A concepção de justiça nos mitos Da caverna e de Er:
“O maior saber é a ideia do Bem (agathón), através da qual o que é justo e tudo o mais, que gira em torno disso, torna-se útil (chresimón) e conveniente (ophelimós)”.
O tema da justiça em Platão não é tratado de um ponto de vista jurídico, mas de um ponto de vista ontológico. E como em Platão “às ideias de ética e de virtude liga-se diretamente a ideia de conhecimento como algo necessário” (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 133), é em termos de uma teoria do conhecimento platônico que se pode perceber o mito da Caverna e o mito de Er como complementares entre si, ao primeiro correspondendo uma noção distributiva de justiça e ao segundo correspondendo uma noção retributiva de justiça. Os dois mitos são articulados em torno de quatro momentos. Na alegoria da caverna, (I) o homem aprisionado na caverna subterrânea, imerso em sombras às quais confunde com a realidade; (II) a longa ascese purificadora; (III) a libertação, propriamente, do homem para a luz, finalmente compreendendo o seu passado de sombras e como consequência delas se libertando e (IV) o retorno ao interior da caverna, portando o conhecimento da verdade. Nota-se que na alegoria da caverna a teoria do conhecimento platônico deixa em aberto uma questão: se o homem jamais havia visto a verdade, como poderia saber que a verdade é verdadeira? Como, em consequência, distinguiria o justo verdadeiro do justo falso? Este problema epistemológico Platão resolve com o mito de Er, também articulado a quatro momentos: (I) a morte de Er, (II) a experiência pós-morte no Hades, (III) o testemunho da justiça divina e a concessão para lembrar e (IV) o retorno à vida para contar aos circunstantes o que tinha testemunhado. O mito de Er, com o qual Platão formula a teoria da reminiscência, resolve a questão da verdade remetendo-a a um plano ontológico: a verdade está no ser e decorre de uma vida anterior vivida em outro tempo e em outro lugar – no mundo das almas. Abrem-se, portanto, dois planos para a justiça platônica: um plano pessoal, dizendo respeito ao interior do homem (sair da caverna, aprender a luz), e um plano político, dizendo respeito à vida em sociedade. No primeiro plano a justiça dirá respeito à submissão dos instintos à razão, enquanto no segundo plano a justiça buscará construir o bem comum a partir da repartição de funções conforme a virtude de cada tipo de homem e segundo a dotação de sua natureza. Neste plano político o justo, para Platão, é o bem comum da pólis. E há ainda um segundo duplo na noção de justiça expressa na cosmovisão platônica do mito de Er:
Existe, para além da ineficaz e relativa justiça humana (a mesma que condenou Sócrates à morte!), uma justiça, infalível e absoluta, que governa o kósmos, e da qual não se pode furtar qualquer infrator. A justiça não pode ser tratada unicamente do ponto de vista humano, terreno e transitório; a justiça é questão metafísica, e possui raízes no Hades (além-vida), onde a doutrina da paga (pena pelo mal; recompensa pelo bem) vige como forma de justiça universal (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 136).
Restaria ainda explicar a atribuição de uma justiça “distributiva” à alegoria da caverna e “retributiva” à teoria da reminiscência. Com esta explicação se procurará responder à última parte proposta pela questão que é justamente articular a noção de justiça à passagem de cada mito. A mim me parece que a justiça distributiva dá-se, na alegoria da caverna, na terceira parte, correspondente à ascese, ao sofrimento que é exigido dos que querem se libertar da luz. Recebe-se a justiça na exata proporção em que, virtuosamente, nos libertamos, dolorosamente, do mundo sensível, libertando-nos também das trevas; No mito de Er, a noção de justiça platônica se confaz também no terceiro momento, quando é dado a Er o direito de testemunhar a justiça divina. Aprende-se que a justiça é uma retribuição – daí retributiva – a escolhas autônomas que fizemos frente às três Moiras.
A concepção de justiça aristotélica em “Ética a Nicômaco”:
“Recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do juiz é ser uma espécie de justiça animada”
No livro V de “Ética a Nicômaco” Aristóteles expõe sua complexa concepção de justiça. Citando Eurípedes, o autor diz que “na justiça estão compreendidas todas as virtudes” (1130, a - 5), complementarmente afirmando que “a justiça não é parte da virtude, mas a virtude inteira; nem é seu contrário, a injustiça, parte do vício, mas o vício inteiro” (1130, b). Aristóteles concebe a justiça, portanto, como: a) um ethos, um costume reto, um hábito; b) uma virtude; c) um justo meio entre o excesso e a falta; c) um saber prático, que pode ser ensinado e aprendido.
A partir dessas premissas Aristóteles distingue o Justo Total, que é o respeito às leis da cidade, de modo que seja garantido o primado do coletivo sobre o individual, e o Justo Particular, que pode ser (I) Distributivo, (II) Corretivo e (III) Da reciprocidade. A justiça particular distributiva é caracterizada pela subordinação (predomínio do interesse público), pela proporcionalidade e pelo mérito. Esta justiça leva em conta o contexto social, de modo que seja possível tratar a igualdade na igualdade e a diferença na diferença, como se depreende da afirmação de que “se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais” (1132, b). Para esta justiça particular distributiva Aristóteles atribui importância central à proporcionalidade na apuração do justo e do injusto:
Eis aí, pois, o que é o justo: o proporcional; e o injusto é o que viola a proporção. Desse modo, um dos termos torna-se grande demais e o outro demasiado pequeno, como realmente acontece na prática; porque o homem que age injustamente tem excesso e o que é injustamente tratado tem demasiado pouco do que é bom. No caso do mal verifica-se o inverso, pois o menor mal é considerado um bem em comparação com o mal maior, visto que o primeiro é escolhido de preferência ao segundo, e o que é digno de escolha é bom, e de duas coisas a mais digna de escolha é um bem maior. Essa é, por conseguinte, uma das espécies do justo (1132, a).
A Justiça Particular Corretiva, por sua vez, é caracterizada por pressupor entes iguais e não fazer apreciação subjetiva. Ela é aritmética e formal e pode ser de dois tipos: Voluntária, quando há o estabelecimento de um liame jurídico autônomo, desejado pelas partes, e Involuntária, quando o liame jurídico é estabelecido coercitivamente. Para o tipo voluntário Aristóteles apresenta o exemplo do contrato entre partes, enquanto para o tipo involuntário exemplifica com o direito penal.
A justiça particular da reciprocidade, o mais complexo dos tipos de justiça formulados por Aristóteles, diz respeito a trocas (escambo) que são feitas à base da proporção e não da retribuição. É a propósito desta justiça da reciprocidade que Aristóteles situa a questão do justo legal (nomos) e do justo natural (physis). Com a justiça particular da reciprocidade Aristóteles abriu uma clareira para que, séculos depois, Marx formulasse o conceito de mais-valia. Em que pese a dificuldade de compreensão do que vem a ser esta reciprocidade, é provável que o excerto a seguir seja esclarecedor:
Com efeito, não são dois médicos que se associam para troca, mas um médico e um agricultor, e, de modo geral, pessoas diferentes e desiguais; mas essas pessoas devem ser igualadas. Eis aí por que todas as coisas que são objetos de troca devem ser comparáveis de um modo ou de outro. Foi para esse fim que se introduziu o dinheiro, o qual se torna, em certo sentido, um meio-termo, visto que mede todas as coisas e, por conseguinte, também o excesso e a falta — quantos pares de sapatos são iguais a uma casa ou a uma determinada quantidade de alimento (1133, b).
Por fim, na concepção de justiça aristotélica está contemplada a questão da equidade, a qual diz respeito à justiça no caso concreto. Com a equidade Aristóteles resolveu o problema decorrente da dificuldade de tomar leis gerais e aplicá-las aos casos concretos. Para ele esta dificuldade de aplicar o abstrato ao concreto se resolve com a equidade, a qual serviria para atenuar os rigores da lei quando a falta, no caso concreto assim o exigisse, como no exemplo do furto fomélico.
Em linhas muito gerais esta é a concepção de justiça constante do Livro V de “Ética a Nicômaco”.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. — 4. ed. — São Paulo : Nova Cultural, 1991. — (Os pensadores v. 2)
BITTAR, E. C. B; ALMEIDA, G. A. de. Curso de Filosofia do Direito. 11ed. São Paulo: Atlas, 2015.
PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997.