O FALSO APRENDIZADO QUE NOS ENGANA
Se alguém quiser saber o que é o Direito talvez seja bom não perguntar a quem tenha o prestígio de grande jurista. Pessoas de grande prestígio não gostam de perguntas simples, muito menos de respostas diretas.
Quem precisar conhecer a origem ou as circunstâncias que determinaram os principais institutos jurídicos, que servem de matriz para os demais e constituem a base do sistema, não deverá indagar para os especialistas das áreas que seguem a metódica causativa, como antropólogos, sociólogos, psicanalistas, psicólogos sociais ou etnólogos. Tanto mais quando estejam na moda ou sirvam de referência como “especialistas”, o que é corrente em nossos dias, tão povoados pelas aparições nos meios de massa que dão acolhimento a opiniões temerárias logo vertidas em sites e blogs. As pessoas desse grupo gostam de performances, versatilidade, viés interpretativo, desempenho interventivo, cortes epistemológicos e, não menos importante, fulguração e brilho de raciocínio, capazes de firmar uma celebridade intelectual tanto quanto os expoentes do mundo pop.
Quem precisa aprender sempre, porque as figuras construídas pelo Direito mudam (sem que necessariamente se aperfeiçoem), desista de encontrar a resposta na sistemática de ensino do próprio Direito, ou seja, através da imersão no chamado de dogmatismo jurídico. Como observou Tobias Barreto, indagar sobre os fundamentos jurídicos da pena é o mesmo que indagar sobre os fundamentos jurídicos da guerra... Se eles existem, são remotos, nada determinantes e, em alguns casos, até esotéricos.
No entanto, há grandes juristas que assim são considerados não pela sua consagração, pompa, por integrar academias ou pela capacidade ímpar de produzir alfarrábios em coleções tão vastas que humilham a Summa Theologica pois afinal, apesar da massa de doutrina que ela contém advogando a causa de Deus em suas milhares de páginas, Santo Tomás de Aquino não a concluiu... E, sem conclusão, a Teologia como o Direito não cumprem função alguma, ou pelo menos a de alcançar algum fim.
Ao contrário de despejar no mundo copiosos comentários, eles próprios cheios de glosas e notas de rodapé, o prestígio dos verdadeiros juristas referenciais vem da permanência de suas descobertas, da originalidade de seu pensamento e da antecipação das suas criações em relação ao tempo em que viveram, das observações novas que fizeram e das interpretações mais completas que nos legaram, que se mostram – ao longo do tempo – insubstituíveis. De tal modo que, em relação a eles – e só a eles – o conhecimento posterior torna-se cumulativo, não substitutivo.
Se há algo estranho ao Direito, tanto quanto nocivo, é a rusticidade no trato de situações, de modo que muitas delas passem a ser tidas como equivalentes, e assim sua especificidade é ocultada. Tudo no fundo se parece e o que importa é fazer uma designação que agrupe a ordem dos fatos, pois afinal o Direito não tem os encargos da Biologia e da Botânica de elaborar uma classificação completa, ao estilo de Lineu. Porém, tal procedimento obriga a um retorno para antes da Fenomenologia do Espírito de Hegel, que é de 1807, pois nega o conteúdo fenomenológico das observações que o Direito tem de entender e depois reger – ou seja, recusa o contexto de situação no sentido etimológico mais rigoroso - pois formam o objeto da sua atuação.
Grandes juristas autênticos não negam fatos complexos, nem dão continuidade a exegeses prolixas, delirantes, em que a palavra toma conta do intérprete e o guia como se fosse uma pandorga, brinquedo prodigioso para expandir a imaginação, mas incapaz de fixar outra orientação que não seja a do vento. Eles mergulham nas insuficiências do Direito, seus fracassos, como bem lembrou Léon Duguit, que tanto desenvolveu a noção de anomia , trazendo-a para a nomenclatura jurídica, quando verificou que já no seu tempo o nome de figuras ou institutos jurídicos havia perdido o sentido que um dia tinha sido identificado em relações sociais determinadas, a que se referiam, e não era mais possível esperar que o “inominado” pudesse reger novas situações inegavelmente visíveis e às vezes prementes.
Assim, a palavra anomia, colhida nos trabalhos sociológicos de Émile Durkheim, mostrou-se necessária ao estudo jurídico, desde que ela acolhia a perspectiva da fenomenologia. É preciso humildade para ser um grande jurista autêntico. Também é preciso recorrer às ciências que têm na descoberta de fenômenos ainda ignorados a glória de enfim conhecê-los e de explicar o nexo de suas causas e efeitos. Recentemente, ainda em vida do seu formulador, experiências no grande acelerador de partículas CERN começaram a demonstrar a existência do Bóson de Higgs, que havia sido concebido teoricamente há cinquenta anos, em 1964. Nosso maior físico, César Lattes, também teve a ventura de comprovar ainda moço a existência do méson-pi, com possibilidade de sua verificação como fenômeno perceptível, no processo de fissão nuclear. Com igual propósito de descoberta e explicação, foram apropriados termos como entropia (desorganização dos elementos da matéria após produzia a sua energia, segundo a Física) e distopia (palavra colhida por John Stuart Mill na medicina, como sendo a má localização de um órgão do corpo). Este último termo ganhou, na Política e no Direito, o sentido de desgoverno, de coisas fora do lugar, de impossibilidade de reconhecer alguma ordem, de alcançar os propósitos de identificação cidadã e até mesmo de conceber a possibilidade, remota embora, de uma utopia.
Com todo esse trabalho exitoso, que permite a reconstrução do Direito com base em novos conhecimentos e definições, ainda predomina a doutrina da imanência, de uma dogmática que atende a pressupostos, e que explica o fenômeno jurídico a partir de sentidos ontológicos que o próprio Direito atribui. Essa visão conceitual, em resumo, responde pelo nome de positivismo jurídico, que nada mais é do que uma concepção atributiva da realidade segundo regras tidas como científicas, mas que na verdade não passam de uma metodologia que ordena o Direito apenas como uma superestrutura. Ante essa rocha epistemológica, essa muralha tal qual a de Jericó, o pós-positivismo quer demoli-la com o toque de trombetas, poupando o exército de Josué dos embates diretos, conforme narram as escrituras. O pós-positivismo agrupa tendências desconexas, como o Direito Alternativo (cuja voga acabou sem que tenha sido configurada alguma teoria que o justificasse) e o neo-constitucionalismo, um belo passeio diletante sobre todas as possibilidades garantidoras de uma Carta Magna, as reais e as supostas, incluindo-se dentre estas as presumidas e as virtuais. “Sejamos francos”, diria um observador que resiste à anomia identificada por Duguit, “o pós-positivismo é apenas uma das múltiplas correlações da pós-modernidade”. E esta, desde que o filósofo francês Jean-François Lyotard lhe atribuiu o nome em 1979, até o sociólogo polonês da “realidade líquida”, Zygmunt Bauman, vaga ainda atrás de um perfil identificador que, por definição, talvez nunca tenha, pois sua matéria é o tempo fluido, um intervalo entre o que se foi e o que virá.
Não será despropositado concluir que um grande enfado é o resultado necessário de um estudo direcionado pelos padrões ortodoxos da “ciência” jurídica (seria demais esperar que os ortodoxos reconhecessem que o Direito não é uma ciência, pois carece da possibilidade da experimentação comprobatória de uma teoria, mas que é uma área importante do conhecimento normativo quando bem se utiliza da metodologia científica). Até parece que o Licenciado Vidriera levantou-se das páginas de Cervantes e veio a ter com os habitantes da Terra no Século XXI, para dizer-lhes que, a exemplo dele, o conhecimento formal paralisa a experiência pessoal dentro do processo histórico, não considera os grandes movimentos de transformação, suas causas e formas, mas busca uma permanência definitiva que – no caso do personagem – “vitrificou” o pobre acadêmico, tornando-o incapaz de agir, sob o risco de quebrar-se.
O REAL APRENDIZADO QUE NOS ENSINA
Onde está então aquele fio condutor, o barbante que foi desenrolado desde a entrada e permitiu a Teseu sair do labirinto, depois de defrontar com o Minotauro e vencê-lo?
Está na confrontação da ordem que se ampara nessa Catedral de papel que foi erguida pelos doutos; está no enfrentamento de seus frequentadores, usuários, dos que ali veem a sede da sua fé e, como desde o início dos tempos, dos que defronte proveitosamente mercadejam os seus negócios.
Há uma indisfarçável realidade que brota de manifestações populares, situações correntes de desobediência civil, invasões de prédios públicos, bloqueio de estradas, rebeliões em presídios e casas de internação de menores, guetos de drogados, grupos crescentes de moradores de rua e sem teto que vagam sem rumo atrás de uma sobrevivência oportunista e provisória nas grandes cidades; tudo isso vai muito além do ocasional, de uma conjuntura desfavorável ou da falta de políticas da administração pública, pois ela própria – em sucessão aleatória - abriga tanto a ordem como a desordem interna. Espaços públicos como ruas, estradas, aeroportos, estações rodoviárias, praças em cidades de qualquer porte têm uso restrito, já que abrigam clientelas que impõem a sua “ocupação”. Todos esses fenômenos já ganharam o cotidiano e implicam um verdadeiro “check in” para que autoridades ou instituições possam de algum modo operar. O apelo crescente ao exercício do poder de polícia, à fiscalização, à repressão criminal, ao policiamento ostensivo cria uma dependência social de uma espécie de onipresença tutelar e contém em si mesmo a consequência de exigir um verdadeiro exército paralelo de contenção. A sociedade contemporânea perde todos os dias o caráter de praça de reunião, a ágora dos gregos, ou o caminho do forum dos romanos.
A título de atualização, como a maré montante dessas pressões que encontram respostas paliativas parece invencível, pois o quadro já é crônico, os “juristas da Catedral” reescrevem o Código de Processo Civil, modificam o Código Penal criando ou agrupando situações mal definidas e que dificultam a tipificação, informatizam os processos, editam abundantemente novos comentários, divulgam teorias de grandes juristas alemães, de preferência, mas esquecem uma recomendação do senso comum: não tente explicar tudo isso a um alemão.
Nos dias correntes, por exemplo, a respeitada agência de notícias BBC divulga que iniciou o julgamento de um antigo integrante da SS nazista, hoje com 93 anos, que era conhecido como o “contador de Auschwitz”, pois cumpria tarefas não ligadas diretamente ao extermínio, mas registrava os bens confiscados, os nomes e a classificação dos executados. Oskar Groening deu esta declaração ao juri: “Peço perdão. Eu compartilho moralmente a culpa, mas se eu sou culpado de acordo com o direito penal é uma decisão de vocês.”
Em nosso país, onde os “juristas da Catedral” não conseguem se entender sobre as regras de responsabilidade por crimes políticos e de opinião, nem admitir com a mínima franqueza (tal como fez o já muito idoso carcereiro de Auschwitz) que eles foram despropositados, falseados, negados através de sucessivas farsas, e que em ordem jurídica nenhuma, em nenhum país e em qualquer tempo, os criminosos podem ficar impunes e ainda gozar benefícios por serviços prestados à repressão política.
A lei da anistia não vem sendo interpretada em conformidade com a Constituição vigente, que lhe é posterior. Os gastos públicos nem sempre servem para atender as reivindicações que peregrinam nas ruas e locais invadidos, pois são diluídos através de regras regimentais no Poder Judiciário, no Ministério Público e no Congresso, através de resoluções administrativas, de modo que o preceito da lei, como fonte autorizadora, não tem mais vigência prática. Essa desordem na hierarquia das fontes formais do Direito tornou possível que o fato processual com maior destaque no Brasil – nos mesmos dias em que o “contador de Auschwitz” admitia sua culpa inexpiável – tenha sido o ingresso de um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça escrito em folha de papel higiênico, acontecimento que pareceu tão importante a ponto de ser divulgado com destaque pela assessoria de imprensa do próprio tribunal, que fotografou a peça e informou que “o documento entrará para o acervo do Museu do STJ”. Afinal, trata-se do “Tribunal da Cidadania”...
Enquanto isso, inexiste explicação plausível para que os autores do atentado ao Riocentro não tenham sequer sido investigados depois do término do regime militar e continuem soltos, sendo desconsiderado que, por ocasião do episódio (30 de abril de 1981), já havia sido editada a lei da anistia, portanto seu efeito de esquecimento estava exaurido, e que a Constituição de 1988 estabeleceu ser o crime de terrorismo imprescritível. Assim, os “juristas da Catedral” conseguiram a proeza de validar o IPM elaborado pelo general Job Lorena de Sant’Anna, bem como o julgamento farsesco do STM, quando ambos passaram à História como engodo e escárnio, mas sobretudo – para os fins aqui expostos – como anomia, entropia e distopia no mundo do Direito.
UM “INTERMEZZO” NECESSÁRIO
A análise teórica do Direito no Brasil, com base em pressupostos metodológicos dessa área de conhecimento, sem o exame de dados históricos e enfrentamento de realidades jacentes, está paralisada entre nós. Não é possível o saber diante do “não-saber”, que resulta da formidável massa de formas que lembram os rituais das sociedades primitivas, nas quais a devoção totêmica era inquestionável, assim como as liturgias, exorcismos e legitimação dos xamãs, mas onde o verdadeiro conhecimento da “physis” e da “psyché” era impossível. Assim o Direito esmorece.
O recomeço, o barbante de Teseu, é o único acesso para sair do labirinto de ideias confusas, de teorias levianas, de sistemas herméticos e, sobretudo, consiste numa ruptura com o saber bacharelesco que já foi cultivado demais em nosso país, e hoje só serve a grupos de interesse quando operam uma formidável máquina de reproduzir situações que não podem mais ser reparatórias, mas se mostram úteis para contaminar o mundo jurídico com o espírito de negócio. As publicações intermináveis de versões e opiniões mal formadas, a reprodução de dados que são cópia do que já foi copiado, a infinidade de cursos que já ensinam errado e não têm o foco na descoberta da verdade, a “indústria” dos concursos e exames de habilitação (inclusive os da OAB), a multiplicação de pós-graduações e pós-doutorados, tudo isso virou um grande negócio que pouco tem a ver com o aperfeiçoamento ou a aplicação do Direito. E muito menos com a integração da marginalidade crescente, com a massa ativa de descontentes, constituída de cidadãos apenas formais cuja ira de hoje é a filha rebelde do lamento antigo e submisso do miserere me.
O conhecimento jurídico entre nós alcançou um limite que precisa ser superado, um in extremis que não resulta de nenhuma fatalidade, mas não pode mais ser prolongado. É preciso definir o que é conceitual frente ao que é instrumental; o que é estruturante verso o que é interventivo; o que se define como aquisição do conhecimento e o que se afirma como operativo (como práxis); o que é institucional e o que é legitimador e, por fim, o que se exerce como poder e o que se deve assegurar como garantia. O encontro com esses temas não pode acontecer na Catedral de papel.
Assim sendo, no propósito da retomada, este estudo encerra com a apresentação de um exemplo tocante, que não deve ser ignorado nem esquecido como caso de estudo que exige resposta. Quando o Direito puder amplamente regê-lo, em todas as suas implicações, então poderemos acreditar que começamos a sair do labirinto.
UM NOME PARA GUARDAR
Eis um nome para guardar, para nos fazer verter lágrimas pela mais pura comoção, para dar às filhas e às netas: Inês Etienne.
Em 27 de abril de 2015 morreu a ex-guerrilheira da VPR, a mais torturada sobrevivente do Brasil, a única que escapou - extremamente seqüelada - da "casa da morte", em Petrópolis, RJ.
A vida dessa mulher, que agora concluiu seu arco e converteu a resistência humana em um mito digno dos antigos gregos, se extinguiu suavemente, enquanto ela dormia, parece que pedindo perdão por não ter o nosso país tido o respeito mínimo devido a um ser humano tão admirável por sua superação.
Poucos exemplos há na nossa história em que a consciência se fundiu a um corpo, surpreendendo pela resistência os mais deformados torturadores, a ponto deles desacreditarem que ela (teimosa em sobreviver) ainda iria persistir, supondo, ao invés, que iria "colaborar".
Um sofrimento tão grande que não se transforma em culpa, não trai, não se perde no abismo do medo e da dor, deixa para nós a impressão de que o impossível não está tão longe assim. Manter a serena consciência até os 72 anos, sob experiências tão extremas, aí já nos parece que ultrapassa demais o que o comum senso de realidade, a prudência, o comodismo, a conformidade e até o sacrifício nos permitem no dia-a-dia (mas que também nos permitem dormir e acreditar que o sol se erguerá na manhã seguinte).
Inês Etienne localizou a "casa da morte"; identificou cinco dos principais torturadores; permitiu que se conhecesse outros destinos destroçados pela morte sob tortura, tudo sem que fosse movida pelo rancor (que seria plenamente justificável), mas pelas oportunidades que a vida abriria a nós que a ela sobrevivemos e aos que aqui estarão no futuro.
Uma ex-guerrilheira inscreveu entre nós uma lembrança muito maior do que a revolta que sentiu quando jovem, ainda maior do que o caminho que escolheu - superior às suas forças e métodos - maior, por fim, do que todos os que sujaram suas mãos pensando em transformá-la em um trapo humano, porque lhes parecia que o homem não tem o direito de rebelar-se, quando se sabe, por Maquiavel, que as armas são justas quando não há nenhuma esperança, a não ser nelas.
Agora, quando nosso país só abriga a esperança dos insensatos, dos trapaceiros, dos impostores, quando os piores e os mais poderosos só pensam em sobreviver - sim -, em escapar - sim - mas pelas tramas do dinheiro, de muito dinheiro, o dia 25 de abril se fechou como queria Hegel, com o pássaro da sabedoria alçando voo no crepúsculo, em homenagem a essa mulher cujo exemplo penetrou nossas entranhas.
Obrigado, Inês Etienne, por refundar o impossível no Brasil.