5. Princípio da Autonomia da Vontade: Antigo Fundamento do Direito Privado.
Sendo o direito público umbilicalmente ligado à existência do Estado, o direito privado encontra sua primeira condição de existência numa espécie de Estado, a saber: o Estado capitalista.
Numa primeira análise, tal assertiva parece incompatível com a evolução histórico-jurídica da sociedade humana, pois o capitalismo surge, como ideologia econômica, por volta dos séculos XVI e XVII.
No entanto, volvendo o nosso olhar para os períodos que antecedem tais limites, ver-se-á que a sociedade humana sempre se organizou pelo modo capitalista, como seja, sempre reconheceu aos homens o direito de propriedade, a liberdade de contrato, a livre disposição da propriedade (os conhecidos ius utendi, fruendi, abutendi e reivindicatio do direito romano), sendo o exercício da mercancia um dos mais antigos labores do homem. Com efeito, não se pode falar em sistema capitalista de produção (não nos referimos ao capitalismo moderno, mas sim ao exercício de atos de troca, venda e compra de bens e serviços com o objetivo de lucro) sem que ao homem seja reconhecido o direito de propriedade.
Pois bem. Num Estado de economia planificada (socialista) é impossível se falar em livre disposição de propriedade, pois esta, deveras, não existe. Todos os meios de produção pertencem ao Estado, que os administra sob os programas "em nome e em benefício da classe trabalhadora".
Neste sentido, colha-se o exemplo da República de Cuba:
Artigo 1. Cuba é um Estado socialista de trabalhadores, independente e soberano, organizado com todos e para o bem de todos, como república unitária e democrática, para o desfrute da liberdade política, a justiça social, o bem-estar individual e coletivo e a solidariedade humana.
[...]
Artigo 9. O Estado:
a-realiza a vontade do povo trabalhador e
- processo os esforços da nação na construção do socialismo;
- mantém e defende a integridade e a soberania da pátria;
- garante a liberdade e a dignidade plena do homem, o desfrute de seus direitos, o exercício e cumprimento de seus deveres e o desenvolvimento integral de sua personalidade;
- afiança a ideologia e as normas de convivência e de conduta próprias da sociedade livre da exploração do homem pelo homem;
- protege o trabalho criador do povo e a propriedade e a riqueza da nação socialista;
- dirige planificadamente a economia nacional;
- assegura o avanço educacional, científico, técnico e cultural do país;
[...]
Artigo 11. O Estado exerce sua soberania:
a)sobre todo o território nacional, integrado pela Ilha de Cuba, a Ilha da Juventude, as demais ilhas e ilhotas adjacentes, as águas interiores e o mar territorial na extensão que fixada pela lei e o espaço aéreo que sobre estes se estende;
b)sobre o meio ambiente e os recursos naturais do país;
c)sobre os recursos naturais, tanto vivos como não-vivos, na extensão fixada pela lei, em conformidade com a prática internacional.
A República de Cuba repudia e considera ilegais e nulos os tratados, pactos e concessões pactuados em condições de desigualdade ou que desconheçam ou diminuam sua soberania e sua integridade territorial.
Verifica-se sem muito esforço que o princípio da autonomia da vontade não encontra guarida no sistema socialista cubano, na medida em que: a) a economia é planificada, como seja, os meios de produção econômica estão em mãos do Estado; b) os bens materiais e imateriais pertencem ao Estado Cubano; c) encontra-se vedada à ocorrência da exploração econômica em mãos do particular, pois tal demandaria "la exploración del hombre por el hombre".
Assim, somente se há de falar em princípio da autonomia da vontade frente a um ordenamento jurídico que se constitua em estado de produção capitalista, ou seja, aquele que assegura a plena liberdade de produção econômica nas mãos do particular, tendo como paradigma primeiro o reconhecimento do direito de propriedade, na medida em que o direito privado tem como exclusividade o patrimonialismo.
Eis o que a respeito ensinou Clóvis Bevilaqua, em seu "Direito das Obrigações":
Tomemos o conselho do mestre, de methaphysica non sis solicitus, e volvamos a vista para outros horizontes. STUART MILL nos dará a chave do enigma julgado insoluvel. Não ha outro fundamento asssignalavel á obrigação, garante-nos elle, senão as funestas consequencias da falta de fé e da ausencia de confiança mutua entre os homens. Por outros termos, é o interesse da sociedade, harmonizando-se com o dos indivíduos o fundamento ultimo das obrigações. E, com o glorioso publicista e philosopho inglez, se mostram de accordo d’AGUANO, PIETRO COGLIOLO e GABRIEL TARDE. Apreciem-se os fatos, em rapida analyse embora, e ter-se-á tirado a prova real desta theoria. É o interesse de cada que o induz a realizar compras, vendas, empréstimos, locações, e é porque essa vantagem se torna ponto de convergencia de muitos interesses que é possivel a realização desses actos. Sem tal convergencia, o egoísmo de cada individuo agitar-se-ia no vacuo, impotente, inutil. Verificada ella, porém, como a sociedade tem o maximo interesse na produção dessa troca de serviços, na combinação desses esforços, nessa divisão do trabalho, presidida e guiada pela teleologia social, intervem pelo orgão do poder publico e pelo da opinião dominante, para tornar effectivos e producentes actos, de que dependem, evidentemente, a sua vida e cultura, e pela qualidade dos quaes se póde aferir a sua opulência. (sic)
O Brasil, como se verifica dos seguintes dispositivos da Lei Maior de 1988 abaixo citados, adotou o sistema capitalista de produção. Não no modo preconizado pelo liberalismo do século XVIII, mas sim um capitalismo em que a produção econômica tem por escopo a promoção do bem comum, por meio da circulação e distribuição das riquezas:
Artigo 1º [...]:
[...]
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
[...].
Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
[...]
XXII – é garantido o direito de propriedade;
[...]
XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissíveis aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
[...]
XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industrias privilégios temporários para sua utilização, com como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes das empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;
XXX – é garantido o direito de herança;
[...]
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
[...]
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
[...]
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
[...]
Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
II – propriedade privada;
[...]
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
[...].
Com efeito, logo no primeiro dispositivo constitucional (artigo 1º, inciso IV), o constituinte deixou transparecer claramente a sua opção pela forma capitalista de produção, pois a junção dos "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" num mesmo dispositivo, indica, em último grau, a plena liberdade de exploração da economia pelo particular, sem que o Estado nela intervenha, à exclusão dos casos em que a própria Constituição o permita (artigo 173).
No entanto, não se pode perder de vista que tal enunciado não se reduz à mera afirmação do modo capitalista individualista, mas num capitalismo em que tanto o individualismo como o coletivismo (v.g. cooperativas) encontra plena liberdade para atuar.
Neste sentido, eis o que ensina o Professor Eros Roberto Grau:
Dir-se-á, contudo, que o princípio, enquanto fundamento da ordem econômica, a tanto se reduz [à confirmação do modo capitalista de produção]. Aqui também, no entanto, isso não ocorre. Ou – dizendo-se de modo preciso -: livre iniciativa não se resume, aí, a "princípio básico do liberalismo econômico" ou a "liberdade de desenvolvimento da empresa" apenas – à liberdade única do comércio, pois. Em outros termos: não se pode visualizar no princípio tão-somente uma afirmação do capitalismo. Insisto em que a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa. Pois é certo que ela abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas [...].
Na mesma direção segue a lição de Washington Peluso Albino de Souza:
Temos, portanto, o sentido de "liberdade econômica" diferenciado de "liberdade" em geral, que nas Constituições liberais era assegurado sem restrições. Nelas ficaram configurados, portanto, os princípios do liberalismo capitalista, enquanto nas posteriores o seu condicionamento se fez ligado à "existência digna", em visão social mais ampla. Valorizando a liberdade individual que os dispositivos liberais consideravam uma seqüência natural do funcionamento social, adicionava-lhe a conotação econômica em sede de cogitação constitucional, para que jamais pudesse vir a ser comprometida por falta desse embasamento.
De modo que, cotejando-se as duas lições acima verbalizadas, podemos concluir que: a) o princípio da autonomia da vontade é uma norma que somente tem existência num ordenamento jurídico ideologicamente optante pelo modo de produção capitalista, onde o direito de propriedade é assegurado por técnicas oportunas de proteção a este direito, b) no Brasil, o constituinte optou por tal modelo, encontrado, portanto, o princípio da autonomia da vontade fundamento de ordem constitucional-ideológico, pois, são as normas de "Direito Privado as que consistem em relações econômica, qualquer que seja a natureza dos interesses, particulares ou gerais, que envolvam e qualquer que seja a natureza, privada ou pública, do sujeito agente".
Mas o que vem a ser, no final das contas, o princípio da autonomia da vontade? Qual o seu conteúdo normativo a servir de fundamento ao direito privado?
O Código Civil de 1916, em seu artigo 1º, prescreve que "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil"; por seu turno, o Código Civil de 2002, quem entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, em seu artigo 2º, prescreve: "Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil".
Os dois dispositivos, ao fazerem alusão à capacidade do homem de exercer direitos e suportar obrigações, têm como fundamento, no plano jurídico, a liberdade de atuação conforme a lei, segundo o princípio "tudo o que não é vedado, é permitido". Já no plano filosófico, têm como fundamento o livre arbítrio, segundo o qual, todos os homens têm a capacidade moral de optarem entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o ético e o imoral...
A toda evidência, então, que a expressão "autonomia da vontade" expressa a existência de duas formas de exercício da liberdade, a saber: a liberdade-autonomia, como seja, aquela liberdade que não encontra obstáculo ao seu exercício, no caso, a existência de uma lei proibitiva ou mandamental, que seriam as cláusulas de vedação ao facere ou non facere, e a liberdade-escolha, pois somente quem é livre pode optar, escolher, sendo que a vontade se exercita em face daquilo que é externo ao homem e lhe é posto à apreciação. A pessoa livre pode escolher entre comprar ou não comprar, casar-se ou não se casar, residir neste ou naquele local. Já a pessoa que não tem liberdade de escolha, como é o caso do absolutamente incapaz, ou mesmo dos escravos, como no-lo afirma a história, não se lhe dá a opção de compra, de matrimônio ou de domicílio. Autonomia da vontade, assim, é a conjuminação entre liberdade-autonomia e liberdade-escolha.
Com efeito, é o livre arbítrio o fundamento filosófico do liberalismo, na medida em que ao homem é reconhecida a capacidade de escolha entre os caminhos que pretenda trilhar. Não cabe neste momento, evidentemente, discorrer-se sobre o livre arbítrio sob os mais variados matizes filosóficos ou teológicos, bastando lembrar que para o calvinismo, com a queda adâmica, o homem maculou o livre arbítrio com o gene do pecado. Todas as suas escolhas, a partir de então, estarão contaminadas pela opção daquilo que satisfaça as suas concupiscências, pois o seu caráter foi irremediavelmente transformado pelo pecado, que lhe passou a ser natural.
Tendo, pois, o direito privado por finalidade as relações econômicas entre os homens, evidentemente que o princípio da autonomia da vontade é o fundamento do principal instrumento de vinculação, a saber, o contrato. Orlando Gomes, acerca do tema, disse o seguinte:
A liberdade civil encontrava campo para expandir-se ao se exprimir juridicamente no contexto da autonomia privada. Garante-se a liberdade de contratar, para que os homens possam vincular-se suscitando os direitos e obrigações que entenderem convenientes a seus interesses. (grifos no original)
E a liberdade contratual, segundo aponta o mesmo doutrinador, se manifesta de três modos: a) liberdade de celebrar contrato, b) liberdade de escolher o outro contratante, e c) liberdade de determinar o conteúdo do contrato, todas elas fundamentadas na autonomia da vontade.
Note-se que a vontade, por haurir fundamento na própria liberdade moral e jurídica do homem, e sendo esta um direito inviolável da pessoa humana, ao lado do direito à vida, é o principal elemento do ato jurídico.
Assim, a doutrina é consentânea em afirmar que, para além daqueles elementos veiculados no artigo 82 do CC/1916, ou no artigo 104 do CC/2002, existe aquele imanente, que flui do sistema privatístico, a saber: a vontade livre e desimpedida.
Por isso que, quando a vontade é viciada, o ato jurídico é anulável, com eficácia ex nunc, quando inexistente, nulo, com eficácia ex tunc.
Evidentemente que a própria modificação da razão jurídica tendeu a minorar os efeitos do princípio da autonomia da vontade, na medida em que a este se dava o caráter de sacralidade, como o deixa ver o princípio da "pacta sunct servanda", segundo o disposto no artigo 1.134 do Código Civil francês: "[...] as convenções legalmente formadas têm o valor das leis para aqueles que a fizeram". Contudo, o intervencionismo do estado na economia, o dirigismo contratual, a necessidade de se frear o abuso do poder econômico, a necessidade de se adequar o exercício da propriedade aos limites do razoável e do socialmente útil, tenderam, no século XX a minorar a eficácia do princípio da autonomia da vontade em suas mais variadas manifestações, o que resultou excelente para a própria afirmação do direito como fator de ordenação social. Assim, nos dias que correm, em certos temas do direito privado parece-nos vigorar, em substituição àquele já mencionado, o princípio da autonomia da vontade regrada.