6. A insuficiência da legislação brasileira e a experiência no direito comparado
Deixar a questão dos testes genéticos ao livre critério das partes é não levar em conta a falta de equilíbrio que existe nesta classe de relações, ainda mais em épocas de crescente e massivo desemprego. É necessário ter uma especial precaução sobre esta problemática, já que a realização indiscriminada de testes pode ter como consequência a impossibilidade de determinados trabalhadores em conseguir um trabalho, com as graves consequências que também acarretará ao seu grupo familiar e a sociedade como um todo.
No Brasil o assunto é ainda incipiente e se desconhece algum julgado que tenha enfrentado a temática diretamente.
De ressaltar-se que, além dos preceitos gerais relativos à isonomia contidos na Constituição, o Brasil possui um arcabouço jurídico de proteção contra a discriminação do trabalhador no plano infraconstitucional, merecendo destaque, nesse ponto, a Lei n. 9.029/95, que veda a exigência de atestados de gravidez e esterilização, bem como outras práticas de caráter discriminatório, para fins de admissão do trabalhador ou de continuidade da relação jurídica de trabalho.
Mencionada diploma legal cuidou de diversas formas de discriminação do trabalhador, quer no momento da contratação, quer durante a vigência do vínculo empregatício, ou, até mesmo, por ocasião de sua resilição, cuidando de regulamentar, de forma mais específica, os preceitos constitucionais anteriormente aludidos. Entretanto, nada dispôs diretamente acerca do acesso à informação genética do trabalhador.
No plano internacional, o assunto é tratado na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 11 de novembro de 1997, que dispõe no seu art. 2º:“a) Cada indivíduo tem direito ao respeito à sua dignidade e direitos, quaisquer que sejam suas características genéticas” e “b) Esta dignidade impõe que não se reduza os indivíduos a suas características genéticas e que se respeite seu caráter único e sua diversidade”.
À falta de legislação pátria acerca do tema, deverá o intérprete decidir, dentre outras fontes, de acordo com o direito comparado (art. 8º, CLT).
A doutrina afirma que
no direito norte americano, o primeiro grande caso a chegar ao judiciário apontado pela doutrina americana foi o caso “Equal Employment Opportunity Commision v. Burlington Northern Santa Fe Railway”. Este caso, apresentado perante a justiça federal não chegou à Suprema Corte, tendo terminado em um acordo em maio de 2002. A importância reside em ter sido o primeiro caso no qual se pôde apresentar perante o judiciário de forma ampla a questão da discriminação genética dos empregados por parte da empresa.
A Equal Employment Opportunity Commision (E.E.O.C) é uma agência federal americana voltada para o combate às diversas formas de discriminação no ambiente de trabalho. Burlington Northern Santa Fe Railway é uma empresa ferroviária que foi acusada de conduzir testes genéticos em seus empregados, sem o conhecimento destes, para determinar quais empregados estariam mais propensos a desenvolver patologias relacionadas ao trabalho.
Os argumentos dos empregados não foram apenas focados na possível discriminação em virtude dos testes genéticos. Ponto crucial da argumentação dos empregados foi o fato de os mesmos não terem sido informados dos testes aos quais estavam sendo submetidos, esta ausência de informação e consentimento foi elemento bastante propalado na ação.48
Em fevereiro de 2007, o Senado Americano aprovou lei vendando aos empregadores a contratação, a despedida e o acesso ao trabalho com amparo na informação genética, atual ou potencial, de um empregado (Kaisernet-work org., 1º de fevereiro de 2007).49
A jurisprudência americana já possui precedentes no sentido de que há um direito constitucional de privacidade e que exames realizados devem ser feitos no limite do consentimento e da pertinência ao objetivo dos testes. São vedados os testes que tem cunho discriminatório entre os examinados.
No Velho Mundo, alguns Estados-Membros da Comunidade Europeia possuem regras sobre genética humana já em vigor.50
Na França, uma emenda ao Código Civil e o Código Penal de 2002 proíbem discriminação baseada em características genéticas baseadas em testes preditivos que “tenham como objeto uma doença, que ainda não se manifestou ou uma predisposição genética para uma Doença”.
De forma semelhante, na Suécia, a legislação exige que testes genéticos só podem ocorrer se tiverem um objetivo médico ou servirem a um propósito de pesquisa.
Na Finlândia, uma lei de 2001 prevê que os empregadores não exijam que os empregados participem em teste genético no momento do recrutamento ou durante o trabalho.
Na legislação dinamarquesa há regulamentação sobre o uso de Informação em Saúde no Mercado de Trabalho. O objetivo é garantir que os exames de saúde se concentrem sobre as presentes e atuais condições de saúde e que essas condições sejam relevantes para o trabalho do empregado. Assim, a lei limita bastante as possibilidades de o empregador perguntar aos empregados informações com base em testes genéticos. O empregador, por exemplo, não tem permissão para coletar informações sobre a probabilidade de o empregado sofrer de doenças no futuro.
Na Áustria, a seleção genética ou de qualquer outra utilização de dados genéticos sobre os empregados pelos empregadores são explicitamente proibidas.
Restrições ao recolhimento de dados genéticos no local de trabalho também são fornecido na Holanda, no Luxemburgo e na Grécia.
Na Itália, de acordo com a Lei de Proteção de Dados, de 1996, os dados genéticos podem ser apenas processados nas circunstâncias referidas mediante autorização ad hoc a ser concedida pela a autoridade nacional de supervisão. Os dados genéticos expressamente mencionados na referida autorização podem ser processados no que diz respeito a tais informações e operações e devem ser indispensáveis ??para proteger a integridade física ou saúde de qualquer empregado, um terceiro ou a comunidade como um todo, desde que também em função do consentimento por escrito do sujeito.
Na Alemanha, discute-se atualmente um projeto de lei, segundo a qual os empregadores podem fazer testes para doenças genéticas desde que provoquem impacto sobre determinados postos de trabalho, como daltonismo em trabalhadores no setor de transportes coletivos, e esta prática será proibida em outros casos, obviamente.
Ainda no país germânico, no Tribunal Administrativo de Darmstadt, Hessen, 2004, professores, tal como todos os funcionários públicos, têm que realizar um exame médico antes de obterem um trabalho permanente. Uma jovem professora foi examinada pelo médico de medicina do trabalho e veio a saber que se encontrava com perfeita saúde. Mas em resposta a perguntas sobre a história clínica da sua família, indicou que o seu pai sofria de doença de Huntington. Recusou a realização de testes genéticos. As autoridades educativas não lhe concederam um emprego permanente na função pública alemã com base no seu relatório médico. A professora contestou depois, com sucesso, a decisão no Tribunal Administrativo.51
O Código do Trabalho português consagra de forma expressa, nos seus artigos 24º e 26º, o direito à igualdade e a proibição de discriminação baseada no patrimônio genético do trabalhador. Estas normas merecem, sem dúvida, um forte aplauso, mas não deixam outrossim de ser preocupantes, pois constituem um claro sintoma de que as práticas discriminatórias em função do património genético já estão aí, no terreno, e ameaçam generalizar-se.52 Como ensina Gérard Lyon-Caen, também citado por João Leal Amado, a lei não se limita a enunciar uma regra, também constitui um sinal; e quando a lei se insurge contra a discriminação baseada no património genético, isso é um sinal seguro de que a discriminação genética é um fenómeno em expansão.53
Também nessa linha encontra-se o disposto no artigo 11º da Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, onde se pode ler: “É proibida toda a forma de discriminação contra uma pessoa em virtude do seu património genético” (Diário da República, I Série-A, de 3 de janeiro de 2001).
Ainda em Portugal, de acordo com o artigo 17.º, n.º 2, do Código do Trabalho, o empregador não pode exigir ao candidato a emprego ou ao trabalhador que prestem informações relativas à sua saúde ou estado de gravidez, salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade profissional o justifiquem e seja fornecida por escrito a respectiva fundamentação. Em todo o caso, tais informações serão prestadas a médico, que só poderá comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto a desempenhar a atividade, salvo autorização escrita deste (art. 17.º, n.º 3).
Por outro lado, segundo o artigo 19.º, n.º 1, do Código do Trabalho, o empregador não pode, para efeitos de admissão ou permanência no emprego, exigir ao candidato a emprego ou ao trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das condições físicas ou psíquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem, devendo em qual quer caso ser fornecida por escrito ao candidato a emprego ou trabalhador a respectiva fundamentação. E, também aqui, o médico responsável pelos testes e exames médicos só poderá comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a atividade, salvo autorização escrita deste (art. 19.º, n.º 3).
Em Hong Kong, na China, três homens obtiveram uma indenização por danos, atribuída pelo Tribunal do Distrito de Hong Kong, pelo facto de o Governo lhes ter negado um emprego apenas com base no facto de os seus pais sofrerem de esquizofrenia. Os três homens viram recusado um emprego ou foram despedidos do seu posto de trabalho sem uma razão clara. Uma investigação desenvolvida pela Comissão para a Igualdade de Oportunidades revelou a ligação com a história clínica da respectiva família com a consequente discriminação genética.54
Enquanto o debate continua em aberto quanto a saber se existem ou não razões ou circunstâncias objetivas que justifiquem a exclusão ou o tratamento menos favorável de uma pessoa devido aos seus genes, qualquer tratamento diferenciador deve ser objetivo, razoável, adequado e proporcionado.
7. Brevíssimos apontamentos sobre os Aspectos Processuais e a Responsabilidade Civil por Atos de Discriminação Genética do Empregado.
O direito à intimidade do empregado é inviolável, por força de preceito constitucional, logo, a norma se propõe a assegurar o máximo de respeito à conduta privada das pessoas, combatendo as práticas discriminatórias. Nesse prumo, caso se comprove que um empregado não foi selecionado em decorrência de predisposições genéticas, a consequência é a indenização por danos morais e materiais, além da tutela específica, consistente na reintegração do empregado, caso já em curso a relação laboral. Da mesma forma, caso já em curso o contrato de trabalho, reste evidenciada a dispensa discriminatória.
Leciona a doutrina que o dever de ressarcimento, nesses casos, se funda na teoria da culpa in contrahendo ou responsabilidade pré-contratual, com a qual Jhering visou tutelar a confiança recíproca, que deve nortear o comportamento das partes desde a fase das negociações preliminares.55
No que se refere ao ônus da prova, as dificuldades da prova para os casos de discriminação são evidentes. Estevão Mallet ressalta que as regras processuais relativas ao ônus da prova, para que não constituam obstáculo à tutela processual dos direitos, deverão levar em conta as possibilidades reais e concretas de cada litigante poder demonstrar suas alegações (teoria da carga dinâmica).56
Por último, vale destacar que uma prática discriminatória é um dos mais graves atentados contra a dignidade do ser humano. Diante disso, as graves violações de direitos humanos e do direito de proteção contra a discriminação não permitem aceitar limitações temporais, mormente quando o trabalhador estiver economicamente dependente do empregador ou do contratante de serviços. Ora, os direitos fundamentais são imprescritíveis na medida em que nunca deixam de ser exigíveis, por não serem direitos patrimoniais, mas personalíssimos, sendo sempre exercidos e exercíveis, não havendo intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição.
Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira ressalta que a prescritibilidade de direitos somente alcança os direitos subjetivos patrimoniais de caráter privado, não podendo ser admitidos como prescritíveis os direitos personalíssimos, como a vida, a honra, a liberdade, a integridade física ou moral.57
Várias normas internacionais, das quais o Brasil é signatário, reconhecem a inexistência de prescrição contra diversos atos desumanos, inclusive situações de discriminação ostensiva e sistemática. A Convenção contra os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade faz menção expressa à imprescritibilidade de determinados atos contra a humanidade. No seu art. 1º, §2º, reconhece como imprescritíveis uma série de atos graves contra a pessoa humana, inclusive os atos desumanos resultantes da política do Apartheid.58
8. Considerações Finais
Não cabe dúvida que a aplicação dos novos avanços biogenéticos no campo laboral carecem de uma normatividade específica. Como tantas vezes tem sucedido ao longo da sua história, o Direito do Trabalho, também aqui, deve impor restrições ao livre jogo da concorrência no mercado laboral, vez que o mercado não pode ser livre senão dentro dos limites legais: em nome da dignidade da pessoa humana e da proibição de práticas discriminatórias, a identidade genética do trabalhador não poderá constituir um fator atendível pelo empregador em sede de contratação laboral.
Assentou-se que a revolução genética interpela o Direito em múltiplos domínios, sendo fundamental que o ordenamento jus laboral se posicione pela inadmissibilidade de acesso patronal à informação genética em matéria de emprego, especialmente na fase de formação (pré-contratual) do contrato de trabalho.
Assim, como regra geral, devem-se proibir futuras análises para detectar a doença candidato a um emprego ou trabalhador. Exceções são permitidas, que devem ser guiadas pelos princípios da proporcionalidade (necessidade-adequação), devendo ser a ultima ratio, isto é, devem ser estritamente necessários aos fins que se propõem. Ademais, as exceções, concretamente analisadas, devem estar justificadas para proteger, frente a graves riscos, a saúde do trabalhador e de terceiros, portanto, apenas para determinados tipos de empregos.
Sem pretensão de exaustividade, propuseram-se alguns critérios sobre a proteção da informação genética em geral: a) a informação genética dá lugar a uma exigência de maior proteção legal do que aquela outorgada aos simples registros médicos; b) deverá ser garantido o consentimento livre e informado do empregado; c) deve ser respeitado seu direito em “não saber” ou direito a “ignorância genética”; d) a lei poderá estabelecer exceções, mas desde que para certas e determinadas atividades (proteção à saúde do trabalhador e de terceiros) e desde que respeitado o princípio da proporcionalidade (necessidade-adequação); e) imprescindibilidade de negociação coletiva; f) garantia de segredo dos dados genéticos, já que também contém informações sobre terceiros (familiares) do empregado.
E confirma-se, por fim, o acerto e a atualidade do velho aforismo de Lacordaire, segundo o qual “entre o rico e o pobre e entre o forte e o fraco é a Lei que liberta e a liberdade que oprime”.