“Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus forte, zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Bíblia Sagrada: Deuteronômio 5, 6-21; Êxodo 20, 2-17; Levítico 26, 1).
«Lo que puede un sastre»
Em 1799, comenta Victor Orozco, Francisco de Goya publicou um gravado ao qual intitulou «Lo que puede un sastre». O pintor espanhol desenhou uma árvore seca, cujo tronco e curtos ramos foram cobertos por uma túnica com capuz, representando assim a um santo, à maneira como imaginavam os crentes da época a esses homens e mulheres tocados pela divindade. Ao pé da figura central, uma jovem mulher lhe reza com devoção. Ao fundo se adverte uma procissão fervorosa, de quem vem a render-lhe preiteio, uns chorosos, outros suplicantes, esperançados, com os olhos para o céu ou cerrados, em um êxtase místico. Arriba, estão os traços de “Las Tres Furias”, as deusas mitológicas encarregadas de manter a ordem social e religiosa. Também, um homem, aparentemente um escravo, montado sobre uma coruja, símbolo da sabedoria. As interpretações sobre esta complexa trama ideada por Goya choveram durante duas centúrias.
Uma destaca que o pintor crava o afilado dardo da sátira no corpo das crenças religiosas. Se burla da fé, depositada em uma madeira disfraçada. O título não deixa lugar a dúvidas: em mãos de um «sastre», cualquer coisa mundana se transmuta em mágica, divina, milagrosa, onisapiente, onipotente. O desenho resume o fenômeno da alienação, mercê ao qual o indivíduo renuncia a seu próprio «eu» para entregá-lo ao fetiche religioso. E que não é senão uma confecção humana, ideal ou material: é o crucifixo, a relíquia da madre Teresa, a imagem ricamente adornada de um santo (a), Mahoma, Cristo, o totem da tribo, a estátua de madeira ou gesso da Virgem que opera milagres, o escapulário bendito, o céu, o inferno… e ao final, Deus.
O gravado de Goya motivou ao longo do séc. XIX uma indignada resposta dos defensores da fé. Os devotos sinceros e ingênuos sentiram que o mordaz desenho ofendia profundamente seus sentimentos religiosos e se burlava de suas crenças íntimas herdadas de pais e avós. Por sua parte, se os clérigos da igreja católica não enviaram ao audaz e traidor artista - que antes havia pintado quadros religiosos - às chamas da fogueira santa, foi porque os tempos das queimas e os autos de fé já haviam passado de moda. O quadro sobreviveu e ficou para a história como uma das mais geniais denúncias contra a manipulação da credulidade das massas.
Não é necessário ser nenhum lince ou estar dotado de um desmedido sentido comum para dar-se conta de que a gráfica representação de Goya ainda diz muito do que significa hoje a identidade católica (sendo justo, de qualquer identidade religiosa), sobretudo no que se refere à barreira mental da idolatria, da frenética devoção e do (ab) uso em espaços públicos do símbolo cristão por excelência, a cruz. Que vantagem para a fé ou para a saúde da alma aporta aos cristãos a imposição do crucifixo, convertido pouco menos que em um elemento de decoração e adorno? Quantos dos que querem que esteja presente nas salas de aula ou prédios públicos obrigam a que seus filhos saiam de casa com um crucifixo ao pescoço ostensivamente exposto? Acrescenta algo o fato de obrigar ao não crente a ter que mirar constantemente em ambientes públicos a representação da cruz e o Crucificado? Não deveriam os fiéis meditar muito seriamente sobre a utilidade que historicamente representou para sua fé a pura imposição, antes mediante a força bruta e agora mediante certos símbolos? Se difunde adequadamente e com sentido um credo religioso dessa maneira? Donde está o plus de mérito ou de virtude ao pretender obrigar aos demais a contemplar gestos e signos que, em uso de idêntica liberdade, talvez não queiram ver ou tenham por incompatíveis com suas crenças, também respeitáveis? Por acaso não percebem que essa «fixação funcional» da cruz como representação da redenção da humanidade através da execução de um carpinteiro palestino é fruto de uma das capacidades mais extraordinárias de nosso cérebro: a de imaginar coisas que realmente não existem? Que classe de religião é essa?
A «loucura» da fé, o Crucificado e a algofilia cristã
Custa trabalho saber quanto há de distorcida ignorância e quanto de espesso maquiavelismo detrás da pretensão fortemente moralizante da religião, e inclusive da visão de que o cristianismo pode determinar (ou determina) os «valores morais»[1]. Mas, estimando com a devida probidade a advertência de Susan B. Anthony de desconfiar “daqueles que sabem tão bem o que Deus quer que façam, porque sempre coincide com seus próprios desejos”[2], estou convencido que qualquer cristão virtuoso e comprometido com a causa deveria reflexionar sobre essas questões com enorme e contundente distância crítica, ser mais humilde com e não fiar-se demasiado de suas próprias crenças[3], buscar o conhecimento antes que a superstição ou a ignorância deliberada, evitar o autoengano e as associações espúrias que difulminam a linha entre realidade e imaginação, entregar-se às evidências, intentar perceber que existe uma realidade alternativa, uma possibilidade de que esteja (radicalmente) equivocado, e rechaçar doutrinas, dogmas ou valores morais que só contam com um respaldo empírico direto anedótico.
Por um lado, porque não resulta nada claro o prazer, a satisfação e/ou o benefício que os devotos cristãos podem obter ao ver os sítios públicos e comuns presididos pelo crucifixo que simboliza e dá sentido a sua fé (que com orgulho Paulo considerava «loucura» e os cristãos dos primeiros séculos proclamavam também com orgulho no «credo quia absurdum»). Pensam acaso que alguém vai seguir ou voltar ao redil religioso por mirar constantemente a representação da crucificação? Não se dão conta de que em tempos de exibicionismo obsessivo de crenças religiosas, todas sobre a mesma base de reafirmar-se em ser mais autênticas que as demais, a exageração do simbolismo com uma força inusitada, digna de outros séculos, prediz que a gente está insegura, que se queixa não somente do que perdeu (que estaria em seu direito) senão também do que lhe ameaça (quando a gente tem medo, dispara)? Não sabem que suas crenças, por definição, não são e nem podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da existência objetiva do afirmado? Não lhes preocupa sequer o fato de que a religião consiste na lucrativa atividade de ensinar às pessoas a estar satisfeitas com «não entender» (R. Dawkins)[4] e que a tendência cada vez maior a etiquetar-se e mostrar de forma ostentosa e chamativa determinado símbolo religioso frustra a possibilidade de que os indivíduos, enquanto indivíduos cidadãos, se reconheçam entre si como iguais? E já que estamos: Por que existe um exército de masoquistas que adotam de forma definitiva e incondicional as doutrinas, categorias e dogmas católicos e pastam nos prados que propõe a Igreja Católica como obedientes ovelhas do Senhor? Por acaso são doutrinas, categorias e postulados da «única», «verdadeira» e «legítima» religião?
Não sou religioso e não pratico nenhuma crença teísta, deísta ou animista sustentada por pensamientos mágicos acerca de um deus (deuses) ou sobre a mesma existência mística do ser humano[5]. Acredito na «criatura»[6] («desenhada»[7] por mecanismos evolutivos) e em minhas interações com pessoas religiosas e não religiosas por igual, traço uma linha divisória e restritiva, baseada não em suas crenças concretas, senão em seu grau de dogmatismo. Respeito a fé dos demais, e com mais motivo se a vivem e experimentam com certa congruência, cordura e sentatez (dos que sabem distinguir a falsa piedade da genuína religiosidade ou espiritualidade).
No entanto, considerando que a curiosidade é livre, o respeito pelas crenças alheias tem um limite e a reflexão sobre a religião uma atividade muito conveniente para qualquer que tenha uma mínima inquietude sobre os fenômenos que movem o mundo, admito que em temas como este me resulta francamente difícil entender aos que exigem que os símbolos religiosos se imponham contra vento e maré aos que não os queiram e aos indiferentes: é como crer que movendo o rabo de um cachorro vamos conseguir que seja feliz (J. Haidt). Em termos de apostolado me parece hipocrisia, misticismo e soberbia semelhante estratégia. Meter-se com os demais para defender as representações mundanas de Deus é como declarar o amor a marteladas, coisa de estúpidos, fanáticos e autoritários sem remissão.
Ao fim e ao cabo, sem o mágico encanto da «loucura» da fé (cuja virtude é precisamente sua irracionalidade, como dizia S. Kierkegaard), a cruz, como objeto de tortura especialmente doloroso e cruel, é um evangelho de desesperação; quero dizer, a crucificação é o que é (e a verdade, por brutal, incômoda e antipática que pareça, não deixa de ser verdade[8]): para o crente símbolo supremo de sua religião, para o que não crê ou não sabe do assunto, uma cena de extrema, despiedada e descomunal violência... um ébrio culto à morte.
Por certo que representa a inevitável algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo e católico: que o emblema de uma religião seja um crucificado em sua cruz significa que aquela inscreveu a morte de Deus no coração de seu ritual. Ao agonizar, Jesus se converte em “proprietário do sofrimento e da morte” (P. Valéry) e transmuta estes em alegria: dor e ressurreição[9]. O filho de Deus na cruz afirma o trágico da condição humana e a supera para acercar-se à ordem sobrehumana da esperança e do amor: cada desgraçado tem que carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus Cristo um guia e um amigo que lhe ajude[10]; e com esta condição, seu sofrimento deixará de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado com um grande poder de purificação, de “renovação da energia espiritual” (João Paulo II).
Um modo de pensar e sentir em que não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo para salvar a existência, convertê-lo em incentivo para uma verdadeira transformação. É o fracasso que leva à vitória e, como dizia Lutero, ao condenar ao pecador Deus assegura sua salvação: “Todo hombre se convierte en camino de la Iglesia, especialmente cuando aparece el sufrimiento en su vida” (João Paulo II). É a a desdita cingida com o véu da «eloquência da cruz» que promete a ressurreição para apartar aos piedosos do dever de melhorar a condiçao terrenal. “Nunca es lo bastante fuerte, lo bastante grande”; e posto que abre as portas do conhecimento e da sabedoria, “es mejor cuanto más injusto”, dizia Simone Weil[11].
“Un cristiano es un hombre del otro mundo”. (Bossuet)
«Cérebro espiritual» e laicidade
Mas não é ouro tudo o que brilha e nem estão perdidos todos os que vagam pelo mundo. A percepção da cruz como uma espécie de mensagem, mistério[12] ou ícone divino por essas almas que sofrem, perfeita para a narrativa e a fábula pela emotividade e poder de sensibilização que tem, é algo a todas luzes orgânico: uma função do cérebro, uma ideia construída pela atividade fisiológica dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, “sin ninguna connotación especial más allá de cómo lo hace con otras ideas, como la belleza o la moral” (F. Mora).
Tomando sem ônus as palavras de J. Bering, “un estado mental, una ilusión psicológica, una especie de evolucionada imperfección grabada en el sustrato cognitivo esencial del cerebro” que, de vez em quando, comete erros e nos engana. Algo parecido ao que sucede com as ilusões ópticas (ou «erros do cérebro», como chama N. D. Tyson): ainda que entendamos que nos “impide tener momentos sostenidos de claridad”, não desaparecem. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para interpretarmos nossa própria realidade e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que nos inventamos. Somos o que somos, somos nosso cérebro.
Por outro lado, no curso do tempo, o direito à liberdade de consciência[13] se constituiu em peça central das sociedades modernas, inscrito em quase todas as constituições do mundo. Também se converteu no flagelo à alienação religiosa, à superioridade espiritual ou moral dos que abraçam o cristianismo[14] e a comumente intolerante e paranóica reação dos cruzados da fé. Com efeito, sobra dizer que as constituições atuais, de uma maneira geral, determinam que nenhuma confissão religiosa terá caráter estatal, que os Estados são laicos e que permanecem à margem dos credos, considerados todos esses por iguais aos efeitos do trato que hão de receber.
Não há um documento semelhante à «lei das leis» no que se refere às religiões, mas, ao menos as chamadas «do livro», dispõem de uns textos sagrados aos que seus respectivos devotos atribuem uma autoria divina. A igreja católica, por exemplo, dispõe da Bíblia e, formando parte dela, de um Novo Testamento no qual figura, se não recordo mal, a metafórica recomendação feita por Jesus de “dar a César o que é de César e a Deus o que pertence a Deus”. Esta separação entre o mundo laico e o religioso foi um dos fundamentos da aparição dos Estados modernos, porquanto o poder religioso – nomeadamente depois da reforma protestante – “deixou” de atender aos assuntos políticos e de usurpar os poderes legítimos das autoridades civis, centrando-se no que forma parte da mensagem bíblica e dos importantíssimos, complexos e insondáveis assuntos próprios dos sacros dogmas (ainda quando, há que reconhecer, a maioria dos vicários do Senhor continuem a incorrer na denominada contradição «performativa»: “chove, mas não creio que chova“; “meu Reino não é deste mundo, mas atuo tal como se fosse”).
Como a gente culta compreende - e deixando de lado qualquer reflexão que possa ver-se obscurecida por uma complexidade filosófica desnecessária-, as religiões pertencem ao âmbito privado (e a estas alturas já deveria estar claro o motivo), são válidas para quem queira crer em seus tautológicos postulados, mas não são válidas para qualquer sujeito. Isso implica que não deve haver qualquer tipo de interferência do (ou desde o) privado sobre o público. O âmbito público deve estar protegido do privado: no âmbito público não valem as «razões» privadas, precisamente porque no âmbito público se busca o que é suscetível de universalidade e aceitação por qualquer sujeito, comum a todas as pessoas e válido para todos, enquanto que o privado, por definição, é o que vale para uns, mas não para todos.
Em um Estado laico, todos cidadãos e instituições são laicos no âmbito público, quer dizer, quando se trata do que a todos concerne, e logo cada cidadão tem suas próprias crenças e preferências em seu âmbito privado. O laicismo é precisamente a ordem político-jurídica que garante o anterior; e ao que se opõe é justamente a essa identificação do público com uma opção religiosa, protege a liberdade de pensamento no âmbito privado donde é inviolável, assim como sua livre expressão sem mais limite que a ordem pública: a liberdade dos demais. (A. Carmona) E mais: em um Estado moderno, a decisão sobre o bem ou o mal e outras questões morais estão restritas, protegidas e garantidas, ao espaço privado da consciência individual. Desta forma se assegura a liberdade individual para pensar e viver de acordo à própria ética e se proíbe que o poder público possa impor uma religião ou moral particular ao conjunto da sociedade, respeitando assim a liberdade de pensamento, eleição, decisão, ação e crença de cada cidadão.
Por isso se estabelece um «muro de separação» entre os dois âmbitos: o privado e o público. Ninguém pode vulnerar a liberdade de consciência nem de expressão[15], nem um particular, nem a maioria, nem o Estado com suas leis. Nenhum particular, grupo fático ou religioso pode impor suas próprias convicções, doutrinas, ritos e/ou símbolos aos demais. Não por outra razão é que o limite de nossa liberdade é a liberdade dos outros, não suas crenças. A liberdade religiosa[16] não há de significar dar validez ao fato religioso, nem tão pouco implica ou ordena fazer o terceiro dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola, aquele que mais regozija a Deus: o sacrifício do intelecto.[17]
«Sociedade decente», catolicismo e a cruz
O grande aporte de uma «sociedade decente» (aquela que, segundo A. Margalit, as instituições não devem humilhar às pessoas e cujos cidadãos não se humilham uns aos outros, uma sociedade que permite viver juntos sem humilhações, discriminações e com liberdade) é o laicismo fundamentado na liberdade de consciência (de expressão e de ação), na igualdade e na administração da justiça sem ter em conta as posturas de indivíduos cujo sistema de crenças é o único que se interpõe entre eles e um comportamento repulsivo. Um modelo de sociedade, um modo de vida, que não debilita “al mundo, convirtiéndolo en presa de los hombres malvados, los cuales lo pueden manejar con plena seguridad, viendo que la totalidad de los hombres, con tal de ir al paraíso, prefiere soportar sus opresiones que vengarse de ellas.”(Maquiavelo)
Desnecessário recordar que uma postura como esta fomenta - como não poderia deixar de ser - uma profunda indignação entre os iracundos membros da comunidade formada principalmente por católicos apostólicos romanos que ainda vivem ideológica, servil e acriticamente à sombra do poder e influência da Santa Igreja católica[18] (não aos cristãos em sua totalidade, porque igualmente há cristãos que não são apostólicos romanos e não consideram que o símbolo da cruz seja seu valor essencial). Também resulta quase inútil rememorar que este tipo de argumento dista muito de ser ofensivo para aqueles que são ateus ou não tem religião, como tão pouco parece ultrajante para os que professam outros credos religiosos ou desfrutam de outras formas de mover-se pelo mundo. Aliás, o mais perigoso do laicismo para um fanático é que não tenha religião “fuera del ámbito de su intimidad, o ni siquiera”. (G. Morán)
O fato é que, visto assim, a laicidade, como nêmesis pública da tirania religiosa, constitui um bárbaro atentado e/ou uma abominável heresia ao símbolo da cruz. Uma simbologia extemporânea estabelecida como identidade e característica de um conjunto de crenças, ideias, valores, práticas, instituições, artefatos, costumes e mitos construídos pela imaginação de um determinado grupo humano, e que são passados de uma geração à seguinte (R. F. Baumeister). Uma carga cultural retrógrada, um mundo compartido de sentidos ou significados relacionados com o poder, a dominação e a submissão, em que os católicos, empacados em tempos pré-modernos de uma ordem teocrática medieval, parecem não estar dispostos a renunciar facilmente à ideia de que «devem ser» (ou «são») os gestores exclusivos da religião do Estado e de que a fé «deve ser» (ou «é») assunto público.
Claro que a estupidez, como uma variante da barbárie e filha da ignorância, existiu sempre e que os estúpidos, independentemente de qualquer outra característica, são perigosos e influem sobre outras pessoas com intensidade muito diferente (C. M. Cipolla); o insólito é que, apesar do difícil que resulta imaginar e entender o poder devastador e destrutor da estupidez, esta nunca havia tido tanta transcendência. O que redunda ainda mais espetacular e chocante, em grado sumo, a supina insipiência teológica da maior parte dos que se dizem católicos, consagrados a fazer todo tipo de ginástica mental para vindicar a relevância e a glória do ritualismo, da renúncia da própria autonomia, do obscurantismo, do mais obtuso sentido alegórico da fé, da propagação da «verdadeira» religião e do temor de Deus. Afinal, quantos católicos leem alguma vez (com atenção e sobretudo por inteiro) a Bíblia[19]? Quantos fiéis só conhecem o Novo Testamento através dos fragmentos lidos durante a missa? Quantos já miraram alguma vez, simplesmente por curiosidade, alguma encíclica? Quantos têm uma mínima noção da história da Igreja?
Pois bem, ao abrir o livro negro dessa tradição nos damos conta de que o catolicismo da Igreja romana esconde, detrás de um crucifixo interpretado como redenção, uma cultura e uma história de violências, intolerâncias, atrocidades e conflitos. Em nome da cruz a religião católica fomentou ativamente o assassinato, a aniquilação e a guerra contra as pessoas que professavam outra religião. No passado, e ainda na atualidade (já não mais de forma sutil e a despeito da doutrina da «revelação progressiva»[20]), fanáticos e fundamentalistas católicos seguem pregando a discriminação de comunidades inteiras, ensinando que Deus quer que disseminem sua sagrada palavra pelo mundo e que, portanto, para a efetiva consecução da «justiça divina», é «bom» excluir, eliminar, destruir, suprimir, discriminar, restringir a liberdade de expressão e «dar socos como resposta» aos inimigos da fé (Papa Francisco).
Essa é a verdadeira mensagem que, em sua essência, transmite hoje a Igreja de Roma, comodamente instalada na avidez da riqueza e na imunidade fiscal, na usurpação espiritual e no sistemático abuso sexual de menores, na intolerância e na marginalização, na exclusão sexual[21] e na pedofilia, no palavreado místico e na dessorada «retórica da atração», na ameaça com o fogo infernal[22] e em mistérios radicalmente inacessíveis ao entendimento humana - e cuja validez, há que dizer, depende exclusivamente do que dizem as Sagradas Escrituras. Uma multinacional dedicada a explorar a corrosiva gangrena da ignorância alheia e das fraquezas do intelecto humano, obcecada com manter a raça humana em um estado constante de miséria e sofrimento, inclusive se para isso necessita recomendar que os pais golpeiem e castiguem a seus filhos (Papa Francisco); um sistema de pensamento ou fenômeno institucional que “ha hecho y sigue haciendo mucho daño al mundo, por más que reivindique que la bondad es su patrimonio” (A. C. Grayling).
Que os fiéis cristãos e os sacerdotes busquem em nome da cruz, e no reino de Deus, impor mediante impacientes impulsos sádicos essa forma de ideologia dominante, discriminatória e excludente é algo que entra em suas prerrogativas inalienáveis. Mas, em uma dimensão mais terrenal e constitucionalmente laica, essa prerrogativa tem um limite muito claro: os direitos próprios dos demais, dos indiferentes e dos avessos ao despotismo religioso e/ou à superioridade moral em nome de um deus qualquer. Daí que a presença de crucifixos no âmbito público pode representar um desconforto e um transtorno para os de indivíduos que professam outras religiões e para os ateus, uma forma de «silenciosa» domesticação ou perigoso condicionamento de que se serve a religião católica para aumentar sua autoridade, supremacia e influência, minando a liberdade de pensamento com determinadas doutrinas (e símbolos) como se fossem verdadeiras e com a intenção de que todos as aceitem independentemente das razões que possam existir a favor ou em contra destas e de outros credos e/ou teorias em disputas.
Um indivíduo pode crer em Deus; outro pode sofrer ao pensar na enorme quantidade de crianças que ainda vivem em situação de extrema pobreza ou denunciar o fato de que inculcar “a los niños las diversas falsedades de las distintas fes que compiten (que compiten, sí) es una forma de abuso infantil y un escándalo” (A. C. Grayling)[23]. Um indivíduo pode aceitar os ditados da Igreja, tolerar os abusos e a pedofilia dos sacerdotes, e condenar «à tort et à travers» aqueles que exercem o legítimo direito de crer que “a palavra Deus não é nada mais que a expressão e produto da debilidade humana, a Bíblia uma coleção de lendas honoráveis mas ainda assim primitivas lendas e a religião uma encarnação das superstições mais infantis” (A. Einstein). Outro pode comungar e/ou ocultar uma espécie de desprezo disfarçado às demais religiões, uma maneira de não considerar os não católicos nunca como iguais ou, baixo a máscara da caridade[24], patrocinar (ativa ou passivamente) o triunfo do preconceito, o amor pela discriminação e o ódio pelo ser humano.
Mas, independentemente de nossas posições pessoais, seja de acordo com uma ideologia progressista ou conservadora, em termos confessionais ou laicos, é absolutamente necessário e indispensável reconhecer que em nome dessa religião e desse «símbolo» já se cometeram os crimes mais inumanos e bestiais de que a história nos mostra todo um catálogo de monstruosos exemplos. E se seguem cometendo com as proibições contra o inalienável direito dos seres humanos de administrar a autonomia do conhecimento e a liberdade individual e sexual. Se é essa nossa «herança cultural» segundo declaram os que qualificam de «aberrantes» o laicismo e a liberdade, por que não falamos do lado escuro e turvo da cruz como simbologia de poder, dominação e intolerância fanáticas?
Afirmar que o crucifixo tem “uma função simbólica altamente educativa e que sempre foi um sinal de oferta do amor de Deus e de união e acolhida para toda a humanidade", que a religião constitui um “mecanismo eficaz de inibição da violência, da correção de rumos e da solução de desentendimentos”, que “tantos ensinamentos filosóficos que constam das escrituras sagradas (...) poderiam ter levado à solução pacífica dos conflitos e guerras que assolaram a humanidade” ou que “a justiça humana será tanto menos falha quanto mais se inspirar nos valores cristãos e na justiça divina, uma vez que 'fazer justiça' é, de certo modo, exercer um atributo divino”, é fácil, rápido e barato. Uma amostra da intencionada e arbitrária dificuldade na experiência de dar-se conta de que a realidade, para o bem ou para o mal, resiste à distorção mental fácil e, o que é ainda mais grave, de um cinismo atroz e sádico e/ou de uma ignorância imperdoável e irredimível. É «vender» sem remordimentos o que em certa ocasião disse Leibniz sobre a conveniência de negar a evidência: “Es necesario hacer caer al mundo en la trampa, aprovecharse de su debilidad, y engañarlo para curarlo”.
Também não faltam os fiéis de plantão e os habituais peritos em legitimação, esses mestres das contorções atrelados ao insaciável desejo de mandar e a inexorabilidade de ser mandado[25], para afiançar, justificar e propagar, com airado júbilo, que a retirada do crucifixo dos espaços públicos é «ideológica». Que nos falem então da violência na cultura histórica da Igreja romana apostólica, das fogueiras contra a razão herética que por si só fez avançar a humanidade. Se o que se pretende defender é sua origem salvadora para todos, então há que aceitá-lo e adaptá-lo ao presente, porque ao princípio não era mais que um signo para identificar os lugares clandestinos de oração e culto; um símbolo tardiamente imposto, que vale por um ritual de morte, hostil aos demais, às outras culturas, histórias e religiões. Com efeito, a qualquer pessoa dos tempos de Jesus[26] lhe haveria resultado igual de ridículo, patético e chocante ver a um cristão com uma cruz ao pescoço ou ajoelhado ante a imagem de um crucificado.
A postura de restringir este símbolo cristão ao âmbito privado não somente plasma toda uma «declaração de princípios», senão que também (i) afirma a máxima segundo a qual em uma sociedade decente, livre e aberta, as crenças fundamentais relativas a compromissos religiosos e axiológicos devem adotar-se de maneira autônoma e voluntária; (ii) recorda que as normas da moral a que chamamos civilizada proíbem privilegiar uma crença religiosa em detrimento de outras; (iii) assegura o imperativo segundo o qual ninguém, nem as comunidades religiosas, tem direito a solicitar o auxílio do Estado para que os ajude a inculcar seus credos e doutrinas particulares, nem tão pouco para que seus dogmas, símbolos, costumes, normas ou mitos fundacionais se perpetuem através de seus (e de outros) descendentes[27]; e (iv) garante a premissa segundo a qual em uma sociedade liberal, pluralista e multicultural o Estado tem a obrigação e a responsabilidade ético-jurídica de promover, em condições de igualdade, a tolerância e o reconhecimento de valores diferentes, religiosos e não religiosos.
Mantendo-se tudo igual, a liberdade é sempre melhor. Não existe nenhum argumento moral sólido em sentido contrário, tenhamos em conta ou não todas as crenças religiosas que nos ensinam a amar a opressão, a adorar todos os meios que nos reduzem à passividade e à inércia, a admirar aqueles que anulam nossa capacidade para pensar com autonomia e sensatez (“a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais”, para dizer com Adam Smith).