Parte II
“…os sábios sabem de tudo, mas não tudo…”
Rosa Cabarcas.[1]
Terminamos a “Parte I” destas digressões falando da constitucionalização do direito e de forma consectária da constitucionalização do direito processual civil.
Trataremos agora do direito de ação no estado constitucional.[2]
Falar em direito de ação é falar de um instituto de natureza constitucional basilar do direito processual; falar em direito de ação é falar em um instituto fundamental da ciência jurídica, e aqui está um detalhe muito importante, a necessidade de concebermos o direito como ciência.[3]
À época do estado liberal, o direito de ação era visto de forma restrita pois servia apenas como direito de pedir à jurisdição a realização do direito material não adimplido.
Vivia-se um momento de neutralidade da ciência processual e de plena dissociação do direito material. Esse distanciamento entre o direito processual e o direito material possibilitou o reconhecimento do direito processual enquanto ciência autônoma ao tempo que demonstrou o quão ineficaz é o processo (meio), apartado do direito material (fim), pois, a inter-relação simbiótica entre ambos mostrou-se como a fórmula mais adequada para a promoção do ideal de justiça.
Não se tinha ainda a ideia da tutela específica até porque não se pensava no processo sob a ótica do direito material e nas formas diferenciadas de tutela para a mais rápida e célere satisfação desse direito material, a busca da anulação do poder do juiz, que tinha sua figura associada à nobreza estatal (um claro opositor à ascensão burguesa), era o combustível para a criação de um procedimento neutro e genérico, que pudesse atender o anseio por uma prestação jurisdicional, independente de sua efetiva realização.
Nessa quadra, consubstanciava-se a regra de se exprimir em dinheiro o valor da lesão, o Estado concebia a transformação do direito em pecúnia e limitava a proteção jurisdicional à tutela pelo equivalente em dinheiro, aceitando que os direitos e as pessoas eram iguais ou admitindo a sua falta de responsabilidade à proteção específica das diferentes posições sociais e das diversas situações de direito material. Afinal, é a investigação do caso concreto[4] que possibilita a busca no direito processual da forma mais adequada para o tratamento do direito material correspondente.
No Estado Constitucional, ao tempo que cabe ao juiz promover a efetiva atuação jurisdicional,[5] cabe ao legislador não claudicar em deixar de criar as mais adequadas técnicas para a tutela diferenciada.
Observe-se que o processo é um sistema policêntrico e polifônico. Lembram do conceito ontológico de processo que abriu a parte I destas digressões? - “…situação jurídica complexa, plurissubjetiva, com sujeitos de posições jurídicas definidas…”
Assim, mostra-se míope a defesa de que, para uma melhora do sistema jurídico, deve haver a procura de uma formação plural (humanística, jurídica, social e econômica) tão somente dos juízes, e não de todos os sujeitos processuais, pois parte-se do equívoco do protagonismo judicial[6] que impede a compreensão da interdependência e do policentrismo processual, que imporia uma comparticipação/cooperação e um reforço da importância e do papel de todos que se apresentam no processo.
Noutrora, o pensamento que conduzia ao protagonismo judicial poderia ser mesmo defensável, eis que os juristas lutavam contra a aplicação liberal do Direito (liberalismo jurídico) que impunha a prevalência dos interesses privados em detrimento dos sociais, no entanto, a defesa do protagonismo judicial como chave e solução de boa parte das mazelas do sistema, após a evolução da ciência jurídica ocorrida no último século, parece no mínimo ingênua pois incompatível com uma perspectiva democrática impondo uma análise segmentada do sistema processual e da atuação de seus sujeitos processuais.[7]
Pois bem, a tutela prestada pelo poder judiciário deve ser verdadeiramente efetiva sob pena de tornar-se um estelionato estatal.[8] A prescrição constitucional de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito deve ser satisfeita e decorre do fato da ordem jurídico-constitucional assegurar aos cidadãos o acesso ao Judiciário numa concepção maior, onde engloba a entrega da prestação jurisdicional da forma mais completa e convincente possível. [9]
E até que ponto se consubstancia os reflexos da efetividade constitucional no processo civil contemporâneo? Ora, se devemos ter uma Constituição efetiva, também devemos ter toda uma legislação infraconstitucional também efetiva, afinal, sempre é bom lembrar que a Constituição Federal serve como um filtro axiológico pelo qual todo o ordenamento deve se submeter, nestes termos, se devemos conceber o direito processual sob o enfoque do direito material e possibilitar a efetiva tutela jurisdicional, é cediço que devam ser criados procedimentos técnicos processuais que concretizem a tutela do direito material ameaçado ou propriamente violado.[10]
Como exemplo de procedimentos diferenciados, temos a tutela específica e a tutela inibitória prevista no art. 497 a 501; 536 e 537 do NCPC.
Notas e Referências:
[1] Importante personagem no enrendo do romance “Memória de minhas putas tristes” de Gabriel Garcia Marquez, descrita pelo autor como “…dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível.” MARQUEZ, Gabriel Garcia. Memória de minhas putas tristes. 25ª ed. São Paulo: Record. 2014. p.8.
[2] Conferir por todos: MARINONI, Luiz Guilherme, Teoria geral do processo, Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014. 522p.
[3] É necessário esclarecer para que não haja “(…) cólera cega em face (…) do mal-entendido” (e aqui me permito sob o fulcro poético do poetinha), que não estou a falar no direito enquanto ciência de moldes cartesianos o que não seria adequado para uma ciência social, mas a revisão de seus parâmetros de ensino e pesquisa fazem-se necessários sob pena de uma transfiguração próxima à ácida, mas não menos verdadeira, crítica feita por Luiz Felipe Pondé: “Há muito sabemos que as ciências sociais são uma das armas mais importantes da canalhice e do niilismo (claro, em seu mau uso). Mas seu pior não é o niilismo mesmo que produz, mas sua afetação moral de se dizer humanista. A falta de espanto nas ciências sociais não é marca de sua objetividade verdadeira, aquela que devemos buscar quando queremos conhecer o mundo, mas de sua falta de objetividade de perceber seu justo lugar no mundo: a de ser produtora de um niilismo “cientificamente” fundamentado.” (In: PONDÉ, Luiz Felipe. A filosofia da adúltera: ensaios selvagens. São Paulo: LeYa, 2013. p. 52.). Sobre a revisão de parâmetros científicos conferir: KUHN, Thomas S. Estrutura das Revoluções Científicas. 12ª ed. São Paulo: Perspectiva. 2013. 324p.
[4] A correta percepção do caso concreto vai muito além da representação fenomênica, pressupõe um compreender para além, algo como o definido por Marcia Schuback: “…compreender não diz agarrar a realidade com esquemas já dados, mas deixar-se tomar pelo que faz a compreensão buscar compreender…” (SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. “A perplexidade da presença.” in HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 17.)
[5] Não se concebe mais a atuação de qualquer agente público nos moldes Dostoiévskianos do “homem do subsolo”, este representado pelo homem de consciência hipertrofiada mas inerte, um homem que não se mostra proativo mas apático, tolhido de ação, um homem de retorta, de proveta, um homem de existência antitética que se reconhece atado no abismo existente entre sua intenção e gesto, que a si mesmo se considera, com toda sua consciência hipertrofiada, um camundongo e não um homem, ou nas palavras de Dostoiévski: “(…) um camundongo de consciência hipertrofiada, mas sempre um camundongo(…)” (In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. 6ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 22.); Para aprofundamento na matéria recomendo a leitura de: BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. 341p.; NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014. p. 160-172.; PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia – a filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: LeYa. 2013. p. 229-243.
[6] Não se exige do magistrado o “exclusivo protagonismo” que não lhe compete, mas a efetiva atuação que lhe é legalmente atribuída no policêntrico protagonismo processual.
[7] Conferir por todos a imprescindível obra: THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. 424p.
[8] Há muito Marcelo Neves vem denunciando a “legislação-álibi”, ou seja, aquela decorrente da tentativa de dar a aparência de uma solução dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador. Através dela o legislador procura descarregar-se de pressões políticas e/ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos. (In: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica. 1994. p. 37-40.)
[9]RE 158.655, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02/05/97.
[10] “Querer que o processo seja efetivo é querer que desempenhe com eficiência o papel que lhe compete na economia do ordenamento jurídico. Visto que esse papel é instrumental em relação ao direito substantivo, também se costuma falar da instrumentalidade do processo. Uma noção conecta-se com a outra e por assim dizer a implica. Qualquer instrumento será bom na medida em que sirva de modo prestimoso à consecução dos fins da obra a que se ordena; em outras palavras, na medida em que seja efetivo. Vale dizer: será efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material.” (In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo.” in São Paulo, v.27, n.105, p. 183-190, jan./mar. 2002, p. 181.)