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Direito penal da "limpeza": reflexões acerca da teoria das janelas quebradas e do direito penal do inimigo

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Agenda 23/02/2015 às 14:53

Noutras palavras, não se pode autorizar o Estado a descurar, por completo, daqueles delitos que causem pequenas ou quase nenhuma lesão ao bem jurídico tutelado, ou seja, permissibilidade, em casos específicos, conduz a uma graduação criminal indesejada e conseqüentemente a uma falsa noção de impunidade.

Doutra banda, também é certo que o Estado Constitucional de Direito repudia movimentos extremistas – como se manifesta o Direito Penal do Inimigo –, devendo dar prevalência, logo, a medidas intermediárias[20], garantindo um sistema penal minimalista, porém que enobreça o peso da norma penal quando incidente, possibilitando um procedimento de punição criminal previsível, rigoroso, célere e eficaz.

CONCLUSÃO

Embora esteja consolidada no seio popular uma posição ideologizada do sistema penal, erguida especialmente nos discursos penais populistas de lei e ordem e de tolerância zero, na dogmática da criminologia há inúmeras manifestações antagônicas que denunciam as falácias destas categorias, demonstrando suas incoerências e leviandades. É o que se abstrai das modernas contribuições científicas em Direito Penal e de políticas criminais adotadas ao redor do mundo.

Sobrelevar notar, por outra via, a imprescindibilidade do Direito Penal, porém minimalista, mas efetivo, a fim de se solidificarem as bases democráticas do Estado de Direito.

Cumpre argumentar, por oportuno, que há, atualmente, grande oposição à política criminal minimalista. Este é o panorama real. A sociedade civil sofre com a violência e clama por segurança e, segundo as teorias máximas do Direito Penal citadas ao longo deste trabalho, deve-se rebater o crime com um mal duplicado, ainda que à revelia de parte de garantias e dos direitos individuais da pessoa humana.

No cerne da discussão sobre uma política criminal racional é fundamental reconhecer que a adoção indiscriminada de um Direito simbólico oculta os efetivos limites operativos do Direito Penal e dissimula a omissão do Estado na adoção de políticas públicas e de outras formas de controle social, essenciais para que um modelo de ‘Direito Penal do Inimigo’ seja, mais que excepcional, efetivamente transitório.

Não há dúvida de que seria um retrocesso a aceitação de qualquer movimento que buscasse a multiplicação dos tipos penais incriminadores apenas para satisfazer uma sanha punitiva. Seria também um declínio em termos de política criminal o impedimento de benefícios na execução penal, tudo para a mantença dos encarcerados na situação em que se encontram, onde sequer vislumbram um novo tipo de vida em liberdade.

Quando se brada com populismo penal e demagogia, no sentido de que “faltam leis” ou que “a lei deve ser mais severa”, incorre-se na esparrela de ocultar o efetivo problema, esconder a realidade e fingir que se vive em uma sociedade livre, justa, solidária e imaculada, onde há um inimigo que deve ser expurgado a todo custo e ser necessariamente levado ao cárcere.

Enfim, o falacioso discurso de movimentos como o de Lei e Ordem, que pregam a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos afasta do verdadeiro problema, consubstanciado nas infrações penais de grande monta, que atingem os bens mais caros ao convívio social, haja vista que nos míngua o tempo, talvez intencionalmente, com infrações penais irrelevantes, servindo apenas para afirmar o caráter simbólico de um Direito Penal que almeja ser o instrutor da sociedade, a fim de abafar o calamitoso defeito do Estado, que não consegue adimplir suas funções sociais, permitindo que, dia a dia, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, a revolta de estratos sociais humildes, elastecendo, conseqüentemente, o número de infrações penais visíveis, que, a seu turno, incomodam a comunidade, clemente por justiça. O círculo vicioso é eterno.

O papel do Estado e do policial é um símbolo alertando que há lei ali, mas para funcionar de fato é preciso que a população assuma seu papel frente a si mesma, defendendo em cada detalhe seus valores e objetivos, gerando assim um circulo virtuoso. Melhorias devem ser feitas na cultura social, assumindo todos uma postura proativa no combate a pequenos e grandes ilícitos. Não devemos ignorar o errado sem nos posicionar - como se não nos dissesse respeito -, pois uma sociedade segura é dever de todos.

A mudança de um modelo mental individualista para um coletivista, ainda mais em nossa cultura um tanto acomodada e leniente, é a maior e mais delicada tarefa que temos. É frágil, uma simples retórica a cria, mas só se mantém com fatos frequentes. O bom é que estamos evoluindo, um passo de cada vez.

Nesses moldes, não podemos desistir do homem, sob o falso argumento de ser ele incorrigível, de possuir um defeito de caráter, que o impede de agir conforme os demais cidadãos.

A noção de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência.

Essa ótica categórica de que a única saída para reduzir a criminalidade é o engrossamento da punibilidade pode ser prejudicial à sociedade. Levando a cabo esse pensamento restrito, analisa-se apenas o delito como uma infração à norma jurídica sem analisar a etiologia do delito, ou seja, suas causas e origens.

A edificação de uma sociedade legitimamente democrática, e segura, perpassa obrigatoriamente pela elaboração de um conceito democrático de responsabilidade penal. O Estado de Direito depende disso, e nós também.

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NOTAS EXPLICATIVAS

[1] O vocábulo criminologia deriva das palavras em latim crimino (crime) e do grego logos (tratado ou estudo). Representa, portanto, uma ciência dedicada à análise do crime, mormente de suas origens.

[2] KELLING (2014) aponta que a política de “tolerância zero” distorceu a abordagem da Teoria das Janelas Quebradas, na medida em que ignorou a participação da comunidade nas decisões, ficando gerida única e exclusivamente pelo poder público. Para ele, a opinião da população que sofre os efeitos negativos da explosão criminosa é crucial para a política de confronto.

[3] Na visão de Rogério Greco (2009, p. 12), a mídia no final do século passado e início do atual foi a grande propagadora e divulgadora deste movimento de Lei e Ordem: “profissionais não habilitados chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de indivíduos não adaptados”.

[4] Trata-se de política criminal extremamente repressiva, em contraposição ao modelo garantista, de intervenção penal mínima, no qual se baseia a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Para alguns, representa medida apta e necessária para frear a onda de violência, decorrente da falência do Estado de bem-estar social (Welfare State). No decorrer deste artigo, aprofundar-se-á no estudo desse conceito.

[5] Importante ressalvar que, no programa da política de “tolerância zero”, preconiza-se claramente que aos abusos de autoridade da polícia e dos governantes também deve-se aplicar a reprimenda máxima. Contudo, na prática, não se observou essa ideologia.

[6] Merecem destaque as críticas realizadas por Jock Young (2002, p. 199-200), quando condena a política de tolerância zero: “Como manobra que objetiva limpar as ruas de ‘destroços’ humanos; como parte do processo de exclusão concomitante à emergência de uma sociedade com grande população marginalizada e empobrecida, a qual deve ser dominada e contida – um processamento atuarial que se preocupa mais com saneamento do que com justiça. Pois os felizes compradores nos shoppings não podem ser perturbados pelo grotesco dos despossuídos, que bebem em pleno dia”.

[7] O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de aplicar a Teoria das Janelas Quebradas em habeas corpus em que se discutia o princípio da insignificância. A ementa do acórdão restou assim redigida:

HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. BENS SUBTRAÍDOS AVALIADOS EM  R$ 86,00. APLICAÇÃO DA TEORIA DA JANELA QUEBRADA NO DIREITO PENAL. REPROVABILIDADE DA CONDUTA.  CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO DEMONSTRADO. 3. ORDEM NÃO CONHECIDA.

1. [...]

2. A lei penal não deve ser invocada para atuar em hipóteses desprovidas de significação social, razão pela qual os princípios da insignificância e da intervenção mínima surgem para evitar situações dessa natureza, atuando como instrumentos de interpretação restrita do tipo penal.

3. Segundo assentado pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 98.152/MG, para a aplicação do princípio da insignificância devem ser levados em conta os seguintes vetores: a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

4. Ainda que o delito tenha gravidade não exacerbada ao bem juridicamente tutelado, não é permitido ao Estado dele descurar, sob pena de estimular a prática de crimes mais graves. Trata-se da aplicação da denominada Teoria da Janela Quebrada no Direito Penal. (grifo nosso)

5. A tentativa de furto de bens móveis, avaliados em R$ 86,00 (oitenta e seis reais), de uma casa mediante escalada e rompimento de obstáculo, não enseja a aplicação do princípio da insignificância porque não atendido o requisito do reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente. (grifo nosso)

[...]

(HC 278.612/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 23/10/2013).

[8] Segundo Juarez Cirino dos Santos (2014): “Na lógica de extermínio do direito penal do inimigo concebido por JAKOBS, o cidadão/pessoa cometeria apenas deslizes, porque não seria um delinqüente por princípio e, por isso, a aplicação da pena estatal teria o significado de mera contradição fática; em contrapartida, o indivíduo/inimigo praticaria violência para destruir o Estado, porque seria um criminoso por princípio e, por isso, a aplicação da pena estatal não teria o significado de simples contradição fática, mas de guerra oficial para garantir o direito de segurança dos cidadãos. [...] A divisão da clientela do sistema penal na dicotomia cidadão/inimigo funda-se no conceito de personalidade, como indicado: na linguagem de JAKOBS, sujeitos com comportamentos contra-fáticos eventuais, mas capazes de satisfação das expectativas normativas, teriam personalidade de cidadãos”.

[9] Não se trata de garantir o devido processo legal (due process of law), mas de efetivar um procedimento de guerra, em que os instrumentos de defesas são fortemente reduzidos, ou inexistentes.

[10] Para aprofundamento do conhecimento das teses encampadas pelos filósofos citados, mormente os contratualistas, que repercutiram no Direito Penal do Inimigo, sugerimos o trabalho científico de Alexandre Rocha Almeida de Moraes (A Terceira Velocidade do Direito Penal: o Direito Penal do Inimigo. 2006. 327 p.  Dissertação (Mestrado em Direito Penal). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2006).

[11] Niklas Luhmann preconiza a diferenciação funcional dos sistemas (Político, Econômico, Jurídico etc.) e defende que a função do Direito será estabilizar congruentemente expectativas normativas. Esta será justamente a função primordial da pena defendida pelo funcionalismo de JAKOBS, isto é, garantir a higidez do ordenamento jurídico. A Teoria funcional sistêmica, de cuja ordem é JAKOBS, especifica que um sistema social só poderá existir se o Direito Penal assegurar a validade ou vigência das normas penais, dessa forma, o direito penal repressor, baseado na teoria radical, teria a função de estabilizar a ordem social através da imputação das condutas indesejáveis pela sociedade e o delito significaria oposição a eficácia normativa, ao passo que a sanção restabeleceria a obediência ao direito. O bem jurídico no sistema penal funcionalista radical é exatamente a norma penal, que deve ser protegida, para que haja a manutenção de uma ordem social estável e duradoura, esse modelo, portanto, sustenta que a finalidade do Direito seria possibilitar a seleção de determinadas expectativas de comportamento no contexto social, aqui, a finalidade precípua de Direito Penal seria a manutenção e garantia da identidade da sociedade.

[12] No ordenamento jurídico brasileiro, adota-se o Direito Penal do Fato, inspirado pela carga axiológica da Constituição Federal. Todavia, adota-se o Direito Penal do Autor em eventual aplicação da pena, quando outros vetores se somam à culpabilidade do agente, aferida quando da condenação. Registre-se que vários diplomas legais brasileiros possuem ranço do Direito Penal do Inimigo, tais como Lei 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos), Lei 9.614/98 (Lei do Abate), Lei 10.792/03 (Regime Disciplinar Diferenciado) e Lei 12.850/13 (Lei das organizações criminosas).

[13] Narra Rogério Greco (2014) os terríveis desdobramentos da política lançada por Hitler, à imagem e à semelhança com a teoria de JAKOBS: “Com a assunção de Hitler ao poder, o partido nacional-socialista tratou, imediatamente, de começar a reorganizar, de acordo com seus critérios escusos, o Estado alemão, culminando, em 1944, com a edição do projeto nacional-socialista sobre o tratamento dos estranhos à comunidade, que nos foi trazido à luz, recentemente, por meio de um trabalho incansável de pesquisa levado a efeito pelo professor Francisco Muñoz Conde, em sua obra intitulada Edmund Mezger e o Direito Penal de Seu Tempo. Tal projeto, considerado como um dos mais terríveis da história do Direito Penal, propunha, dentre outras coisas: a) a castração dos homossexuais; b) a prisão por tempo indeterminado dos considerados associais, ou seja, pessoas que tivessem um comportamento anti-social, a exemplo dos vadios, prostitutas, alcoólatras, praticantes de pequenas infrações penais, etc., sem que houvesse necessidade, inclusive, de que tivessem praticado qualquer delito; c) a esterilização, a fim de evitar a propagação daqueles considerados associais e inúteis para a sociedade”.

[14] MELLO, 1988, p. 230 apud REBELO, 2014.

[15] ESSER apud ÁVILA, 2012, p.38.

[16] CONDE apud LUISI, 2003, p.40.

[17] Conquanto a formulação do princípio seja, indiscutivelmente, de Claus Roxin, já em 1896, Franz von Listz enfatizava que a legislação de seu tempo fazia um uso excessivo da arma da pena e indagava se não seria oportuno acolher, de novo, a máxima minima non curat praetor, a significar que um magistrado  deve desprezar casos insignificantes para cuidar das questões realmente inadiáveis.

[18] (STF, HC 98152, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/05/2009, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-03 PP-00584 RF v. 105, n. 401, 2009, p. 594-602 LEXSTF v. 31, n. 366, 2009, p. 416-429).

[19] O recorrente pretexto fornecido pelo Poder Judiciário de que está abarrotado de processos tampouco pode servir-se à aplicação descomedida de referidas teorias, sob pena de falência do sistema.

[20] Sobre a necessidade de o Estado garantir a segurança da sociedade, considerada direito fundamental, aponta Lênio Streck (2014): “Se antes o Estado e os seus instrumentos legais-institucionais tinham a tarefa de proteger apenas os direitos liberais de índole individual contra a “maldade” (sic) do Estado (absenteísta), hoje esse Estado – que passou por profundas transformações – deve preocupar-se com essas novas dimensões. É por isto que Baptista Machado e Barata vão chamar a atenção para o fato de que a tarefa deste novo Estado deve dar resposta para as necessidades de segurança de todos os direitos, incluindo-se nesse rol também os prestacionais por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais) e não somente daquela parte de direitos denominados de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas”.

Sobre o autor
André Bernardes Dias

Especialista em Direito Público pela PUC-MG. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNESA. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Assessor no TJDFT.

Informações sobre o texto

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