RESUMO:Analisa a constitucionalidade do Regulamento Disciplinar dos Militares do Espírito Santo. A Constituição Federal estabelece o princípio da legalidade como uma garantia constitucional e como um dos fundamentos da Administração Pública. Assim, somente a lei formal em sentido estrito pode criar direitos, deveres e impor obrigações. Sucede que o Regulamento foi instituído por um decreto, o que o torna inconstitucional.
Palavras-chave: Regulamento. Disciplinar. Autônomo. Constitucionalidade. Legalidade.
1 INTRODUÇÃO
Além do Código Penal Militar (CPM) e do Código de Processo Penal Militar (CPPM), é frequente a utilização do Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo (RDME), instituído pelo Decreto nº 254-R, de 11 de agosto de 2000.
Muitos policiais militares e advogados questionam a constitucionalidade do RDME, em decorrência de ter sido instituído por meio de um decreto do Governador do Estado. Tal controvérsia foi determinante na escolha do tema do presente artigo científico.
É cediço que ordenamento jurídico brasileiro está lastreado no princípio da legalidade. O art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) estabelece que não é possível a imposição de obrigação de fazer ou não fazer por intermédio de outro instrumento que não a lei.
Assim, não poderia um decreto expedido pelo chefe do Poder Executivo, no caso o Governador do Estado, criar deveres, obrigações e impor sanções.
Ressalta-se que no âmbito militar as infrações disciplinares possuem sanções administrativas que restringem o direito de liberdade, como a penalidade de detenção, prevista no art. 15, inciso III, e art. 18 do RDME, o que torna ainda mais grave a circunstância de serem instituídas por um decreto do Poder Executivo.
Desse modo, o objetivo precípuo do presente trabalho consiste na análise da constitucionalidade do Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo (RDME).
2 O MILITAR
Ab initio é necessário a definição do significado do termo militar.
Assim, uma boa definição é o conceito legal, uma vez que o art. 22 do Código Penal Militar estabelece que o vocábulo “militar” se refere a pessoa que seja incorporada às Forças Armadas, em tempo de paz ou de guerra, passando a ser sujeito à disciplina militar. In verbis:
Art. 22. É considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar.
Por sua vez, os policiais militares são considerados como militares estaduais, juntamente com os bombeiros militares, conforme determina o art. 42, caput, da Carta Magna.
Outrossim, o art. 125, § 4º, e o art. 42, § 1º, da Constituição Cidadã estenderam a aplicação do Código Penal Militar e do Código de Processo Penal Militar aos integrantes das Corporações militares estaduais.
Igualmente, o art. 5º, § 2º, do RDME define “militar estadual” como sendo o policial militar e o bombeiro militar.
3 O RDME
O Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo (RDME) foi instituído pelo Decreto nº 254-R, de 11 de agosto de 2000, expedido pelo Governador do Estado do Espírito Santo, e tem por finalidade a implantação do regime disciplinar, a tipificação de transgressões e de sanções disciplinares, bem como os respectivos recursos. In verbis:
Art. 2º - O Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo (RDME) tem por finalidade instituir o regime disciplinar, tipificar, classificar e mensurar as transgressões disciplinares, estabelecer normas relativas à amplitude e à aplicação das sanções disciplinares, à classificação do comportamento do militar estadual, à interposição de recursos contra a aplicação das sanções e à concessão de recompensas. (grifo nosso)
Aplica-se a todos os militares estaduais, ou seja, integrantes da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, conforme se depreende do seu art. 5º:
Art. 5º – Para efeito deste Regulamento, “Organização Militar Estadual” (OME) é a denominação genérica dada a corpo de tropa, repartição, estabelecimento ou a qualquer outra unidade administrativa ou operacional da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES) e do Corpo de Bombeiros Militar do Espírito Santo (CBMES).
[...]
2º – Para efeito deste Regulamento, a denominação “militar estadual” é equiparada a policial militar e a bombeiro militar.
Além de prever direitos e estatuir deveres, o RDME é uma espécie de “código de conduta” dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo, tipificando infrações disciplinares e as respectivas sanções.
Outrossim, o RDME é também utilizado para disciplinar o Processo Administrativo Disciplinar de Rito Ordinário (PAD-RO), procedimento que pode levar ao licenciamento a bem da disciplina, nomenclatura utilizada para a demissão do militar estadual que não possua estabilidade assegurada, isto é, que tenha menos de 10 anos de serviço, com fulcro no art. 48, inciso IV, alínea “a”, da lei estadual nº 3.196/78[1], a qual instituiu o Estatuto da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo.
Caso o acusado tenha mais de 10 anos de serviço será submetido a Conselho de Disciplina (CELANTE, 2011), se Praça, ou a Conselho de Justificação, se Oficial, procedimentos regulados pelas leis estaduais nº 3.206/78[2] e 3.213/78[3], respectivamente.
Desta feita, nota-se um tratamento desigual, o qual fere o princípio constitucional da isonomia, posto que, de um lado, militares estaduais com menos de 10 anos de serviço são submetidos a procedimento administrativo lastreado em um regulamento instituído por decreto, e de outro, quem apresenta mais tempo de serviço possui uma maior segurança jurídica, pois o seu procedimento disciplinar é baseado em uma lei.
4 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O princípio da legalidade ou da reserva legal dispõe que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei (ALMEIDA, 2012). Assim, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite (DI PIETRO, 2011, p. 64 e 65), do contrário seus atos serão ilícitos (CARVALHO FILHO, 2009, p. 19).
Esse preceito nasceu na Europa, entre os séculos XVII e XVIII, com o surgimento do Iluminismo e das revoluções burguesas, as quais derrubaram os Estados Absolutistas e implantaram os Estados Democráticos de Direito, baseados na lei, onde todos estavam sujeitos às normas, inclusive o próprio Estado e seus governantes (DI PIETRO, 2011, p. 65).
Tal princípio está positivado no direito constitucional brasileiro no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, o qual determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Em outras palavras, prevalece para os particulares a autonomia da vontade, em que tudo é permitido, exceto aquilo que a lei proíbe (ALMEIDA, 2010, p. 55-79). Em contrapartida, para o Estado só é possível fazer aquilo que a lei autoriza.
Além do art. 5º, inciso II, o princípio da legalidade também está expressamente previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988, estabelecendo que a Administração Pública deve obedecer aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, in verbis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
[...]
Em decorrência disso, a Administração Pública não pode instituir deveres e condutas de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados e a seus servidores. Para tanto, ela dependerá de lei. Assim, para a Administração Pública não há autonomia da vontade, sendo permitido ao administrador público fazer apenas aquilo que a lei e o direito determinam ou autorizam. Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas, devidamente elaboradas, conforme as regras do processo legislativo constitucional, podem ser criadas obrigações e direitos para o indivíduo, pois são a expressão da vontade geral da sociedade (ZAGANELLI; ALMEIDA, 2011, p. 601 a 625).
Dessa forma, o princípio da legalidade caracteriza-se muito mais como uma garantia constitucional, do que como um direito individual, uma vez que assegura ao cidadão o direito de repelir qualquer obrigação imposta por outra via, que não seja a lei.
O princípio implica na subordinação completa do administrador à lei. Conforme Meirelles (2000, p. 82 e 83) “[...] enquanto os indivíduos no campo privado podem fazer tudo o que a lei não proíba, o administrador público só pode atuar onde a lei autoriza”.
Carvalho Filho (2009, p. 19) finaliza dizendo que “só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente com o disposto na lei”. Vale dizer que se a lei nada dispuser, não pode a Administração Pública agir.
Entretanto, o RDME foi instituído por meio de um decreto governamental, violando flagrantemente o princípio da legalidade, visto que cria obrigações, tipifica infrações e comina sanções disciplinares.
Insta ressaltar que o princípio da legalidade também está previsto no art. 1º do Código Penal Militar (CPM), conforme escrevem Assis (2010, p. 21 a 23) e Romeiro (1194, p. 39).
Outro aspecto a ser destacado é que no militarismo as infrações disciplinares são sancionadas por punições administrativas que limitam o direito de liberdade, como a penalidade de detenção, prevista no art. 15, inciso III, e art. 18 do RDME, na qual o servidor público militar é cerceado de sua liberdade, devendo permanecer recolhido no local que for determinado, normalmente um Quartel. In verbis:
Art. 15 – As sanções disciplinares a que estão sujeitos os militares estaduais da PMES e do CBMES, são as seguintes:
I – advertência;
II – repreensão;
III – detenção;
IV – reforma disciplinar;
V – licenciamento a bem da disciplina;
VI – exclusão a bem da disciplina;
VII – demissão.
[...]
Art. 18 – A detenção consiste no cerceamento da liberdade do transgressor, o qual deve permanecer no local que lhe for determinado, normalmente o quartel, sem que fique, no entanto, isolado e circunscrito a determinado compartimento. (grifo nosso)
Desta feita, o militar sofre restrição a um direito fundamental cujo lastro é um decreto governamental, desprovido do necessário processo legislativo que lhe dê legitimidade, o que torna ainda mais grave a violação do princípio da legalidade.
Essa situação de flagrante inconstitucionalidade precisa ser urgentemente corrigida, por meio da criação de um novo Regulamento Disciplinar, instituído por meio de uma lei em sentido estrito.
Outro importante entendimento a ser discorrido é que o doutrinador administrativista Mello (2011, p. 344 a 356) entende que o princípio da legalidade somente é excepcionado pela Constituição Federal de 1988 em 03 situações, a saber: medidas provisórias, estado de defesa e estado de sítio.
5 O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Alguns doutrinadores consideram o princípio da reserva legal como sinônimo de princípio da legalidade.
Entretanto, apesar da semelhança, são princípios diferentes, cada um com o seu âmbito de aplicação.
Assim, a doutrina defende que o princípio da reserva legal está presente quando a norma constitucional exige expressamente regulamentação por lei específica.
Por exemplo, o art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, prevê o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão. Contudo, é necessário o atendimento das exigências estabelecidas por lei específica.
Desta feita, essa exigência imposta pela Carta Magna se refere a uma lei em sentido estrito, configurando o princípio da reserva legal, ou seja, a necessidade da presença de uma lei singular.
Outro exemplo que pode ser citado é a hipótese do art. 37, inciso I, da Constituição Cidadã, no qual é previsto que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que atenderem os requisitos estabelecidos em lei.
Por sua vez, o princípio da legalidade pode ser considerado como mais amplo, abrangente, abstrato e genérico, uma vez que estabelece que direitos, deveres, obrigações e sanções somente podem criados por intermédio de lei.
6 PODER REGULAMENTAR
O art. 84, inciso IV, da Carta Magna estabelece a competência do chefe do Poder Executivo em expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis.
Contudo, no exercício dessa competência é vedado se extrapolar esse poder regulamentar, indo além da previsão legal, inovando a ordem jurídica, por meio da criação de direitos, deveres e obrigações não previstos originariamente no texto da norma legal.
Assim, é pacífico o entendimento na doutrina majoritária e na jurisprudência de que não existem no ordenamento jurídico brasileiro decretos autônomos, cujo fundamento de validade se origina diretamente na Constituição, apesar da exceção prevista no art. 84, inciso VI, da Constituição Federal.
Desta feita, o RDME claramente excede o poder regulamentar, pois foi instituído mediante um decreto, estabelecendo o regime disciplinar, a tipificação de transgressões e de sanções disciplinares, bem como os respectivos recursos, o que somente poderia ser feito por uma lei em sentido estrito.
7 ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE
É cediço que o ordenamento jurídico pátrio possui como um de seus fundamentos reitores o princípio da legalidade, de acordo com o qual ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, a não ser em virtude de lei (ALMEIDA, 2011, p. 77-100), conforme previsto no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988.
Por conseguinte, o RDME se apresenta como inconstitucional em virtude de ter sido instituído por meio de um decreto, exorbitando a capacidade de regulamentação legal do chefe do Poder Executivo estadual.
Para corroborar essa argumentação é imprescindível o exame da jurisprudência e da doutrina a respeito do tema.
7.1 JURISPRUDÊNCIA
O Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de controle de constitucionalidade difuso, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 610.218/RS, deixou de analisar o mérito do assunto, por entender que não havia Repercussão Geral. No recurso seria examinada a constitucionalidade da punição disciplinar prevista em regulamento disciplinar, instituído por decreto, no âmbito da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul. In verbis:
MILITAR. REGULAMENTO DISCIPLINAR DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. DECRETO ESTADUAL 43.245/04. PUNIÇÃO DISCIPLINAR RESTRITIVA DE LIBERDADE. APLICAÇÃO DOS EFEITOS DA AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL TENDO EM VISTA TRATAR-SE DE DIVERGÊNCIA SOLUCIONÁVEL PELA APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESTADUAL. INEXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
Decisão: O Tribunal, por maioria, recusou o recurso extraordinário ante a ausência de repercussão geral da questão, por não se tratar de matéria constitucional, vencido o Ministro Gilmar Mendes. Não se manifestaram os Ministros Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Votou de forma divergente o Ministro Marco Aurélio. Ministra ELLEN GRACIE Relatora. (grifo nosso).
Data maxima venia o Pretório Excelso se equivocou ao dizer que não há repercussão geral sobre o tema.
É cediço que o art. 102, § 3º, da Constituição Federal de 1988 prescreveu como pré-requisito para que o Recurso Extraordinário seja conhecido pelo STF a demonstração da repercussão da matéria discutida.
Por sua vez, o art. 543-A, § 1º, do Código de Processo Civil (CPC) estabelece que haverá repercussão geral quando no recurso existir questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os limites subjetivos da causa.
Ora, é patente que muitas corporações militares instituem seus regulamentos disciplinares por meio de decreto, ao invés de lei, suscitando frequentes questionamentos quanto à constitucionalidade de tais normas, demonstrando a controvérsia jurídica e que essa discussão ultrapassa os limites subjetivos de processo específico.
Assim sendo, o STF perdeu a oportunidade de enfrentar o tema e resolver definitivamente a polêmica.
Todavia, a Suprema Corte no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 600.885/RS decidiu que a definição dos requisitos para o ingresso nas Forças Armadas não pode ser estabelecida por regulamento ou decreto, mas somente por lei, conforme transcrição abaixo:
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA INGRESSO NAS FORÇAS ARMADAS: CRITÉRIO DE LIMITE DE IDADE FIXADO EM EDITAL. REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. SUBSTITUIÇÃO DE PARADIGMA. ART. 10 DA LEI N. 6.880/1980. ART. 142, § 3º, INCISO X, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DECLARAÇÃO DE NÃO-RECEPÇÃO DA NORMA COM MODULAÇÃO DE EFEITOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. Repercussão geral da matéria constitucional reconhecida no Recurso Extraordinário n. 572.499: perda de seu objeto; substituição pelo Recurso Extraordinário n. 600.885. 2. O art. 142, § 3º, inciso X, da Constituição da República, é expresso ao atribuir exclusivamente à lei a definição dos requisitos para o ingresso nas Forças Armadas. 3. A Constituição brasileira determina, expressamente, os requisitos para o ingresso nas Forças Armadas, previstos em lei: referência constitucional taxativa ao critério de idade. Descabimento de regulamentação por outra espécie normativa, ainda que por delegação legal. 4. Não foi recepcionada pela Constituição da República de 1988 a expressão “nos regulamentos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica” do art. 10 da Lei n. 6.880/1980. 5. O princípio da segurança jurídica impõe que, mais de vinte e dois anos de vigência da Constituição, nos quais dezenas de concursos foram realizados se observando aquela regra legal, modulem-se os efeitos da não-recepção: manutenção da validade dos limites de idade fixados em editais e regulamentos fundados no art. 10 da Lei n. 6.880/1980 até 31 de dezembro de 2011. 6. Recurso extraordinário desprovido, com modulação de seus efeitos.
Decisão: Por unanimidade, o Tribunal reconheceu a exigência constitucional de lei e que os regulamentos e editais vigorarão até 31 de dezembro do corrente ano, e negou provimento ao recurso extraordinário.
Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso.
Plenário, 09.02.2011. (grifo nosso)
Desse modo, por analogia, é totalmente plausível se concluir que não é possível a instituição por decreto de regulamentos disciplinares, os quais criem deveres e obrigações, tipifiquem infrações e cominem penalidades disciplinares, sob pena de violação ao princípio da legalidade.
Insta ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 584.798/PE não aceitou a regulamentação autônoma por decreto dos requisitos para importação de bebidas alcoólicas, quanto mais se poderia tolerar regulamentos disciplinares autônomos, haja vista as suas implicações ainda mais sérias para os servidores submetidos aos rigores do poder disciplinar. Vejamos:
ADMINISTRATIVO. IMPORTAÇÃO DE BEBIDAS ALCÓOLICAS. PORTARIA Nº 113/99, DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO. IMPOSIÇÃO DE OBRIGAÇÃO NÃO PREVISTA EM LEI. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
1. O ato administrativo, no Estado Democrático de Direito, está subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV), o que equivale assentar que a Administração só pode atuar de acordo com o que a lei determina. Desta sorte, ao expedir um ato que tem por finalidade regulamentar a lei (decreto, regulamento, instrução, portaria, etc.), não pode a Administração inovar na ordem jurídica, impondo obrigações ou limitações a direitos de terceiros.
2. Consoante a melhor doutrina, "é livre de qualquer dúvida ou entre dúvida que, entre nós, por força dos arts. 5º, II, 84, IV, e 37 da Constituição, só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer: restrição alguma se impõem à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos." (Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros Editores, 2002, págs. 306/331).
3. A Portaria nº 113/99, do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, a pretexto de regulamentar o cumprimento do disposto na Lei 8.918/94 e no Decreto nº 2.314/97, sobre os requisitos para a importação de bebidas alcóolicas, inovou na ordem jurídica, impondo obrigação não prevista em lei, in casu, a apresentação, para o desembaraço aduaneiro das mercadorias, da declaração consular da habilitação do importador pelo estabelecimento produtor, em afronta ao princípio da legalidade.
4. Deveras, a imposição de requisito para importação de bebidas alcóolicas não pode ser inaugurada por Portaria, por isso que, muito embora seja ato administrativo de caráter normativo, subordina-se ao ordenamento jurídico hierarquicamente superior, in casu, à lei e à Constituição Federal, não sendo admissível que o poder regulamentar extrapole seus limites, ensejando a edição dos chamados "regulamentos autônomos", vedados em nosso ordenamento jurídico, a não ser pela exceção do art. 84, VI, da Constituição Federal.
5. Recurso especial a que se nega provimento. (grifo nosso)
7.2 DOUTRINA
Em relação à doutrina, Da Silva (2005, p. 425 e 426) entende que não é admissível no Brasil a existência de regulamentos autônomos, ou seja, regras que se lastreiam diretamente na Constituição. A respeito do tema o constitucionalista salienta que:
Não se põe, portanto, em dúvida que o poder regulamentar é faculdade constitucionalmente outorgada aos Chefes do Poder Executivo nas três esferas governamentais que convivem no sistema brasileiro de autonomias, para a fiel execução das leis e para dispor sobre a organização e o funcionamento da administração. [...]. O sistema constitucional brasileiro não admite o chamado regulamento independente ou autônomo. [...]. O princípio é o de que o poder regulamentar consiste num poder administrativo no exercício de função normativa subordinada, qualquer que seja seu objeto. Significa dizer que se trata de poder limitado. Não é poder legislativo; não pode, pois criar normatividade, que inove a ordem jurídica. Seus limites naturais situam-se no âmbito da competência executiva e administrativa, onde se insere. Ultrapassar esses limites importa em abuso de poder, usurpação de competência, tornando-se írrito o regulamento dele proveniente. [...] (grifo nosso)
O saudoso Miranda (1970, p. 316 e 317) ensinava que os regulamentos não poderiam limitar direitos ou ampliar deveres e obrigações, sob pena de serem inconstitucionais. Vejamos o que escreve o mestre:
Se o regulamento cria direitos ou obrigações, cria obrigações novas, estranhos à lei, ou faz reviver direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações ou exceções, que a lei apagou, é inconstitucional. [...]. Tampouco pode limitar, ou ampliar direitos, deveres, pretensões, obrigações ou exceções à proibição [...]. Nem ordenar o que a lei não ordena [...] (grifo nosso)
Nesse mesmo sentido Carvalho Filho (2009, p. 59 e 60) leciona que não se admite os regulamentos autônomos no Brasil, pois que somente a lei pode criar primariamente direitos e obrigações, consoante o disposto no art. 5º, inciso II, da Carta Magna, que institui o princípio da reserva legal como basilar de todo o sistema. Vejamos o escreve o consagrador doutrinador administrativista:
Os regulamentos autônomos não são admitidos no ordenamento jurídico pátrio [...] não conseguimos no vigente quadro constitucional respaldo para admitir-se a edição de regulamentos autônomos [...] aliás, a questão dos decretos regulamentos autônomos deve ser colocada em termos mais precisos. Para que sejam caracterizados como tais, é necessário que os atos possam criar e extinguir primariamente direitos e obrigações [...]. Atos dessa natureza não podem existir em nosso ordenamento porque a tanto se opõe o art. 5º, II, da CF, que fixa o postulado da reserva legal para a exigibilidade de obrigações. [...] (grifo nosso)
Da mesma forma, Mello (2011, p. 344 a 356) defende que regulamentos não podem criar regras, deveres ou obrigações novos, não previstos previamente em lei. In verbis:
6. O Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui: ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’.
Note-se que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige-se lei para o Poder Público possam impor obrigações [...].
26. [...] ao regulamento desassiste incluir no sistema positivo qualquer regra geradora de direito ou obrigação novos. Nem favor nem restrição que já não se contenham previamente na lei regulamentada podem ser agregados pelo regulamento.
27. Por isto, a Lei que limitar-se a (pretender) transferir ao Executivo o poder de ditar, por si, as condições ou meios que permitem restringir um direito configura delegação disfarçada, inconstitucional. (grifo nosso)
Outrossim, para se evitar a prolixidade, da mesma forma entendem consagrados doutrinadores administrativistas como Cretella Junior (1986, p. 270), Gasparini (1992, p. 113), Di Pietro (2011, p. 91), Bastos (1996, p. 336), Lazarini (1996, p.414) e Marinela (2012, p. 213 a 216).
Somam-se a tais doutrinadores do Direito Administrativo, alguns constitucionalistas como Barroso (2011, p. 79), Silva Neto (2009, p. 647), Moraes (2006, p. 437), Bonavides (2005, p. 554), Novelino (2012, p. 552) e Cunha Junior (2008, p. 235).
Para corroborar ainda mais com esse entendimento, faz-se necessária a análise do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual dispõe que após o prazo de 180 dias depois da promulgação da Constituição Federal de 1988 estariam automaticamente revogados todos os dispositivos legais que atribuíssem ou delegassem ao Poder Executivo competência do Poder Legislativo.
Da mesma forma, o art. 20 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição do Estado do Espírito Santo também prevê que restaram automaticamente revogados após 60 dias todas as normas legais que atribuíssem ou delegassem o poder legiferante do Legislativo ao Poder Executivo. In verbis:
Art. 20. Ficam revogados, a partir de sessenta dias, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgãos do Poder Executivo a competência assinalada pela Constituição à Assembleia Legislativa.
Assim, não é aceitável se invocar a possibilidade de lastrear o RDME nos artigos 40 e 45 da lei estadual nº 3.196/78[4], a qual instituiu o Estatuto da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo, uma vez que as Constituições Federal e Estadual aboliram qualquer dispositivo pré-constitucional que autorizasse o Poder Executivo a criar direitos e obrigações por regulamento ou decreto autônomo.