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O decreto presidencial à luz da Emenda Constitucional nº 32

Agenda 01/03/2003 às 00:00

1. Introdução.

"Estou perfeitamente seguro de que tenho razão; mas posso enganar-me e podes ter razão tu. Em qualquer dos casos, vamos conversar racionalmente, pois assim nos aproximaremos mais da verdade, do que se cada um persistir no seu ponto de vista. Ver-se-á perfeitamente que a atitude que designo como sensata ou racional pressupõe um certo grau de modéstia intelectual. É uma atitude de que só são capazes aqueles que reconhecem não ter, por vezes, razão e que geralmente não esquecem seus erros." [1]

Cuida o presente trabalho de breve ensaio acerca do decreto presidencial como ato normativo, à luz das modificações inseridas no altiplano constitucional do ordenamento jurídico brasileiro pelo poder constituinte derivado reformador, através da emenda constitucional nº32, promulgada em 11 de setembro de 2001, com importantes repercussões no exercício da função atípica do Chefe do Poder Executivo Federal de criar normas.

Com efeito, a referida reforma constitucional, além de estabelecer novo regramento ao uso de medidas provisórias, inseriu sensíveis modificações na natureza jurídica do decreto presidencial, regurgitando [2] a figura do decreto autônomo no direito positivo brasileiro.


2. O decreto presidencial na Constituição Federal de 1988.

Na lição da doutrina administrativista [3], o decreto é ato administrativo formal, de competência privativa do Presidente da República, podendo veicular, em sua substância, atos individuais ou atos gerais. No primeiro caso, dirige-se a sujeitos determinados, produzindo efeitos concretos. Como ato geral, possui destinatários inominados, com claro conteúdo normativo. Nesta última hipótese, cumpre ainda distinguir o decreto regulamentar, cuja função cinge-se a regular "a fiel execução" das leis, do decreto autônomo, com espectro normativo próprio, independente de lei.

À luz da redação original da Constituição Federal promulgada em 1988, o decreto presidencial com conteúdo normativo apenas era admitido como manifestação do poder regulamentar, sendo-lhe vedado inovar no ordenamento jurídico, deveria sempre se limitar a esclarecer o conteúdo das leis, sem lhes aumentar ou restringir o espectro de incidência.

Deste modo, considerando que o fundamento constitucional de validade do decreto seria sempre indireto, já que se limitava a regulamentar a lei, restou consagrada a tese de que o mesmo, embora ato normativo, não poderia ser objeto de controle abstrato de constitucionalidade pelo STF, eis que não poderia ser contrastado diretamente com o texto constitucional.


3. A EC/32 e o decreto presidencial autônomo.

A multicitada emenda constitucional alterou a redação do artigo 84 da CF/88, que passa a prescrever:

"Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

.....................................................

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

......................................................(NR)"

A redação original da CF/88 verberava que a organização e funcionamento da administração federal competiriam privativamente ao Presidente da República, em qualquer hipótese, "na forma da lei". Portanto, a lei cuidaria destas matérias e o decreto presidencial estaria adstrito a regulamentá-las, com fundamento na lei, sem o poder de inovar no ordenamento jurídico. Na prática porém, verificou-se o indesejável expediente de editar-se medidas provisórias para disciplinar tais matérias, olvidado seus pressupostos constitucionais de urgência e relevância.

Como a EC/32 trouxe novos contornos ao instituto da medida provisória visando dar freios ao seu uso indiscriminado, o legislador constitucional considerou necessário introduzir ajustes visando possibilitar ao Presidente da República a produção, via decreto, de normas que cuidem da organização administrativa do Poder Executivo, afastando assim, a necessidade de participação do Poder Legislativo na produção de tais atos.

Observe-se portanto que, a partir da EC/32, é possível identificar decretos presidenciais veiculando atos concretos, atos normativos regulamentares, ou mesmo atos normativos autônomos. Gize-se porém, que o conteúdo do decreto como ato autônomo deve limitar-se às matérias relacionadas com a organização administrativa do Poder Executivo Federal, observadas as restrições estabelecidas na nova redação do art.84 da CF/88. Acresça-se, que a atribuição de dispor acerca da organização administrativa no âmbito interno já era reconhecida pela ordem constitucional à Câmara dos Deputados (art.51,IV), ao Senado Federal (art.52,XIII) e aos Tribunais (art.96,I,b).

Por fim, considerando que o decreto com conteúdo normativo autônomo tem fundamento constitucional de validade imediato, sem intermédio de lei, conclui-se que este deve sujeitar-se ao controle de constitucionalidade abstrato, via ação direta, sob o crivo do STF, na qualidade de legislador negativo, ao contrário do entendimento que prevalece e que deve ser mantido, acerca do decreto regulamentar.

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4. Conclusão.

De tudo o quanto exposto, conclui-se que as normas formalizadas através de decreto presidencial podem ter conteúdo autônomo, independente de lei, desde que cuidem estritamente da matéria elencada na CF/88, art.84, com a redação que lhe atribuiu a EC/32, em paridade ao teor dos arts.51,IV, 52,XVIII e 96,I,b.

Assim, embora não conte com a participação do Poder Legislativo em sua elaboração, tais atos sujeitam-se ao controle abstrato - repressivo de constitucionalidade, ao crivo do Poder Judiciário.


NOTAS:

01. Karl Raymund Popper in O racionalismo crítico na política.

02. O decreto já foi veículo de normas autônomas em nosso sistema jurídico, com espectro mais amplo, sob a égide da Constituição Federal de 1969.

03. Maria Sylvia Zanella Di Pietro in Lições de Direito Administrativo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 14ª Ed. São Paulo, Ed. Atlas, 2002.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública, 3ª Ed. São Paulo, Ed. Atlas, 1999.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito, 2ª Ed. São Paulo, Ed. Atlas, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo Brasileiro, 14ª Ed., Ed. Malheiros, 2002.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27ª Ed., Ed. Malheiros, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, 1ª Ed. São Paulo, Ed. Ed. Atlas, 2002.

LOPES, Júlio Aurélio Vianna. Lições de Direito Constitucional, 1ª Ed. Rio de Janeiro, 2001.

PINTO, Bilac. Regulamentação efetiva dos serviços de utilidade pública, 2ª Ed. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2002.

POPPER, Karl Raymund. O racionalismo crítico na política. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real, 2ªEd., Brasília, Ed. Universidade de Brasília,1994.

Sobre o autor
Ricardo Martins Costa

advogado em Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Ricardo Martins. O decreto presidencial à luz da Emenda Constitucional nº 32. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3844. Acesso em: 22 dez. 2024.

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