Resumo: O presente artigo propõe um estudo sobre a teoria pura do direito formulada por Hans Kelsen e sua importância no rompimento com os paradigmas até então adotados no período pelo jusnaturalismo, ao estabelecer uma ciência jurídica autônoma e neutra de quaisquer influências políticas, morais, sociais e de outras ciências. Descreve a relação escalonada piramidal, entre norma superior e inferior, e ressalta a zona de indeterminação intencional ou não que deve ser preenchida pelo intérprete. Analisa, por fim, a existência de dois tipos de interpretação: interpretação autêntica e interpretação não autêntica, bem como as considerações sobre a diferenciação dos sujeitos aplicadores do Direito.
Palavras-chave:Hans Kelsen; Teoria Pura do Direito; Ciência Jurídica;Indeterminação; Interpretação.
Abstract: The present article proposes a study on a Law Pure Theory formulated by Hans Kelsen and its importance for the breaking of paradigms which have been adopted since the Natural Law Theory period when establishing an autonomous law science and apart from whichever political, moral, social or other experiences. This work describes the step pyramid relationship, between superior and inferior standard, and highlights the intentional or unintentional indeterminatezone which might be fulfilled by the interpreter. This work also analyses, thus, the existence of two types of interpretation which are: authentic and non-authentic one, as well as the consideration towards distinction among the Law applying subjects.
Keywords: Hans Kelsen; Law Pure Theory-Natural; Law Theory; Indetermination; Interpretation
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo analisará a teoria da interpretação jurídica constante na obra Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, nascido em 1881 em Praga (Império austro-húngaro) e graduou-se na Faculdade de Direito de Viena. Perseguido pelo nazismo alemão, expatriado para os Estados Unidos da América, onde falecera em 1973, em Berkeley, foi um jurista de valor extraordinário, possuindo um considerável número de trabalhos que — se inclusas traduções e reimpressões — ultrapassa mais de seiscentos títulos.
O mestre de Viena, como ficou conhecido, é detentor de uma carreira jurídica notável, considerado um dos mais importantes juristas e pensadores do século XX,e merece destaque a sua atuação como principal idealizador da Constituição da Áustria de 1919, além de um grande defensor do controle concentrado de constitucionalidade, que atualmente é aplicado em vários ordenamentos jurídicos, inclusive no Brasil.
Dentre o vasto legado teórico-literário produzido, destaca-se, indubitavelmente, a sua já mencionada obra Teoria Pura do Direito, publicada em 1934, cuja importância e relevância devem-se à proposta de estudo do direito de maneira “pura” ou “científica”, ou seja, para o alcance da pureza metodológica, Kelsen defendia a ausência de juízos de valor.
A referida obra, ao buscar um estudo do Direito desprovido de qualquer influência externa, mesmo aquelas que se mostram essenciais no processo da formação e elaboração das normas jurídicas, pretendeu conferir autonomia à Ciência Jurídica, o que já havia ocorrido com as demais disciplinas científicas, como Metafísica, Sociológica, Histórica, Antropológica e outras. Tal busca pela cientificidade encontra-se visivelmente demonstrada por Max Weber (1864-1920), em sua obra intitulada Ciência e Política – Duas Vocações, de onde se extrai a conclusão de que a análise de um tema pode ocorrer de duas formas, científica ou política — a primeira seria de forma isenta de valores; já a segunda implica a influência de diversas ideologias, possivelmente há escolhas e opções ao intérprete.
Em decorrência da proposta de isolamento do método jurídico, a obra kelseniana foi considerada extremamente ousada, uma vez que pretendia dar caráter definitivo ao Monismo jurídico, desqualificando a importância do jusnaturalismo, que prevalecia na época como a teoria válida do Direito.
Durante sua produtiva vida científica Kelsen realizou algumas importantes alterações em sua Teoria Pura do Direito. Observa-se que modificou alguns dos seus posicionamentos externados na edição inaugural em 1934, o que implicou na publicação de uma nova edição em 1961, na qual se percebe um refinamento nas noções básicas de sua teoria pura, especialmente no que tange à interpretação das normas.
A obra em comento tem um significativo sucesso, traduzida em todas as línguas modernas, possui muitos adeptos e continuadores, entre esses, Ministros que compõe atualmente o Supremo Tribunal Federal Brasileiro, todavia foi objeto de muitas críticas, decorrentes do inconformismo com o alegado déficit ético do pensamento jurídico purificado do jurista austríaco.
Reconhecida a extensão e a importância da obra em apreço, o recorte temático faz com que o objetivo do presente artigo não assuma a pretensão de esgotar todos os aspectos do pensamento teórico constantes na obra de Kelsen, mas sim discutir a respeito daqueles arrolados em seu capítulo terceiro, que aborda a relação entre direito e ciência e, no capítulo oitavo, em que discorre sobre a interpretação das normas jurídicas.
2 A TEORIA PURA DO DIREITO
Ao criar a Teoria Pura do Direito, Kelsen pretendeu elaborar uma teoria do direito livre de qualquer influência que lhe fosse externa, conferindo autonomia à disciplina jurídica. O seu objetivo ao criar uma teoria jurídica pura, pautada na neutralidade científica, encontra-se, por ele exposto, no prefácio à primeira edição da referida obra (1934), quando afirma ser sua pretensão formular uma teoria pura do direito, purificada de toda ideologia política e dos elementos de ciência natural, consciente da legalidade específica do seu objeto (KELSEN, 2006, p. XI).
Em decorrência do isolamento proposto, a teoria, ora analisada, é conhecida como a mais refinada Teoria Positivista, pois defende que a Ciência do Direito tem por objeto apenas e tão-somente as normas jurídicas. Sendo assim, a teoria pura do direito é uma teoria monista, visto que reconhece apenas o direito positivo, por isso o jurista austríaco é considerado o criador e idealizador do positivismo normativista.
Sobre a pureza do Direito Positivo, Kelsen afirma, em sua obra O que é justiça? A Justiça, o direito e a política no espelho da ciência (1998, p.359):
A Jurisprudência como ciência do Direito tem normas positivas por objeto. Apenas o direito positivo pode ser objeto de uma ciência do Direito. É o princípio do positivismo jurídico, em oposição à doutrina do Direito natural, que pretende apresentar normas jurídicas não criadas por atos de seres humanos, mas deduzidas a partir da natureza.
Percebe-se que o objetivo é a construção de uma teoria geral do direito positivo e não uma teoria do direito puro. A teoria pura do direito visa o estudo da estrutura lógica e formal das categorias jurídicas a título universal, isto é, não tem como pretensão analisar o ordenamento jurídico de algum país específico.
Karl Larenz, em sua obra Metodologia da Ciência do Direito (1989, p.82), comenta sobre a referida teoria:
A sua teoria pura do direito constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência — mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações — que o nosso século veio até hoje conhecer.
Para o positivismo Kelseniano, o jurista deve limitar-se à norma jurídica estabelecida para se chegar à própria norma jurídica posta, ou seja, a norma jurídica é o princípio e o fim de todo o sistema.
O referido Autor esclarece em que consiste o método da pureza em sua obra O que é justiça? A Justiça, o direito e a política no espelho da ciência (1998, p.291):
A ‘pureza’ de uma teoria do Direito que se propõe uma análise estrutural de ordens jurídicas consiste em nada mais que eliminar de sua esfera problemas que exijam um método diferente do que é adequado ao seu problema específico. O postulado da ‘pureza’ é a exigência indispensável de evitar o sincretismo de métodos, um postulado que a jurisprudência tradicional não respeita ou não respeita suficientemente.
O mestre de Viena insiste que somente será alcançada autonomia da Ciência do Direito se houver a depuração metódica da ciência jurídica de todas as influências externas a seu objeto, porque apenas desse modo a verdadeira “pureza” será encontrada.
É necessário destacar que esse ideal de ciência pura restou bem elucidado no capítulo terceiro de Teoria Pura do Direito e traz, como uma de suas diretrizes epistemológicas fundamentais, o dualismo entre ser e dever ser, no qual os juízos de realidade e juízos de valor restam contrapostos.
2.1 O Direito e a Ciência sob a ótima do positivismo Kelseniano
Kelsen classificou a ciência jurídica como normativa e descritiva, também procurou afastá-la da influência de outras ciências e de todo e qualquer conteúdo ideológico. Insistiu que os valores e a justiça não podem ser objeto de estudo da referida ciência, uma vez que tais temáticas seriam analisadas por outras ciências, como a Sociologia e a Filosofia.
O Mestre explica (2006, p. 01):
Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.
Observa-se que a preocupação do jurista austríaco é com o método, sem qualquer interesse na investigação do direito enquanto fenômeno social, visto que o enfoque é a análise da ciência jurídica de forma puramente descritiva, embora reconheça que a finalidade esteja em solucionar conflitos sociais e regulamentar situações.
No início do terceiro capítulo da obra em comento, o Autor esclarece que o objeto da ciência jurídica é o Direito, uma vez que procura aprender o seu objeto “juridicamente”, isto é, do ponto de vista do Direito (KELSEN, 2006, p.79).
Já a respeito da conduta humana, entende que a mesma somente será objeto da ciência jurídica quando configurar o próprio conteúdo da norma jurídica, o que implicará numa interpretação normativa.
É necessário destacar que a concepção normativista e seu ideal de pureza estabelecidos na teoria Kelseniana têm como uma de suas bases a diferenciação entre lei da natureza e norma jurídica. Isso porque, no mundo do ser (Sein), na natureza, os sistemas de elementos estão interligados entre si como causa e efeito, ou seja, pelo princípio da causalidade, que prescreve que “quando é A, B também é (ou será)”. A relação entre pressuposto e consequência está expressa na lei natural, não é produzida. (KELSEN, 2006, p. 100).
Sobre esse dualismo entre o mundo do ser e do dever-ser, Kelsen esclarece (2006, p. 06):
A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dado imediato da nossa consciência. Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é — ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático — se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma — e que da circunstância de algo não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja.
Percebe-se que, para Kelsen, a norma jurídica expressa um dever-ser, pois possui uma estrutura lógica, visto que não preceitua nenhum juízo de valor, limita-se à imposição de uma sanção ou à consequência, no caso de não cumprimento daquela.
2.2 A interpretação na Teoria Pura do Direito
No universo jurídico, são fundamentais a interpretação e a hermenêutica, uma vez que as normas jurídicas são elaboradas através de uma forma abstrata e geral, já que apresentam-se como regras de conduta social, objetivando o controle da coletividade.
Nas palavras de Friede (1997, p. 118), “[...] as leis positivas, como bem sabemos, são sempre formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer, entretanto, a minúcias desnecessárias.”
Como o direito positivo é estabelecido de forma ampla, reconhece-se, para que seja apresentada uma solução juridicamente aceitável diante de um caso concreto, deverá aquele ser interpretado, pois nem sempre a conduta do indivíduo estará discriminada de forma expressa e clara dentro da norma jurídica.
A interpretação e a hermenêutica possuem uma relação estreita, com uma dependência entre si, indispensáveis à aplicação da norma jurídica na resolução dos conflitos sociais.
A palavra interpretar é derivada do latim interpretare, verbo derivado de interpres. Maximiliano, em sua obra Hermenêutica e aplicação do Direito(1996, p. 9),denota: “Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto, reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma, tudo na mesma contém.”
A hermenêutica refere-se às atividades que são provenientes da inteligência humana. O termo hermenêuticaprovém do verbo grego hermēneuein e segundo defineFriede (1997, p. 119):
A hermenêutica é, por via de consequência, um termo dinâmico, vivo e cíclico, que alimenta crescente e constantemente, os próprios métodos de interpretação, procedendo, em última instância, à sistematização dos processos aplicáveis para determinar, ao final o sentimento verdadeiro e o alcance real das expressões de direito.
Reconhece-se que,através do método da interpretação e da hermenêutica, viabiliza-se a aplicação correta da norma jurídica mediante a análise de um caso concreto, já que se possibilita extrair uma forma de aplicação adequada e ideal do direito positivo de acordo com a individualidade demanda.
Diante da grande importância do instituto da interpretação, faz-se necessário o estudo do capítulo VIII da obra Teoria Pura do Direito, presente na versão definitiva publicada na década de 1960, uma vez que, em apenas dez páginas, Hans Kelsen discorre sobre o tema com muita propriedade.
Já no início do referido capítulo, Kelsen define: “A interpretação é uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”(KELSEN, 2006, p. 387). Trata-se de uma progressão, ou seja, no momento em que se cria a norma inferior, essa se encontra limitada formal e materialmente por uma norma de grau superior.
É válido ressaltar que essa metodologia não é exclusiva do capítulo VIII da obra em comento, pois o referido Autor já discorre sobre a interpretação ao tratar da dinâmica jurídica, principalmente quando expõe sobre o respectivo fundamento de validade. Tal sistema é definido por ele como norma fundamental (KELSEN, 2006, p. 219):
O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou — o que significa o mesmo — uma regra como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.
Como se vê, o fundamento de validade de uma norma jurídica é a norma fundamental, emanada de uma autoridade com competência para editar, já que considerada “o ponto de partida para a criação do Direito positivo.” (KELSEN, 2006, p. 222).
Não há de se confundir a validade de uma norma com sua eficácia. Validade significa que a norma estatui uma conduta como devida, dever-ser, e que ela faz parte de um ordenamento jurídico positivado. Já a eficácia da norma significa que as pessoas de fato agem de acordo com o que fora estabelecido pelo Direito positivo. Entende que a validade da norma está condicionada a dois pressupostos indispensáveis: seja derivada da norma fundamental e editada por autoridade competente.
Nota-se que Kelsen é fiel e coerente com a sua doutrina de estrutura hierárquica, representada geometricamente pela figura de uma pirâmide, que rompeu com a visão monolítica do positivismo legalista do século XIX.
2.2.1 A interpretação autêntica e não autêntica
O jurista austríaco distingue a interpretação das normas jurídicas em duas espécies: autêntica, aquela é interpretada pelo órgão com competência para aplicá-la e não autêntica, interpretação realizada por pessoas estranhas ao órgão jurídico, quais sejam as pessoas em geral e a ciência jurídica.
Por um lado, o jurista aponta que a interpretação autêntica do Direito é aquela realizada pelo órgão jurídico, ou seja, pelo aplicador do ordenamento jurídico, destacando-se dessa forma os Tribunais, órgãos legislativos, órgãos administrativos, dentre outros. Tal interpretação se funda na relação escalonada de normas, que ocorre entre as normas inferiores e superiores, que constitui a base da fundamentação da validade do sistema de normas jurídicas. Por outro, Kelsen entende que a interpretação não autêntica é aquela realizada por um órgão não jurídico, ou seja, “por uma pessoa privada, e, especialmente, pela Ciência Jurídica” (KELSEN, 2006, p. 388).
Com efeito, compreende-se que o critério utilizado pela teoria Kelseniana para distinguir os tipos de interpretação é o dos sujeitos da atividade interpretativa, conforme seja órgão aplicador do direito, ou destinatário, ou cientista do Direito.
A diferença entre a interpretação autêntica e não autêntica refere-se à natureza do ato.A primeira é o exercício da competência jurídica, fonte formal do Direito; enquanto a segunda se realiza através de ato cognoscitivo, através do conhecimento, sem, contudo, criar uma norma jurídica, fonte material do Direito.
Para o referido autor, a interpretação autêntica é a única capaz de criar o Direito, já que proveniente de órgão jurídico competente, estabelece-se a prerrogativa de produzir tanto normas gerais quanto individuais.
Percebe-se a importância que o jurista austríaco confere à interpretação realizada pelo órgão aplicador do Direito, pois reconhece que somente esse tem a função de criar o direito, já que dotado de competência jurídica.
Sobre a relevância da interpretação realizada pelo juiz, destaca-se o entendimento de Friede (1997, p. 124):
É conveniente lembrar que, em essência, quem estuda em profundidade a doutrina jurídica não é propriamente o legislador, mas sim o jurista, que, por seu turno, conhece com a necessária profundidade, o Direito e pode, portanto, interpretar adequadamente as leis, amparado no seu conhecimento técnico-jurídico, que indiscutivelmente deve ser suficiente para resolver todas as dificuldades que se encontrem no caminho da interpretação.
Já a respeito da interpretação da Ciência Jurídica, Kelsen discorre (2006, p. 395):
A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito. O preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo e esta função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente. A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica.
Como se vê, ele entende que a interpretação realizada pela Ciência Jurídica se restringe à pura determinação do sentido da norma, é proibido estabelecer juízos de valor, inerentes aos fatores externos, e se limita, então, a extrair as possíveis significações do ordenamento jurídico positivado.
2.2.2 A determinação do conteúdo na aplicação do Direito
Kelsen entende que as normas do ordenamento jurídico positivo não possuem conteúdo autoevidente, carecendo para a sua aplicação a determinação de seu conteúdo, fato que se aplica tanto para os criadores do Direito, órgão competente, quanto aos executores, pessoa privada e ciência jurídica, podendo ocorrer indeterminação intencional ou não intencional.
Sobre a indeterminação intencional,o referido autor explica (KELSEN, 2006, p. 388-389):
Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. A indeterminação pode respeitar tanto o fato (pressuposto) condicionante como à consequência condicionada. A indeterminação pode mesmo ser intencional, quer dizer, estar na intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar.
A indeterminação intencional ocorre por uma ação volitiva do órgão jurídico, órgão que tem competência para criar a norma jurídica, estabelecendo à determinada autoridade, interprete autêntico, o poder para definir certas questões.
Já no que tange à indeterminação não intencional, o jurista austríaco elucida (KELSE, 2006, p. 388):
Simplesmente, a indeterminação do ato jurídico pode também ser a consequência não intencional da própria constituição da norma jurídica que deve ser aplicada pelo ato em questão. Aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequência de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis. A mesma situação se apresenta quando o que executa a norma crê poder presumir que entre a expressão verbal da norma e a vontade da autoridade legisladora, que se há de exprimir através daquela expressão verbal, existe uma discrepância, podendo em tal caso deixar por completo de lado a resposta à questão de saber por que modos aquela vontade pode ser determinada.
Como se vê, a indeterminação não intencional pode ocorrer quando de fato a autoridade competente se equivocar quanto às diversas significações que pode ser dada a uma palavra.
É necessário destacar que para a teoria Kelseniana, tanto na indeterminação intencional como na indeterminação não intencional, verifica-se uma determinação e vinculação entre a norma superior e a inferior — ou entre essa e a execução do direito positivo.
Com efeito, o fato da norma não ter um conteúdo imediatamente evidente implica ao órgão de escalão inferior a busca pela determinação do seu sentido, ou seja, a norma inferior constitui uma constante tentativa de determinação do ordenamento jurídico.
O mestre de Viena adverte que a busca pela “determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada”. (KELSEN, 2006, p. 388).
Cumpre destacar que, em ambos casos de indeterminação, é o interprete autêntico do Direito, através de um ato de vontade, quem escolhe qual será a melhor e a mais adequada alternativa a ser aplicada e tornar-se-à direito positivo.
2.2.3 A moldura interpretativa
Em decorrência da indeterminação do ordenamento jurídico, o intérprete da norma possui um campo de possibilidades no sentido de encontrar a alternativa mais adequada para o Direito posto.
Com efeito, o campo de trabalho do intérprete não é aberto e absolutamente livre, pois existe uma moldura que estabelece limites à interpretação. Kelsen a respeito (2006, p. 390) destaca:
Em todos estes casos de indeterminação, intencional ou não, do escalão inferior, ofecerem-se várias possibilidades à aplicação jurídica. O Direito a aplicar a forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro desde quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.
Conforme Kelsen, a norma superior forma uma moldura determinante para o campo de atuação do intérprete sobre a norma inferior, independente de se tratar do Direito geral ou individual, visto que existem várias alternativas a serem extraídas do próprio ordenamento jurídico.
A moldura em questão pode ser visualizada como uma figura geométrica representada pela pirâmide, dentro da qual caberá ao intérprete a escolha da alternativa mais adequada dentre as várias estabelecidas pela norma superior, ou seja, “existe uma margem de apreciação, que pode ser maior ou menor”. (KELSEN, 2006, p. 388)
Nesse sentido, o aplicador da norma jurídica, no processo de fixação da moldura, terá como limite o Direito Positivo, que estabelecerá uma relação hierárquica de vinculação e determinação entre a norma superior e inferior, buscando essa seu fundamento de validade naquela, que finaliza na norma fundamental.
Nas palavras de Kelsen (2006, p. 388):
[...] a norma do escalão superior regula – como já se mostrou – o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior, ou o ato de execução, quando já deste apenas se trata; ela determina não só processo em que a norma inferior ou o ato de execução são postos, mas também eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato de execução a realizar.
Para a teoria Kelseniana, após estabelecida a moldura,não existirá uma única alternativa correta, pois reconhece que a interpretação da norma jurídica pode implicar em várias soluções, cabendo ao intérprete a escolha da mais adequada, “desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica” (KELSEN, 2006, p. 391).
Nota-se que, primeiramente, o intérprete ao fixar a moldura realizará um ato objetivo, uma vez que deve se basear no texto do Direito Positivo posto, já que pretende estabelecer todas as possibilidades que a norma jurídica possui. Assim, num segundo momento, o intérprete exercerá um ato voluntário, subjetivo, ao escolher dentre as várias alternativas apresentadas pela norma superior a mais adequada para a norma inferior que venha a ser por ele criada, quando se tratar de interpretação autêntica, ou seja, aquela realizada pelo órgão jurídico competente.
Então, o intérprete autêntico ao escolher um dos possíveis significados de uma norma jurídica exerce uma função criadora do Direito, ou seja, exerce uma função de política jurídica.
No que tange às normas metajurídicas, a teoria de Kelsen (2006, p. 393-394) ilustra:
Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda [sic] é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato. Só assim não seria se o próprio Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar-se-iam em normas de Direito Positivo.
Como se observa, para o referido autor, as normas morais ou de justiça não positivadas devem ser excluídas do campo de atuação do aplicador do ordenamento jurídico, o que garante a almejada pureza do Direito, evitando, assim, que elementos estranhos possam ser objetos de interpretação.
Contudo, o problema dos limites estabelecidos pela moldura torna-se complexo quando Kelsen reconhece que, através da interpretação autêntica,“não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa”. (KELSEN, 2006, p. 394). Esse reconhecimento significa que Kelsen está ciente da possibilidade do intérprete aplicar outra atividade cognoscitiva, de conhecimentos de outras normas, como normas de justiça, de valores sociais.
Todavia, refuta tal ocorrência porque entende que a interpretação somente pode ocorrer dentro dos limites estabelecidos pelo próprio ordenamento jurídico posto, o que consolida a sua Teoria Pura do Direito.
A respeito da interpretação realizada pela ciência jurídica, denominada como interpretação não autêntica, o Autor da obra em comento chama a atenção pela necessidade da distinção com aquela realizada pelos órgãos jurídicos competentes, conforme exposto acima.
Entende que a ciência jurídica se limita a descrever o trabalho realizado pelo aplicador do Direito, não é a ela permitida qualquer análise de elementos externos que possam comprometer o processo interpretativo, uma vez que não é fonte criadora, como o intérprete autêntico. Kelsen explica (2006, p. 395):
A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência de conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito. O preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo; e esta função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente.
Percebe-se que imputa ao estudioso do Direito o dever de absoluta neutralidade, devendo a doutrina ser totalmente imparcial, limitando-se a interpretar objetivamente a norma em conformidade com o ordenamento jurídico posto pela fonte criadora, sem influência de qualquer fator externo e nem tampouco de juízos pessoais de valor.
É válido destacar que, por não ser considerada autêntica,a interpretação realizada pela ciência jurídica não gera efeito vinculante com relação ao órgão que aplica a norma jurídica, uma vez que não é reconhecida como fonte criadora do Direito, já que sua função é delimitada.
3 CONCLUSÃO
Hans Kelsen, com a criação do princípio da pureza, que reduziu o objeto jurídico ao Direito Positivo posto, estabeleceu uma concepção da ciência alheia a valores e rompeu com o legalismo radical, uma vez que reconheceu não existir apenas uma solução possível ou correta para o campo de atuação do aplicador do ordenamento jurídico.
Além dos apontamentos anteriormente descritos, denota-se que o método científico criado pelo jurista austríaco permite o controle da aplicação do Direito, que implica na imparcialidade do intérprete ao realizar a aplicação do ordenamento jurídico de forma técnica, o que combate a deturpação do sistema.
Merece destaque também a contribuição significativa da referida obra sobre o sistema escalonado de normas jurídicas, representado pela figura geográfica de uma pirâmide, que estabeleceu uma estrutura hierárquica a ser observada pelo aplicador do Direito e condicionou a validade do ordenamento jurídico à norma fundamental.
Impõe-se ainda mencionar a importância que Kelsen dispensou ao juiz, uma vez que o reconheceu como fonte criadora da norma jurídica, ao destacá-lo como intérprete autêntico do Direito Positivo na criação da norma jurídica individual.
Críticas mal elaboradas sobre o mestre de Viena são comuns no ambiente jurídico, uma vez que muitas são baseadas em uma deformada compreensão da sua teoria, já que não são realizados estudos aprofundados sobre o significado da Teoria Pura do Direito, nem tampouco do contexto histórico em que a mesma foi criada e quais os paradigmas foram com ela quebrados.
Conclui-se que a obra Teoria Pura do Direito é um “divisor de águas” no estudo da interpretação das normas jurídicas, uma vez que, a partir da teoria Kelseniana, o universo jurídico passou a ter outra dimensão da relevância do Direito Positivado e de sua interpretação para o atendimento das necessidades da coletividade na resolução dos conflitos com base em um método científicológico-formal, através da objetividade e da exatidão.
REFERÊNCIAS
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