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Transexualidade e o uso do banheiro da empresa

Agenda 19/04/2015 às 18:47

O uso do banheiro em empresas por transexuais causa grande celeuma no ambiente de trabalho. O empregador e os empregados devem respeitar a diversidade e a orientação sexual dos colegas na utilização do espaço público.

A conquista dos direitos humanos, que perpassa pela concretização dos direitos de primeira a quarta dimensão (ou geração), ainda está em continuidade. Nos Estados Democráticos de Direito, como o Brasil, as formas de proteção à dignidade do ser humano – seu maior patrimônio – têm sido aperfeiçoadas.

Nesta nova era de afirmação da dignidade humana, ganharam grande relevo, no campo da Antropologia e da Psicologia, as pesquisas sobre gênero, sexualidade e diversidade sexual. Concepções ocidentais historicamente comuns acerca desses temas têm sido desconstruídas e reformuladas pelos estudiosos desde a década de 1960. A principal delas é a de sexo/gênero.

Temas conexos demonstram essa variabilidade. Se há menos de 50 anos a homossexualidade era considerada anomalia1 (e ainda o é, infelizmente, por parcela politicamente organizada da sociedade), cada vez mais as pessoas compreendem que se trata apenas de uma orientação sexual – não uma “opção”, tampouco uma doença. A transexualidade haverá de seguir o mesmo caminho.

Atualmente, sexo e gênero são reconhecidos como conceitos distintos, ainda que análogos. O sexo refere-se às conformações biológicas do indivíduo, analisadas sob a perspectiva da reprodução (“macho”, “fêmea” – homem e mulher), enquanto gênero é a convicção pessoal, subjetiva de cada pessoa acerca de sua identidade social, o que pode incluir o aspecto sexual. Daí falar-se em identidade de gênero, que é a assimilação personalíssima do indivíduo com uma identidade masculina, feminina ou mesmo nenhuma dessas (HENRIQUES; BRANDT; JUNQUEIRA; CHAMUSCA, 2007, p. 19).

De fato, o órgão genital nada diz sobre a construção subjetiva que define o ser humano que o porta. Assim é que, por exemplo, homens que não têm mais os testículos, retirados cirurgicamente no tratamento de câncer, continuam sendo tão homens quanto antes, se é dessa forma que se sentem. Sua identidade de gênero, que os acompanha, é masculina. O mesmo ocorre com as mulheres que retiram os seios, ovários ou útero no tratamento de doenças.

Uma pessoa transexual também não é definida pelo órgão genital com que nasceu. Ela se identifica com um gênero diferente do seu sexo biológico e passa, naturalmente, a agir e perceber-se socialmente de acordo com a sua identidade de gênero.

Por isso, a pessoa transexual que pertença ao gênero feminino, sentindo-se, percebendo-se e agindo como mulher, tem o direito de ser tratada igualmente como mulher – independentemente de ter realizado ou não cirurgia de transgenitalização. Ela é mulher, pois o que a torna uma está muito à frente de sua genitália ou do sexo que consta formalmente de seus documentos. Convém rememorar a célebre locução de Simone de Beauvoir (1967, p. 9): “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Quando a situação é oposta, a conclusão é a mesma.

A prerrogativa de ser tratado(a) de acordo com sua identidade de gênero decorre da própria dignidade humana de que o(a) transexual é titular (art. 1º, III, da CRFB), bem assim do direito ao igual respeito e consideração que, como esclarece Ronald Dworkin (2002, p. 419), a todos deve ser reconhecido. E vale lembrar, com José Afonso da Silva (2010, p. 196), que a promoção da dignidade humana do outro significa a exaltação da sua própria.

Também de se recordar que essas espécies de direitos contam com eficácia horizontal, que permite sua imposição não só verticalmente ao Estado, mas perante particulares – chamada por alguns de eficácia transversal dos direitos fundamentais (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 268). E isso se dá mesmo em relações jurídicas privadas com subordinação jurídica autorizada, como o contrato de emprego.

Nesse contexto, o empregador do(a) trabalhador(a) transexual tem a obrigação de respeitá-lo(a) na sua identidade de gênero, abstendo-se de qualquer tratamento discriminatório (art. 3º, IV, da CRFB, art. 373-A, CLT, art. 1º, Lei 9.029/95, art. 3º, § 1º, Lei 11.340/06).

Essa obrigação se origina, pelo menos, de duas bases jurídicas: primeiro, do dever específico decorrente da normatividade da principiologia constitucional – dada a constatação da hermenêutica contemporânea, que confere eficácia normativa aos princípios, contrapondo-os às regras enquanto espécies do mesmo gênero: normas (ALEXY, 2001, p. 83). Segundo, do dever anexo de conduta do empregador-contratante, inerente à sua boa-fé objetiva (art. 422 do CC c/c art. 8º, parágrafo único, da CLT).

Por conseguinte, o poder empregatício atribuído pelo ordenamento jurídico ao empregador (arts. 1º, IV e 170, II, da CRFB, art. 2º da CLT) deve ser exercido na conformidade das normas constitucionais e internacionais de valorização da pessoa do trabalhador (arts. 1º, IV, 7º, “caput” e 170, III e VIII, da CRFB, art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil).

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Logo, em todas as suas dimensões – diretiva, regulamentar, fiscalizatória e disciplinar (DELGADO, 2013, p. 663) –, o exercício do poder empregatício encontra limites na sua contraface: os direitos fundamentais e da personalidade do trabalhador. Entre estes, estão os direitos dos(as) empregados(as) transexuais à identidade de gênero e à imagem (art. 5º, V e X, da CRFB e arts. 11 e 12 do CC).

A identidade de gênero, enquanto direito fundamental, tem sido reconhecida em diversas esferas, especialmente pelo Poder Judiciário, que já há mais de 10 anos vem autorizando retificações de prenome em registro civis e, mais recentemente, também de sexo, sem qualquer apontamento de que se trata de pessoa operada – como se nota da decisão do TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n. 994.08.04577-8, de 23/02/2010.

Para além da eficácia vertical do direito, como dito, também a horizontal deve ser reconhecida aos cidadãos e cidadãs.

Desse modo, não se verifica motivo para que o(a) empregado(a) não seja tratado no ambiente de trabalho pelo prenome que elegeu como seu, e com as condições inerentes ao gênero com o qual se identifica.

Estabelecidos tais pressupostos, não se pode negar que a utilização do banheiro feminino no ambiente de trabalho é um direito da empregada transexual. O mesmo no que se refere ao empregado transexual em relação ao masculino, se assim sentir-se confortável.

O comum argumento de que a presença da mulher transexual não transgenitalizada, em banheiro feminino, causaria risco de violência sexual às empregadas do sexo feminino não se sustenta. É que não existe estimativa nem estatística alguma sobre violência sexual sofrida por mulheres cujos agentes sejam transexuais. Preocupante, na realidade, é o risco de violência, inclusive sexual, de mulheres transexuais em banheiros masculinos.

Consequentemente, o empregador não pode vedar ao empregado ou empregada transexual a utilização do banheiro condizente com sua identidade de gênero. Tal proibição, inevitavelmente, acarretaria grave constrangimento ao(à) trabalhador(a), ofendendo seus direitos de personalidade. O ato, então, consistiria em abuso do poder fiscalizatório, eivado de nulidade (art. 187 do CC c/c arts. 8º, parágrafo único, e 9º da CLT) e passível de condenação a compensação por dano moral (art. 927 do CC).

Quanto aos demais empregados, compete-lhes respeitar as diferenças e tolerar, com consciência e sem discriminação, o compartilhamento do banheiro com o(a) colega. A transexual é mulher e é exatamente nessa qualidade que seu empregador e os demais empregados devem tratá-la. Da mesma forma, o transexual.

É bem verdade que a questão gera polêmica. As opiniões individuais, baseadas em arraigados valores morais e religiosos, são díspares.

Normalmente, o debate mais acalorado envolve as necessidades das transexuais e o uso do banheiro feminino. Basta dizer que há projetos de lei em Salvador/BA, e União dos Palmares/AL, dispondo sobre o uso de banheiros públicos. No primeiro caso, para autorizar2; no segundo, para proibir3. Há, ainda, tentativas de evitar conflitos sem, contudo, enfrentar a questão – como a construção de um terceiro banheiro4. Trata-se, essa última, de ato manifestamente alheio à noção de inclusão, a qual deve servir de mote para a solução desse problema social.

Nessa linha, reconhecida ao(à) empregado(a) a faculdade de escolha de uso do banheiro, deverá também o empregador atuar na conscientização de respeito à diversidade.

Atitudes de hostilização ou afronta de colegas do sexo feminino que compartilham o banheiro com a transexual impõem ao empregador a realização de campanhas educativas, ou mesmo a punição, em casos mais graves, na forma que lhe autoriza o ordenamento jurídico ao reconhecer o poder disciplinar (art. 2º da CLT). Não se tolera, nesse quadro, a prática do chamado assédio moral horizontal, que ocorre entre colegas de mesma hierarquia na empresa.

A prerrogativa legal do poder disciplinar consiste, na esfera punitiva, em verdadeiro poder-dever – e comporta, portanto, utilização também como elemento pedagógico. Sem essa precaução e/ou repressão, poderá o empregador responder pessoalmente tanto pelos atos das empregadas que se oponham abusivamente ao compartilhamento (arts. 932, III e 933 do CC) quanto por sua própria omissão em coibir condutas discriminatórias (art. 186 do CC).

Naturalmente, esse raciocínio é aplicável também ao trabalho dos empregados transexuais (nascidos biologicamente mulheres, mas com identidade de gênero masculina). Há aí um desdobramento do próprio princípio constitucional da igualdade de sexo (art. 5º, I, da CRFB).

O debate, evidentemente, ocorrerá na microssociedade que compõe a empresa. E para garantir a intimidade dos trabalhadores, seja qual for o sexo ou gênero, o empregador poderá providenciar box individuais nos banheiros, de modo a assegurar que ninguém seja obrigado a compartilhar sua intimidade (art. 5º, X, da CRFB). Segue-se aqui a mesma linha que veda a revista íntima, já positivada (art. 373-A, VI, da CLT).

Não se trata de um terceiro banheiro, como já se apontou ser indevido, mas sim de espaços individuais exclusivos, acessíveis a partir dos tradicionais banheiros masculino e feminino, para utilização de todos os empregados que frequentam o banheiro indicado a seu sexo e optem pela intimidade quando trocam de roupa ou fazem suas necessidades.

O box individual funcionará ainda como meio para a transação que levará à desejada aceitação recíproca, entre os trabalhadores, de suas diferenças. De todo modo, o ideal é que no ambiente empresarial haja uma arquitetura geral que garanta o direito fundamental de cada empregada e empregado à intimidade. Muitas pessoas, transexuais ou não, por uma sensação mais profunda de pudor, não se sentem confortáveis em banheiros públicos sem espaços privados exclusivos. Cuida-se de questão cultural, que deve ser respeitada.

A inclusão de minorias, a derrubada de paredes que comportam as dessemelhanças e a compreensão do direito como instrumento para a diminuição ou mesmo desaparecimento de estigmas sociais devem ser as pedras de toque tanto na interpretação jurídica quanto na efetivação das normas. Afinal, o pluralismo e a solidariedade foram reconhecidos como objetivos fundamentais da República Constitucional Brasileira (art. 1º, V e art. 3º, I, da CRFB).

Assim como somente nas sociedades plurais há democracia, é no respeito ao próximo – e à sua natural e necessária diferença – que se concretiza o pluralismo. Feliz o dia em que não apenas aceitaremos nossas diferenças, mas celebraremos nossa diversidade.

REFERÊNCIAS

ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001.

BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo – volume II: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.

DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: LTr, 2013.

DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HAZER, W. A vida sexual da mulher. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Universo, 1959.

HENRIQUES, R.; BRANDT, M. E. A.; JUNQUEIRA, R. D.; CHAMUSCA, A. Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Brasília: Cadernos SECAD 4 – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação – SECAD/MEC, 2007.

MENDES, G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

1 Interessante passagem, em que se notam os rudimentos de solidariedade ao diferente, ainda que tratando a questão como doença, pode ser extraída de Hazer (1959, p. 79): “O homossexualismo é uma doença e como tal deve ser tratada. Devido à ignorância geral da sociedade, os homens com essa doença são considerados criminosos, muitas vêzes são mesmo processados. Ao contrário, deveriam êsses desviados ser amparados e tratados. São vítimas de um impulso a que não conseguem resistir.”

2 Disponível em: <http://www.pimenta.blog.br/2014/01/10/polemica-projeto-que-autoriza-travesti-a-usar-banheiro-feminino-esta-parado-na-camara-de-salvador/>. Acesso em: 30/09/2014.

3 Disponível em: <http://cadaminuto.com.br/noticia/229561/2013/10/21/proibicao-de-acesso-de-travestis-a-banheiros-femininos-causa-polemica>. Acesso em: 30/09/2014.

4 Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/01/banheiro-exclusivo-para-comunidade-lgbt-cria-polemica-no-rio.html>. Acesso em: 30/09/2014.

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