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Divórcio liminar: reflexões

Agenda 19/05/2015 às 11:11

A tese do divórcio liminar sustenta-se na compreensão de que a Emenda Constitucional nº 66/2010 extirpou do ordenamento jurídico o debate da culpa na dissolução do casamento, estabelecendo como premissa a necessidade de realização da vida afetiva dos cônjuges.

A verdade do Direito de Família está na dignidade do homem e a dignidade do homem encontra seu espaço na Família. Na Família está a Justiça como a verdade do Ser: sua Vida (plena) e sua Liberdade (que não escraviza, que não ilude, que não engana).

Rosa Maria de Andrade Nery [1]

1. DIVÓRCIO LIMINAR

As discussões no meio acadêmico acerca do divórcio liminar começaram a partir de uma decisão singular de um magistrado baiano,[2] que decretou o divórcio de um casal liminarmente, em sede de antecipação de tutela.

A tese do divórcio liminar sustenta-se na compreensão de que a Emenda Constitucional nº 66/2010 extirpou do ordenamento jurídico o debate da culpa na dissolução do casamento, estabelecendo como premissa a necessidade de realização da vida afetiva dos cônjuges, uma vez declarada a incapacidade de reestruturação da sociedade conjugal.

Firma-se entendimento de que se manter casado é matéria apenas de direito, donde não haveria ofensa ao princípio do contraditório a antecipação da tutela initio litis, liberando desde logo as partes para realização da felicidade afetiva.

Assim, seria possível a concessão do divórcio liminar, tão somente diante do pedido de um dos cônjuges, em ação litigiosa, antes mesmo da citação da outra parte.

Hipótese, gize-se, que não se confunde com a do divórcio incidental, decretado em decisão intercorrente, proferida no curso do processo, após a citação e decurso do prazo de defesa da parte ré, o que já vem sendo admitido no meio forense sem maiores discussões.


2. Emenda Constitucional nº 66/2010

É fato que o divórcio, com a redação dada ao art. 226, § 6º, da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 66/2010, permaneceu como única solução voluntária para o fim do casamento, inclusive sem qualquer limitação temporal, resolvida, ainda, a dicotomia anteriormente existente para a dissolução do vínculo conjugal (separação judicial como procedimento prévio ao divórcio).

Porque não recepcionadas pela reforma constitucional as regras que impunham requisitos subjetivos e objetivos para a dissolução do casamento, entende-se que não mais remanesceram requisitos, prazos ou outras cautelas legais a serem observadas no âmbito do direito material para a concessão do divórcio. Pode agora ser decretado tão somente diante da manifestação de vontade dos cônjuges e independentemente do transcurso de qualquer prazo (seja de casamento, seja de separação de fato),[3] tido, por alguns, como direito potestativo dos cônjuges.[4]


3. Estado de família

Todavia, disso não se pode extrair que a manifestação de vontade de apenas um dos cônjuges, por si só, autorize liminarmente a dissolução do vínculo, com todos os efeitos que dela decorrem, sem que no mínimo referida vontade chegue até o conhecimento do outro cônjuge, de forma procedimental.

Com efeito, a ação de divórcio diz respeito ao estado das pessoas. Nela pretende-se a obtenção de um pronunciamento judicial sobre o estado de família em que estão inseridos os cônjuges.[5]

O estado de família é um atributo da personalidade que reflete a posição de cada pessoa a respeito de sua própria família, como perante a sociedade. Difere da posição jurídica da pessoa natural considerada em si mesma, embora ambas as situações diretamente amparadas pelo ordenamento jurídico.[6]

O estado de família denota uma relação entre parentes ou entre cônjuges, enquanto que o estado individual da pessoa reflete seu próprio direito à identidade, amparado pelo ordenamento jurídico de maneira erga omnes. O estado individual é pautado pelos elementos que se ligam à individualidade do sujeito. Já o estado de família se estabelece mediante o vínculo familiar e parental que se constitui entre determinadas pessoas, donde a indissociável correlação entre os respectivos estados. Vale dizer, alguém não pode estar inserido no estado de casado como marido se não existir a respectiva cônjuge mulher; ninguém é pai se não existir o respectivo filho.

Ainda, porque se insere no rol dos direitos da personalidade,[7] o estado de família reveste-se de suas mesmas características, dentre as quais se destacam ser absoluto, geral, extrapatrimonial e indisponível.[8]

Inclusive, uma das consequências da indisponibilidade é a impossibilidade de renúncia, “em razão da natureza de ordem pública que possuem suas disposições”,[9] uma vez que produz efeitos além da esfera dos interesses dos titulares.

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Caracteriza-se, ademais, pela estabilidade, que “significa que somente pode ser modificado na forma que a lei expressamente o estabelece e não pela livre vontade dos interessados”.[10]

Acrescente-se, que se diferencia pela característica fundamental da unidade, pois “o estado de família deve ser apreciado com relação a cada indivíduo em particular e compreende todos os vínculos jurídicos familiares que o ligam com outras pessoas, qualquer que seja a qualificação de tais vínculos”.[11]

Aliás, a maior importância do estado de casado deriva do próprio propósito do casamento, qual seja, a “comunhão plena de vida” (Código Civil, art. 1.511), efeito por excelência do casamento [12] e que implica na inserção do casal em uma comunidade (unidade) de existência, sem qualquer reserva ou condição, mas que lhe servirá de proteção e amparo para a vida a partir de então.

Disso se extrai, que não há possibilidade de que o estado de casado - no qual, frise-se, estão inseridos ambos os cônjuges, exatamente na mesma condição e com as mesmas prerrogativas - seja modificado tão somente diante da manifestação de vontade de um deles.

A hipótese em exame viola direito personalíssimo do outro cônjuge, interfere no espaço de sua intimidade e vida privada, com reflexos na órbita intocável de sua dignidade pessoal, valor mais caro da pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III; art. 5º, X).

Até porque, “o divórcio não é uma situação normal nem banal”,[13] como se tem reiteradamente considerado. Implica um delicado momento da vida dos cônjuges e da família, que em certos casos exige anos e por vezes toda uma existência a ser elaborado e vencido.[14] Impõe-se, a toda evidência, uma tutela diferenciada, no mínimo sensível à dignidade de cada cônjuge.


4. Direito potestativo

Nessa linha de pensamento, a compreensão do divórcio como direito potestativo dos cônjuges merece alguma ponderação.

Não se discute que, à luz do atual ordenamento jurídico, não há argumento que possa obstar a pretensão de um dos cônjuges de dissolução do vínculo conjugal. Se um deles não quer mais permanecer no estado de casado e intenta ação de divórcio, o vínculo será necessariamente dissolvido, independentemente da concordância ou não do outro cônjuge. Ainda que haja oposição expressa, o divórcio será decretado e o casamento extinto, se persistir a inequívoca vontade de ao menos um dos cônjuges, tudo sem prejuízo de que as demais questões relacionadas aos interesses da família, como, por exemplo, alimentos e a situação dos filhos, seja igualmente resolvida.

Ocorre que esse poder de impor a vontade que se reconhece aos cônjuges para dissolução do vínculo conjugal deverá respeitar o estado de família que o casamento estabelece e ao qual estão jungidos o marido e a mulher. O estado de casado é uma unidade, recíproco e indissociável, também irrenunciável, de modo que não pode ser desconstituído tão somente pela manifestação de vontade não receptícia de um dos cônjuges, ainda que venha a ser, posterior e inexoravelmente, sancionada pelo comando jurisdicional.

Trata-se de um direito limitado em poder como, de regra, são os direitos da personalidade e os direitos de família.[15] Potestatividade, portanto, que só pode ser compreendida como um estado de poder comum dos cônjuges, vinculando-os de tal forma a não se permitir efeitos definitivos ao exercício unilateral e isolado.

Assim como eles se casam pela manifestação de vontade, um frente ao outro, perante o Estado, que assiste e sanciona, igualmente o descasar, um frente ao outro (receptividade), ainda que por vontade, já agora, unilateral; mas a receptividade se impõe, lá e cá; é questão de respeito à dignidade de cada qual, reciprocamente.

Até porque, o divórcio liminar levaria à esdrúxula situação de um dos cônjuges saber-se divorciado e assim se colocar perante a sociedade, enquanto o outro imagina ainda estar casado e assim se conduz, ignorando, na verdade, a alteração de seu próprio estado civil.

Sem se falar de eventual procrastinação processual intencional do cônjuge divorciado, beneficiado pela liminar, sabido que o rompimento do vínculo, tanto no regime da comunhão universal, como na comunhão parcial de bens, traz consequências patrimoniais de toda sorte, além das questões obrigacionais perante terceiros, à sorrelfa do outro (já divorciado, mas que se supunha acobertado e garantido pelo casamento, inclusive no aspecto patrimonial e não só no institucional e social).

Ainda, a problemática com relação aos filhos e parentes vinculados pela afinidade[16] - porque o divórcio estende seus efeitos necessariamente aos filhos havidos do casamento, também à relação de parentesco por afinidade (Código Civil, art. 1.595).


5. Implicações processuais

Não menos importantes são as implicações de natureza processual da decisão liminar, a merecer até mesmo estudo separado. A título de ilustração, citam-se apenas duas, que se afiguram da maior relevância: o fato de ser irreversível (depois da averbação do assento de registro civil), donde o obstáculo contido no art. 273, § 2º, do Código de Processo Civil; a característica da precariedade e provisoriedade, incompatíveis com as ações de estado.


Conclusão

É de rigor, portanto, que na ação de divórcio se perfectibilize a ciência do cônjuge requerido sobre a pretensão, mediante regular citação, dando-lhe o indispensável conhecimento da vontade do outro – ainda que ela, invariavelmente, culmine com o fim do casamento - para que somente então o divórcio seja decretado e, com ele, alterado o estado de família do casal.


REFERÊNCIAS

COMEL, Denise Damo. Manual Prático da Vara de Família : roteiros, procedimentos, despachos, sentenças, audiências. Curitiba : Juruá, 2013.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. rev. atual. ampl. São Paulo : RT, 2011.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 9.ed. rev. atual. ampl. São Paulo : Saraiva, 2007. v. I.

LEITE, Eduardo de Oliveira. Estudo de Direito de Família e Pareceres de Direito Civil, São Paulo : Forense, 2011.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado : parte geral. Campinas : Bookseller, 2000. t. V.

NERY, Rosa Maria de Andrade. Manual de Direito Civil : família. São Paulo : RT, 2013.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil : direito de família. São Paulo : Atlas, 2001. v. 5.


Notas

[1] NERY, Rosa Maria de Andrade. Manual de Direito Civil : família. São Paulo : RT, 2013. p. 43.

[2] A decisão foi proferida nos autos nº 0518107-66.2013.8.05.0001, de ação de divórcio litigioso ajuizada pelo marido, que tramitou pelo juízo da 6ª Vara de Família, Sucessões, Órfãos, Interdição e Ausentes de Salvador/BA, e decretou o divórcio em sede de antecipação de tutela, antes mesmo da citação da mulher. Referida decisão se reporta a outra oriunda do juízo da Vara Cível da Comarca de Alagoinhas/BA, nos autos nº 4428-81.2012.805.0004 que, ao que parece, decretou o divórcio de forma incidental, mas após a citação da parte requerida.

[3] COMEL, Denise Damo. Manual Prático da Vara de Família : roteiros, procedimentos, despachos, sentenças, audiências. Curitiba : Juruá, 2013. p. 249/250.

[4] Direitos potestativos são aqueles direitos que existem por si, que são direitos independentemente de outros e se exercem por ato unilateral do titular, “seja por declaração unilateral de vontade ao interessado, ou a alguma autoridade, ou seja por simples manifestação unilateral de vontade, ou seja por meio de ação”. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado : parte geral. Campinas : Bookseller, 2000. t. V. p. 280.

[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil : direito de família. São Paulo : Atlas, 2001. v. 5. p. 31.

[6] NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit. p. 127.

[7] “Conceitua-se os direitos da personalidade como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais” GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 9.ed. rev. atual. ampl. São Paulo : Saraiva, 2007. v. I. p. 136.

[8] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 9.ed. rev. atual. ampl. São Paulo : Saraiva, 2007. v. I. p. 144.

[9] NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit. p. 129.

[10] NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit. p. 129.

[11] NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. Cit. p. 129.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. rev. atual. ampl. São Paulo : RT, 2011, p. 148.

[13] LEITE, Eduardo de Oliveira. Estudo de Direito de Família e Pareceres de Direito Civil, São Paulo : Forense, 2011. p. 31.

[14] LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit. p. 31.

[15] MIRANDA, Pontes de. Op. Cit. p. 280.

[16] “Quando um casal se divorcia a ruptura atinge o outro cônjuge, os filhos, os parentes e amigos, colegas de profissão, estilos de vida, posição socioeconômica, autoestima e significado de vida.” LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. Cit. p. 33.

Sobre a autora
Denise Damo Comel

Doutora em Direito. Juíza de Direito da 1ª Vara da Família e Sucessões, Registros Públicos e Corregedoria do Foro Extrajudicial da Comarca de Ponta Grossa. Professora na Escola da Magistratura do Paraná. Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Especialista em Psicologia da Educação. Autora dos livros: Do Poder Familiar (Revista dos Tribunais, 2003); Manual Prático da Vara dos Registros Públicos (Juruá, 2013); Manual Prático da Vara de Família : roteiros, procedimentos, despachos, sentenças e audiências (4.ed. Juruá, 2016).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COMEL, Denise Damo. Divórcio liminar: reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4339, 19 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38217. Acesso em: 25 nov. 2024.

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