RESUMO: O intuito do presente trabalho é analisar, no âmbito do direito da concorrência, os critérios utilizados pelo Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência para determinar se a pratica de descontos diferenciados se enquadra como infração à ordem econômica.
ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze, in the context of the Brazilian Competition Law, the criteria used by the Administrative Council for Economic Defense to determine whether the rebate policy is considered a violation of the economic order.
Palavras-chave: Infração à ordem econômica; politica de descontos; discriminação de preços;
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Discriminação de preços como infração à ordem econômica. 3. Analise ao caso concreto. 4. Precedentes. 4.1. Processo Administrativo 08012.003541/2000-71. 4.2. Averiguação preliminar nº 08012.004356/99-16 5. Bibliografia 6. Jurisprudência
Política de descontos e a discriminação de preços
1. Introdução
O objetivo deste artigo é analisar a legalidade das políticas de preços e descontos praticadas pelas empresas perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”).
A prática de descontos não contempla a possibilidade de aplicação do critério de ilegalidade per se na avaliação de condutas e, por conseguinte, impõe a análise dos efeitos com base na “regra da razão”, ou seja, a aplicação ao caso concreto dos princípios da razoabilidade ou proporcionalidade.
Contudo, é necessário ter cuidado com o formato dos descontos praticados, tendo em vista que há casos com maior probabilidade de lesão à concorrência, por exemplo, os casos que se valem da exclusividade, da venda casada e da discriminação de preços em estruturas verticalmente integradas, quando se trata de exclusão de concorrentes. Vale ressaltar, no entanto, que mesmo nestes casos cabe a aplicação da regra da razão.
A discriminação de preços consiste em proporcionar a determinado cliente vantagens não concedidas a outros. Há condições em que essa discriminação é legal e aceitável com é o caso da diferenciação por quantidade adquirida. Em função dos rendimentos de escala é aceitável que uma transação de grande volume de unidades tenha preços menores que outra de reduzida quantidade. Vale ressaltar que essa diferenciação pode se manifestar diretamente em preços desiguais, mas também em função de prazos e condições de pagamento.
2. A discriminação de preços como infração à ordem econômica
Discriminar preços significa vender a distintos distribuidores ou revendedores um idêntico produto por preço desigual, sem qualquer parâmetro objetivo que justifique a distinção.
A priori, a concessão de diferentes níveis de descontos a diferentes categorias de clientes não deve ser vista como conduta anticompetitiva. Contudo, sob certas circunstâncias, tal prática pode configurar a conduta de discriminação de preços por estar associada a exercícios abusivos de poder de mercado e a consequentes efeitos anticompetitivos. Isso ocorre também porque o preço é o poder de barganha que têm os fornecedores ao estabelecer suas relações contratuais.
Portanto, de acordo com o art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência, a discriminação está inserida no rol de condutas que podem ser punidas pelo Conselho:
"Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante. (...) X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; (...)" (grifos nossos)
3. Analise ao caso concreto
Ao avaliar se determinada pratica é prejudicial à concorrência, as autoridades buscam identificar o poder de mercado por parte da empresa que adota a referida prática, isto é, se ela tem uma posição dominante. Nesse sentido, vale ressaltar que a posição dominante é presumida sempre que o agente “for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia[1]".
Além do poder de mercado exercido pelo agente, outros fatores estruturais de mercado são levados em consideração durante a analise pela autoridade antitruste, pois podem justificar a distinção dos preços. Exemplos de tais fatores são (i) o market share da empresa; (ii) a existência de competidores relevantes e o correspondente nível de rivalidade entre eles; (iii) a facilidade de entrada de novos players no mercado relevante; e (iv) os parâmetros objetivos que diferenciam as categorias de clientes.
4. Precedentes
Conforme os argumentos abordados em precedentes[2] do CADE, é possível identificar, ainda que de forma incipiente e não vinculativa, possíveis tendências sobre a matéria. Tais precedentes revelam, em suma, que o entendimento do Conselho quanto a discriminação de preços como infração à ordem econômica ocorre quando há: (i) presença de posição dominante; e (ii) ausência de justificativa da discriminação. Além disso, uma forma de discriminação de preços com possíveis efeitos anticompetitivos seria seu uso como tática de preços predatórios, estabelecendo preços abaixo do custo para determinados clientes.
Por outro lado, entre as principais justificativas aceitas para a discriminação de preços encontram-se: a redução de custos, existência de diferentes custos de negociação entre diferentes clientes e estratégia de concorrência diferenciada para disputar diferentes nichos de consumidores.
Assim, o fato de a empresa agrupar consumidores com características distintas e a eles aplicar tratamento diferenciado não necessariamente constitui infração à ordem econômica, muitas vezes constituindo parte da estratégia concorrencial da empresa. Demonstrada a lógica econômica da discriminação de preços, a prática não se constitui em ilegalidade do ponto de vista antitruste.
Conforme trecho abaixo, o entendimento do Conselho tem sido nesse sentido:
“(...) Assim, a discriminação de preços apenas pode constituir violação da lei antitruste desde que 1) configurada posição dominante; e 2) que a discriminação não possa ser justificada de forma afirmativa, por exemplo, com redução de custos, existência de diferentes custos de negociação entre diferentes clientes, ou ainda, como estratégia de concorrência diferenciada para disputar diferentes nichos de consumidores. Uma forma típica de discriminação de preços seria seu uso com tática de preços predatórios, estabelecendo preços abaixo do custo para determinados clientes[3].
Vale lembrar também que não há, no ordenamento pátrio vigente, qualquer previsão legal que determine que a empresa deva padronizar os seus preços para um determinado produto em distintos fornecimentos. Isso porque há inúmeros fatores podem alterar a precificação de um produto, como por exemplo: (i) a localidade e a estrutura necessária para que o fornecimento do produto se torne viável; (ii) periodicidade do fornecimento e quantidade de produtos fornecidos; e (iii) fatores relacionados ao contexto econômico no momento da venda, como a flutuação cambial.
Assim, como será evidenciado em seguida, é necessário demonstrar que os valores finais decorrem da aplicação objetiva dos custos e circunstâncias inerentes à cadeia produtiva e de fornecimento, ou das peculiaridades inerentes a cada cliente.
4.1. Processo Administrativo 08012.003541/2000-71
O processo administrativo[4] investigou as empresas Tigres e Trikem por suposta prática de exercício abusivo de posição dominante por meio de discriminação de preços de adquirentes de resinas de PVC, atingindo a Representante e cerceando a concorrência no mercado em questão.
No caso, a Representada adotava uma política de discriminação de preços cujo critério se baseava no volume mensal de compras de seus clientes, divididos em quatro grupos, de acordo com o volume de compras mensal de cada um: (i) Grupo “A”- 14 mil toneladas/mês; (ii) Grupo “B”- 3 a 14 mil toneladas/mês; (iii) Grupo “C”- 500t a 2,999 mil toneladas/mês; e (iv) Grupo “D”- até 499 toneladas/mês.
Nesse caso, o CADE entendeu que a discriminação era aceitável, pois tratava-se de uma política que funcionava por um sistema objetivo segundo compras mensais, isto é, empresas com maiores retiradas teriam acesso a preços mais baixos. Trata-se, portanto, de uma política onde os clientes são agrupados em categorias segundo a quantidade adquirida mensalmente.
Além disso, a autoridade concluiu-se que a política de discriminação de preços praticada pela Trikem dificilmente implicaria em efeitos negativos ao bem-estar, uma vez que: (i) há baixa probabilidade de exercício de poder de mercado, (ii) é grande a probabilidade de que a Trikem esteja praticando preços próximos ao valor de reserva das empresas que constituem os grupos de discriminação, e (iii) é grande a probabilidade de serem encontradas eficiências relativas a redução de custos causadas pelo critério utilizado pela política de discriminação.
Tal entendimento vem sendo assentado pelo órgão de defesa da concorrência:
“(...) a diferenciação de preços por quantidades retiradas reflete uma posição negociada usual, onde um grande cliente obtém descontos maiores pelo volume comprado, e que possui uma lógica econômica. As empresas direcionam seu foco para a faixa de clientes específica, para a qual é estruturada a logística de vendas-atacado ou varejo”[5]
“(...) clientes que adquirem maiores quantidades conseguem preços mais favoráveis, na medida em que os custos de transação para o produtor são menores. Ou seja, a diferenciação não implica imposição de preços abusivos e aumento arbitrário dos lucros da empresa”.[6]
“A discriminação de condições comerciais entre compradores não pode ser considerada de imediato uma infração da ordem econômica, sendo necessária para esta caracterização que estejam presentes os pressupostos do art. 20 da Lei n.º 8.884/94. De fato, a diferenciação das condições comerciais entre clientes é resultado da concorrência e não uma forma de burlá-la. Diferença nos volumes adquiridos dão maior poder de barganha para uns clientes em relação aos outros. Diferentes capacidades de pagamento entre clientes dão mais ou menos confiança ao fornecedor na abertura das linhas de crédito e estabelecimento da condições de pagamento. Um maior tempo de relacionamento comercial dá mais confiança ao vendedor. O fornecedor frequentemente estabelece preços distintos entre clientes de setores diferentes para viabilizar suas vendas em segmentos mais competitivos”.[7]
Desta forma, o processo administrativo em questão foi arquivado, uma vez que o simples fato de haver tratamento diferenciado entre clientes não constitui em si uma infração contra a ordem econômica. Assim, não há falar em favorecimento por parte da Trikem às outras empresas como a Tigre e Fortilit, pois para que a Representante pudesse comprar no mesmo preço dessas empresas, teria que comprar em volume igual, o que não foi provado que ocorreu em momento algum.
4.2. Averiguação preliminar nº 08012.004356/99-16
A denúncia, que envolvia a empresa Novartis Biociências S.A.[8], alegava que ela teria praticado as seguintes condutas: (i) recusa na venda de bens, (ii) discriminação de preços e (iii) rompimento de relações comerciais em face da recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas ou condições anticoncorrenciais. No entanto, em sua defesa, a empresa alegou que não recusou a venda de bens, mas praticou diferentes descontos em relação a seus clientes, que eram concedidos de acordo com critérios objetivos estabelecidos na política de vendas, existente à época dos fatos.
Primeiramente, o CADE entendeu que não houve recusa de venda de bens, nem a imposição de cláusulas anticoncorrenciais. A alegação de discriminação de preços também não prosperou. Isso porque a política de vendas da empresa observou as condições admitidas pela Lei de Defesa da Concorrência, uma vez que ela: (i) mantém a concorrência no mercado de distribuição, (ii) apresenta critérios objetivos e (iii) opera segundo a regra de razoabilidade. Além disso, não houve indícios de conduta anticoncorrencial que ensejasse à instauração de processo administrativo, sendo que no o mercado operava em sua normalidade.
5. Bibliografia
FORGIONI, Paula A. Os fundamentos da Antitruste. São Paulo: Editora RT, 1998.
6. Jurisprudência
Processo Administrativo nº 08012.001099/1999-71 (Representante: Steel Placas Indústria e Comércio Representadas: Queiroz & Sousa Comércio de Placas Automotivas Ltda., Reprinco Indústria e Comércio Ltda., e Comepla Indústria e Comércio Ltda)
Processo Administrativo nº 08012.007443/99-17 (Representante: SDE "Ex Offício" Representadas: Libra Terminais S/A-T-37, Companhia Siderúrgica Paulista – COSIPA, e Santos Brasil S/A - TECON Terminal de Contêineres)
Processo Administrativo nº 08012.003541/2000-71 (Representante: Campina Grande Industrial S/A e Representadas: Tigres S/A - Tubos e Conexões e Trikem S/A)
Averiguação Preliminar nº 08012.008084/2005-15 (Representante: São João Postos de Abastecimento e Serviços Ltda e Representada: Esso Brasileira de Petróleo Ltda.
Averiguação Preliminar nº 08012.004356/1999-16 Representante: Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE e Representada: Novartis Biociências S/A.
Averiguação Preliminar nº 08012.011766/2007-77 (Representante: Associação Nacional dos Usuários de Transporte de Carga e Representadas: MRS Logística S.A., Ferrovia Tereza Cristina S.A, Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, Companhia Ferroviária do Nordeste – CFN, ALL - América Latina Logística S/A
Averiguação Preliminar nº 08012.001493/2008-33 (Representante: Arthur Villamil Martins Representadas: Companhia de Gás de Minas Gerais - GASMIG)
Processo Administrativo n.º 33/92 (Representantes: Frigelas Moto Refrigeração Ltda., NCL- Intercorp Comércio, Importação e Exportação, Senter Indústria e Comércio Ltda., VNC Comercial Importadora e Exportadora Ltda. e Zero Grau Comercial Ltda. e Representadas: ABRAPAR- Associação Brasileira das Indústrias de Produtos para Refrigeração, Du Pont do Brasil S/A e Hoechst do Brasil Química e Farmacêutica S/A, Conselheiro Relator: Ruy Afonso de Souzacruz Lima)
Processo Administrativo n.º 96/92 (Representante: DNPDE “ex officio”, Representada: Itapetinga Agro Industrial S/A, Conselheiro Relator: Marcelo Procópio Calliari)
Processo Administrativo n.º 111/92 (Representante: DNPDE “ex officio”, Representada: Companhia Materiais Sulfurosos MATSULFUR, Conselheiro Relator: Mércio Felsky).
[1] Artigo 36 da Lei 12.529/2011: “(...)§ 2o Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia".
[2] Processo Administrativo nº 08012.001099/1999-71 (Representante: Steel Placas Indústria e Comércio Representadas: Queiroz & Sousa Comércio de Placas Automotivas Ltda., Reprinco Indústria e Comércio Ltda., e Comepla Indústria e Comércio Ltda), Processo Administrativo nº 08012.007443/99-17 (Representante: SDE "Ex Offício" Representadas: Libra Terminais S/A-T-37, Companhia Siderúrgica Paulista – COSIPA, e Santos Brasil S/A - TECON Terminal de Contêineres), Processo Administrativo nº 08012.003541/2000-71 (Representante: Campina Grande Industrial S/A e Representadas: Tigres S/A - Tubos e Conexões e Trikem S/A), Averiguação Preliminar nº 08012.008084/2005-15 (Representante: São João Postos de Abastecimento e Serviços Ltda e Representada: Esso Brasileira de Petróleo Ltda, Averiguação Preliminar nº 08012.004356/1999-16 Representante: Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE e Representada: Novartis Biociências S/A.
[3] Voto proferido pelo CADE na Consulta n.° 52/2010 (Consulente: Procon do Estado do Amazonas).
[4] Processo administrativo nº 08012.003541/2000-71 (Representante: Campina Grande Industrial S/A e Representadas: Tigres S/A - Tubos e Conexões e Trikem S/A)
[5] Processo Administrativo n.º 96/92, Representante: DNPDE “ex officio”, Representada: Itapetinga Agro Industrial S/A, Conselheiro Relator: Marcelo Procópio Calliari.
[6] Processo Administrativo n.º 111/92, Representante: DNPDE “ex officio”, Representada: Companhia Materiais SulfurososMATSULFUR, Conselheiro Relator: Mércio Felsky.
[7] Processo Administrativo n.º 33/92, Representantes: Frigelas Moto Refrigeração Ltda., NCL- Intercorp Comércio, Importação e Exportação, Senter Indústria e Comércio Ltda., VNC Comercial Importadora e Exportadora Ltda. e Zero Grau Comercial Ltda.,Representada: ABRAPAR- Associação Brasileira das Indústrias de Produtos para Refrigeração, Du Pont do Brasil S/A e Hoechst do Brasil Química e Farmacêutica S/A, Conselheiro Relator: Ruy Afonso de Souzacruz Lima.
[8] Averiguação Preliminar nº 08012.004356/1999-16 Representante: Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE e Representada: Novartis Biociências S/A.