaria boa-fé, o que dispensaria este requisito. Assim não é. Se a boa-fé se presume quando há justo título, pode este existir sem aquela, como quando o comprador soube que a coisa comprada não pertencia ao vendedor. A boa-fé, realmente, é elemento autônomo na usucapião ordinária.

É possuidor de boa-fé quem ignora o vício ou o obstáculo, que lhe impede a aquisição da coisa. Dessa ignorância resulta a convicção de que possui legitimamente. A boa-fé procede, por conseguinte, de erro do possuidor, que, falsamente, supõe ser proprietário. Esse erro deve ser cometido ao adquirir a coisa. Não se limita, porém, à convicção falsa de a ter adquirido do verdadeiro proprietário. Também se configura quando ignora a existência de obstáculo impeditivo da aquisição. O erro do possuidor pode ser de fato ou de direito. Um e outro devem ser levados em conta. Diz-se que o erro de direito não pode servir de fundamento à boa-fé, porque ninguém pode ignorar a lei: Nemo jus ignorare consetur. Mas não deve ser assim. O obstáculo pode provir de razões jurídicas ignoradas pelo possuidor. A ignorância, no particular, não deve afastar a boa-fé. Daí se admitir que um título anulável conduz à usucapião ordinária.

O momento em que a boa-fé deve ser apreciada é controvertido. No Direito Romano, bastava que o possuidor estivesse de boa-fé no momento da aquisição. No Direito Canônico, deveria perdurar mala fides superveniens nocet. Entre nós prevalece a doutrina canônica.[21] Assim, a superveniência de má-fé prejudica, impedindo a consumação da usucapião ordinária.

5.2 – Da Usucapião Extraordinária

Nos termos literais do caput do dispositivo, “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”. De acordo com seu parágrafo único, “O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.

A usucapião extraordinária caracteriza-se pela maior duração da posse e por dispensar o justo título e a boa-fé. Basta que alguém possua, como seu, um bem, durante um certo lapso de tempo, para que lhe adquira a propriedade. Seus requisitos resumem-se à posse sem interrupção nem oposição, em certo prazo, desde que possuída a coisa com animus domini. Alguns códigos exigem, ainda, o requisito boa-fé. Assim era em nosso direito anterior. Outros, porém, o presumem, como o nosso.

O lapso de tempo, no caso de bens imóveis, é de 15 (quinze) anos.

Na usucapião extraordinária, a boa-fé e o justo título presumem-se. Aquele que, por quinze anos, se a coisa for imóvel, e por cinco, se móvel, possuí-la como sua, sem interrupção nem oposição, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de título ou boa-fé. Decorrido o prazo, pode requerer ao juiz que o declare proprietário da coisa. Em se tratando de imóveis, a sentença serve de título para a transcrição no competente registro. É, entretanto, meramente declaratória, sendo necessária, todavia, para certificar a existência do direito do possuidor que se tornou proprietário. Mas a aquisição da propriedade não se verifica por meio da sua transcrição. Se assim fosse, a usucapião não seria modo de adquirir a propriedade. A aquisição se daria pela transcrição do título. Nesse caso, a usucapião seria meio de prova da propriedade, quando, em verdade, é modo de adquiri-la, ainda quando o prescribende vise apenas a sanar o título de aquisição do domínio.

Em outras palavras, pode-se assim dizer que para a usucapião extraordinária, necessita-se da existência de posse mansa e pacífica, ininterrupta, com animus domini e sem oposição por 15 (quinze) anos, sendo que o prazo pode cair para 10 (dez) anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel sua moradia habitual, se a função social da posse estiver sendo cumprida pela presença da posse-trabalho.

5.3 – Da Usucapião Constitucional ou Especial de Imóvel Rural – pro labore

Dispõe o caput do art. 191 da CF/88 que “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”. A regra foi reproduzida, na literalidade, pelo art. 1.239 do Código Civil/2002; estando o instituto da usucapião constitucional ou especial rural do mesmo modo regulamentado pela Lei nº 6.969/1981. Em relação aos seus requisitos, podem ser destacados os seguintes: a) a área não pode ser superior a 50 hectares, e deve estar localizada na zona rural; b) A posse deve ter cinco anos ininterruptos, sem oposição e com animus domini; c) O imóvel deve ser utilizado para subsistência ou trabalho (pro labore), podendo ser na agricultura, na pecuária, no extrativismo ou em atividade similar, sendo fundamental que a pessoa ou a família esteja tornando produtiva a terra por força de seu trabalho; d) Aquele que deseja adquirir por usucapião não pode ser proprietário de outro imóvel, seja ele rural ou urbano.

Aqui neste caso, não há que se falar em justo título e boa-fé, pois tais elementos se presumem de forma absoluta (presunção iure et de iure) pela destinação que foi dada ao imóvel, atendendo à sua função social.

5.4 – Da usucapião constitucional ou especial urbana – pro misero

A usucapião constitucional ou especial urbana (pro misero) está tratada no caput do art. 183 da CF/88: “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. A norma está reproduzida no art. 1.240 do Código Civil e no caput do art. 9º da Lei nº 10.257/2001

Nos termos do Estatuto da Cidade, o título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil (Art. 9º , §1º, da Lei 10.257/2001). Ademais, o direito à usucapião especial urbana não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez, o que confirma a ideia de que a aquisição da propriedade atende ao direito mínimo de moradia. Para os efeitos desta modalidade de usucapião, de acordo com o §3º do art. 9º da Lei 10.257/2001, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão. Eis aqui o tratamento específico da accessio possessionis para a usucapião especial urbana. Assim, pela literalidade da norma, que a soma das posses para a usucapião especial urbana somente pode ser mortis causa e não inter vivos, como é na regra geral.

5.5 Da usucapião especial urbana coletiva

É a redação do art. 10 do Estatuto da Cidade – Lei 10.257 – “As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural”. Consagra-se a usucapião especial urbana coletiva, ou, tão somente, usucapião coletiva, possível nos casos envolvendo imóveis localizados em zonas urbanas, desde que obedecidos os seguintes requisitos: a) Área urbana, havendo limitação mínima de 250 m2; b) Posse de cinco anos ininterruptos, sem oposição, com animus domini, não havendo exigência de que a posse seja de boa-fé; c) Existência no local de famílias de baixa renda, utilizando o imóvel para moradia, nos termos do Art. 6º, caput, da CF/88; d) Ausência de possibilidade de identificação da área de cada possuidor; e) Aquele que adquire não pode ser proprietário de outro imóvel – rural ou urbano.[22]

Vale ressaltar que os parágrafos do art. 10 do Estatuto da Cidade trazem importantes regras de cunho material e processual. De início, prevê que o possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar a sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. Outra norma especial está consagrada a possibilidade da accessio possessionis, ou seja, a possibilidade de o sucessor da posse somar, no aspecto temporal, a posse anterior para fins de usucapião coletiva. Quanto ao campo processual, a usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis, sendo que nesta sentença, o juiz atribuirá igual fração de terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. A norma consagra o estabelecimento de um condomínio a favor dos usucapientes, o que deve constar da sentença declaratória da propriedade. Esse condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.

5.6 Da Usucapião Especial Indígena – Estatuto do Índio:

Além das formas de usucapião previstas no Código Civil de 2002, na Constituição Federal, na Lei Agrária e no Estatuto da Cidade, há no nosso ordenamento jurídico a Usucapião Especial Indígena, tratada pelo Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/1973. Enuncia o Art. 33 dessa Lei Especial que “O índio integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trechos de terras inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á propriedade plena”. Em síntese, pelo que consta da norma, são requisitos da usucapião indígena: a) Área de, no máximo, 50 (cinquenta) hectares; b) Posse mansa e pacífica por dez anos, exercida por indígena.

5.7 Da Usucapião Sobre Servidões:

Art. 1.379: “O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do artigo 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião”.

Parágrafo único: “Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos”.

5.8 Da Usucapião Familiar

O ordenamento jurídico brasileiro foi contemplado com mais uma modalidade de usucapião, qual seja, a usucapião familiar. No dia 16 de junho de 2011 passou a vigorar a Lei nº 12.424 inserindo no Código Civil o Artigo 1240-A e seu parágrafo primeiro tratando desta modalidade.

O texto do Artigo 1.240-A aduz que "Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Parágrafo 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez".

Esta modalidade de usucapião foi orientada a partir da possibilidade de se permitir que um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros oponha em face do outro a pretensão de usucapir a fração que lhe pertence. Assim, o ex-cônjuge ou ex-companheiro que prosseguiu habitando o imóvel afastado pelo outro consorte ou convivente titularizará a integralidade da propriedade.

Ressalta-se que o sentido desta nova modalidade de usucapião especial urbana – pro moradia ­– é uma derivação do disposto no art. 1.240 do Código Civil de 2002 que dá disciplina à citada usucapião especial, nos moldes previstos na Constituição Federal em seu artigo 183. Neste dispositivo, tem-se que "aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".

Os pressupostos comuns a ambas as espécies – usucapião especial urbana e usucapião "familiar" – são clarividentes: necessita-se que o pretendente exerça posse mansa, pacífica e ininterrupta em imóvel urbano com até 250 m2 de área com finalidade de moradia própria ou de sua família e, além de não poder ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Não podendo, ainda, que a medida seja concedida mais de uma vez em favor da mesma pessoa em ambas as hipóteses.

Entre as diferenças notáveis existentes entre as duas modalidades retrocitadas, enumeram-se: a) Na usucapião familiar exige-se que o pretendente seja co-proprietário do imóvel conjuntamente com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro. O dispositivo permitirá a aquisição da parte ideal pertencente ao seu ex-cônjuge ou companheiro em razão de ter abandonado o lar permitindo ao interessado que tenha permanecido na posse do bem a possibilidade de ser seu proprietário exclusivo. b) Na usucapião familiar, ainda, o prazo (lapso temporal), neste caso, é muito inferior às demais espécies de usucapião contempladas no Código Civil, pois o pretendente, exercendo uma posse por um período ininterrupto de 2 anos será suficiente para adquirir a parte de propriedade pertencente ao seu ex-cônjuge ou ex-companheiro.

Embora o novo art. 1.240-A do Código Civil não o preveja expressamente, forçoso é entender que o ato de abandono que justifica a espécie de usucapião em apreço deve ser voluntário e injustificado.

Sintetizando, temos no direito brasileiro, com exceção da usucapião familiar e indígena, as seguintes modalidades e requisitos de usucapião.[23]

Modalidades

Tempo

Boa-fé

Justo título

Restrições

Usucapião Extraordinária

(Art. 1.238 do CC)

15 anos podendo chegar a 10 anos

NÃO EXIGE

NÃO EXIGE

SEM RESTRIÇÕES

Usucapião Ordinária

(Art. 1.242 do CC)

10 anos podendo chegar a 5 anos

EXIGE

EXIGE

SEM RESTRIÇÕES

Usucapião Const. Rural (Arts. 191 da CR e 1.239 do CC)

5 anos

NÃO EXIGE

NÃO EXIGE

1. Área rural de até 50 ha;

2. Não ter outro imóvel urbano ou rural;

3. Utilizar como sua moradia e tirar dali o seu sustento.

Usucapião Const. Urbano (Arts. 183 da CR, 1.240 do CC e 9º do EC.

5 anos

NÃO EXIGE

NÃO EXIGE

1. Área urbana de até 250 m2;

2. Não ter outro imóvel urbano ou rural;

3. Utilizar como sua moradia.

Usucapião coletiva Urbana (Art. 10 do EC)

5 anos

NÃO EXIGE

NÃO EXIGE

1. Área urbana superior a 250 m2;

2. Ocupada por população de baixa renda;

3. Utilizada como sua moradia;

4. Impossibilidade de se identificar os terrenos ocupados por cada possuidor;

5. Possuidores não serem donos de outro imóvel urbano ou rural.

6 EFEITOS DA USUCAPIÃO

O efeito fundamental da usucapião é transferir ao possuidor a propriedade da coisa. É certo que, não raro, o verdadeiro proprietário se socorre da usucapião para acabar qualquer incerteza de seu direito. Quando o proprietário se socorrer da usucapião para dirimir qualquer incerteza de seu direito, estará a ação disciplinada pelo parágrafo único do art. 1.242. Nesses casos, a usucapião limita-se a confirmar direito de propriedade preexistente, mas, ainda assim, deve ser tida como o modo pelo qual é adquirido, uma vez que esse direito não podia ser estabelecido.[24]

A usucapião, em geral, aproveita ao possuidor que não é proprietário.

Com a finalidade de proteger terceiros que, supondo o ser proprietário o possuidor, mantiveram relações jurídicas com base na aparência de propriedade, a aquisição da propriedade pela usucapião opera-se pelo efeito ex tunc, retroagindo ao momento em que se inicia a posse.

 Salienta-se que esta retroatividade acarreta consequências, tais como: a) todos os atos praticados pelo possuído são válidos; b) mesmo que fosse possuidor de má-fé, não estará obrigado a restituir os frutos da coisa; c) os atos praticados pelo proprietário no decurso do prazo da usucapião decaem, se esta é consumada. Assim, se o possuidor constitui direitos reais sobre o bem, consideram-se válidos desde o momento da constituição, uma vez consumada a usucapião.

A ação de usucapião compete ao possuidor para que se lhe declare o domínio do imóvel.[25] Exige-se atualmente que a petição inicial seja instruída com a planta do imóvel. O procedimento é ordinário e a sentença deve ser transcrita no Registro de Imóveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A posse prolongada de um bem pode conduzir à aquisição da propriedade, se preenchidos determinados requisitos estabelecidos em lei. Concretamente falando, usucapião é o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficientemente prolongada sob determinadas condições.

A possibilidade de a posse prolongada gerar a propriedade justifica-se pelo sentido social e axiológico das coisas. É uma premiação àquele que se utiliza utilmente do bem, em detrimento daquele que deixa escoar o tempo, sem dele utilizar-se ou não se insurgindo que outro o faça, como se fosse dono. Destarte, não haveria justiça em suprimir-se o uso e o gozo de imóvel de quem dele cuidou, produzir ou residiu por longo espaço de tempo, sem oposição.

Embora destinado a móveis e imóveis, é evidente a maior observância econômica e social dos imóveis. Tendo sob orientação esses princípios é que nossa legislação mais recente permite prazos menores do que os estabelecidos originalmente no Código Civil para certas modalidades conforme examinado. Assim, a usucapião tem o condão de transformar a situação do fato da posse, sempre suscetível a vicissitudes, em propriedade, situação jurídica definida. Nesse sentido também se coloca a prescrição extintiva que procura dar estabilidade à relação jurídica pendente. Desse modo, justifica-se a perda da coisa pelo proprietário em favor do possuidor.

Assim, verifica-se que o Instituto da Usucapião, em suas diversas modalidades, mostra-se clara e efetivamente um instrumento de regularização da questão fundiária, seja ela de natureza urbana, seja ela de natureza rural concretizando o Princípio Constitucional da Função Social da Propriedade. Confere-se, assim, segurança da posse dada a todos aqueles que preencham os requisitos necessários para a caracterização do instituto através da titularidade da propriedade então conferida.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 18. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. V. 1.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. V. 4.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

GOMES, Orlando. Direitos reais. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. (atualizada por Luiz Édson Fachin)

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das Coisas. Coleção Direito Civil./Adriano Stanley. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único/Flávio Tartuce. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais/Sílvio de Salva Venosa – 11. Ed. – São Paulo: Atlas, 2011. – (Coleção direito civil; v. 5)

[1] HOLANDA, Aurelio Buarque de, cf. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 434.

[2] CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, cf. Direitos Reais, 4ª edição, p. 258.

[3] SERPA LOPES ensina que “em primeiro lugar, destinava-se a transformar em domínio a posse daquele que tinha a coisa in bonis, constituindo formidável mecanismo por força do qual o defeito de regularidade do título de propriedade era constantemente sanado, de modo que a propriedade e a posse, separados durante uma certa fase, se reuniam novamente” , cf. Tratado dos Registros Públicos, nº 607.

[4] DINIZ, Maria Helena, cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 142.

[5] CORDEIRO, Antônio de Menezes, cf. A Posse: perspectivas dogmáticas atuais, p. 52.

[6] R. Von Ihering, cf. Teoria simplificada da posse, p. 09.

[7] R. Von Ihering, cf. Teoria simplificada da posse, p. 13.

[8] MOREIRA ALVES, José Carlos, cf. Posse – estudo dogmático, p. 39.

[9] R. Von Ihering, cf. Teoria Simplificada da Posse, p. 44.

[10] R. Von Ihering, cf. Teoria simplificada da posse, p. 62.

[11] HAHNEMANN Guimarães, A propriedade, Ver. De Direito Contemporâneo, 3:8-10, 1957; Serpa Lopes, Curso de direito civil, 2 ed., Freitas Bastos, p. 233-4; Pachioni, Corso di diritto romano, v. 2, p. 195; Eduard Cuq, Manual de droit romain, p. 245 e s.; Von Mayr, História Del derecho romano, p. 175; Arangio Ruiz, Istituzioni di diritto romano, p. 180 e s.; Silvio Meira, Instituições de direito romano, 2. Ed., São Paulo, Max Limonad, n. 132 a 137.

[12] BRUGI, Instituiciones de derecho civil, p. 177.

[13] DAIBERT, op. Cit., p. 147; Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 1978, v. 3, p. 86.

[14] Vide W. Barros Monteiro, op. Cit., p. 82-3.

[15] W. Barros Monteiro, op. Cit., p. 83.

[16] W. Barros Monteiro, op. Cit., p. 83.

[17] Planiol, Traité élémentaire de droit civil, 12.ed., v.1, p. 793, citado por W. Barros Monteiro, op. Cit., p. 84, citado por Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, 26 ed., v. 4, p.124.

[18] Radbruch, Filosofia do Direito, v. 2, p. 31, citado por W. Barros Monteiro, op. Cit., p. 84, citado por Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, 26 ed, v. 4, p. 125.

[19] Daibert, op. Cit., p. 157; Silvio Rodrigues, op. Cit., p. 99; Serpa Lopes, op. cit., p. 252; Rné Gonnard, La propriété dans la doctrine et dans I’histoire, Paris, 1943, p. 56; W. Barros Monteiro, op. Cit., p. 84; Laurent, Principes de droit civil, p. 9-107; Cunha Gonçalves, Tratado de direito civil, v. 11, p. 170; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, 26 ed. v. 4, p. 125

[20] Planiol e Ripert, Traité pratique de droit civil français, Paris, 1926, v. 3; Gustavo Tepedino, Contorni della proprietà nella Costituizione brasiliana Del 1988, Rassegna di Diritto Civile, 1: 96-119, 1991.

[21] Lafayette, Clóvis Beviláqua, Espínola, dentre outros.

[22] Flávio Tartuce, Manual de Direito Civil, Volume Único, Editora Método, São Paulo, 2011, p. 834-835.

[23] Adriano Stanley, Direito das Coisas, p. 97

[24] Mazeaud e Mazeaud, ob. Cit.

[25] Está regulada nos arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil. O CPC trata a usucapião como procedimento especial quanto às “terras particulares”. Poderá ser ordinário ou sumário, conforme o valor.

Sobre o autor
Kenedys Fernandes de Souza

Advogado em Ipatinga/MG

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