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O início e o fim da personalidade jurídica

Agenda 01/04/2003 às 00:00

A presente análise leva em conta os aspectos constitucionais, civis e penais, esclarecendo algumas das principais repercussões práticas. Entre elas, as relacionadas a inseminação artificial e eliminação de embriões.

Poderemos opor a atual concepção, que preza pelo não reconhecimento da personalidade jurídica do nascituro, o fato desta ter sido criada há milênios, por povos que possuíam uma noção biológica incompleta, não vislumbrando a independência do feto em relação à mãe. Afirmam estes juristas que ocorre uma diferenciação das práticas, induzindo uma modificação na interpretação dos institutos (1).

No entanto, a lei brasileira é contrária a este tipo de interpretação, e toda a organização do direito brasileiro pressupõe a existência do sujeito de direito vinculado ao nascimento com vida. Assim, uma modificação neste pilar exigiria a criação de novos institutos jurídicos.

Existem análises que asseveram que, a partir do art. 4º do C.C., é possível deduzir a existência da personalidade jurídica anterior ao nascimento, visto que "põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro", e como todo direito necessariamente vincula um sujeito respectivo, o nascituro necessariamente possuiria personalidade jurídica, visto que a coletividade não poderia ser identificada como titular destes direitos.

No entanto, esta interpretação só poderia ser considerada se aquele dispositivo possuísse uma contradição lógica insanável. No entanto, não é o que ocorre, nos termos da lógica clássica, cumulada com a moderna teoria da linguagem, a contradição é apenas aparente, pois, na verdade, o que ocorre é uma limitação semântica da primeira parte através das deduções da segunda.

Destarte, é necessário analisar as implicações lógicas do artigo, e do ponto de vista lógico, existem dois enunciados: "A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida", e "A lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro". Se a intenção é interpretar o direito como um todo, e ainda mais, raciocinar de forma que se mantenha a coesão de um mesmo artigo, o nascituro não possui personalidade, apesar de ser protegido por direitos, dos quais necessariamente não pode ser titular.

Maria Helena Diniz é quem concebe uma divisão entre personalidade jurídica formal e material, afirmando que o nascituro possui personalidade formal apenas no que tange aos direitos personalíssimos, e que a personalidade jurídica material (direitos patrimoniais) só se consolidará com o nascimento com vida (2).

No entanto, a separação entre personalidade jurídica formal da material é despropositada, criando complicações desnecessárias, que são excluídas pela navalha de Ockham.(3) Além do mais, interpreta contra texto expresso da lei, que não cria diferenciações e nega a personalidade jurídica.

Esta diferenciação servirá como um ponto de vacilo para esta autora, visto que em outro trabalho (4)admite que "inúmeros são os direitos do nascituro, por ser considerado, pelo direito, na nossa opinião, um ente dotado de personalidade jurídica formal e material".

Neste, apresenta um rol de direitos que protegem os fetos, todavia, todo aquele elenco em nada seria alterado se entendêssemos que os direitos que protegem o nascituro têm como titulares a entidade "coletividade".

Ainda mais controverso é o pensamento de Francisco Amaral, que assevera que a "personalidade humana existe antes do nascimento, e projeta-se para além da morte"(5). No entanto, tal pensamento não possui nexo jurídico. Nem mesmo o Código Penal, que admite o aborto como um crime contra vida, vem a respaldar tal teorização: "O homem morto não pode ser sujeito passivo, pois não é titular de direitos, podendo ser objeto material do delito. De observar-se que, à primeira vista, parece que o morto pode ser vítima de crimes contra a honra, em face de o art. 138, §2º, do C.P., dizer que "é punível a calúnia contra os mortos".

Acontece, porém, que o ultraje à memória dos mortos reflete nas pessoas de seus parentes, que são os sujeitos passivos. Nos crimes de destruição, subtração, ocultação e vilipêndio a cadáver (arts. 211 e 212) o sujeito passivo é a coletividade, e, em particular, a família do morto".(6)

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Desta maneira, conforme a legislação vigente, é quase inteiramente pacificado que a personalidade cessa com a morte. Pensar o contrário seria afirmar que o direito admite a existência de verdadeiros fantasmas jurídicos através de uma ficção juridicamente absurda.

Este pensamento também pode ser descartado por outra via. Como apenas na abstração a forma se separa da essência (observando a forma e a essência no sentido filosófico), em casos que a essência (direito) é limitada pela forma de execução (eficácia social), devemos também eliminar da essência aquela parte material que na forma nunca se concretiza.

Tal feito é possível mesmo em uma análise positivista, visto que os termos propostos por Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, vincula a validade a um mínimo de eficácia social, quer dizer, se o postulado nunca é observado, este não é válido e não constitui direito. No mesmo sentido, se um postulado nunca se concretiza, não sendo capaz de transformar a realidade, este não possuí o mínimo de eficácia para constituir direito.

É neste ponto que chegamos a afirmativa ("ad argumentandum") que mesmo que fosse possível a existência da personalidade jurídica após a morte (o que não ocorre), os efeitos práticos deste reconhecimento são nulos, principalmente porque é impossível que esta personalidade se manifeste e requeira o seu direito (extinção da capacidade jurídica, como afirma Francisco Amaral), invalidando este pensamento, que é exacerbado, sendo eliminado pela navalha de Ockham. Com base na lei brasileira (art. 10º, C.C.), sabemos que os reais titulares destes direitos são os familiares do morto.

Como a Constituição extrai a conceituação de pessoa titular de direitos do Código Civil, podemos dizer que, se este dispor sobre a existência de personalidade jurídica antes do nascimento, as disposições sobre a inalienabilidade do direito à vida se aplicam ao nascituro. Mas isto não ocorre. A principal causa se encontra no próprio Código Penal, art. 128: "Não se pune o aborto praticado por médico: II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal." Como sabemos, o crime é a conduta ilícita, típica e culpável, com pena aplicável se o crime for punível (punibilidade).

As disposições do artigo citado tratam de causas de exclusão da ilicitude, quer dizer, a conduta é lícita, se realizada daquela forma. É o que preceitua Damásio de Jesus: "O CP prevê, no primeiro caso, o denominado aborto terapêutico ou necessário; no segundo, o aborto sentimental ou humanitário. A disposição não contém causas de exclusão da culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas da punibilidade. Os dois incisos do art. 128 contêm causas da exclusão da antijuridicidade. Assim, na hipótese de incidência de um dos casos do art. 128, não há crime por exclusão da ilicitude" (7). Não é de outro modo que se afirma que o aborto, sobre certas circunstâncias, é legalizado.

No entanto, se analisássemos o Código Civil e fizéssemos a interpretação pela existência da personalidade jurídica anterior ao nascimento, também teríamos interpretar que o direito constitucional de inviolabilidade ao direito à vida se aplicaria ao nascituro, tornando inconstitucional o inciso do Código Penal que admite o aborto se o feto é originado de estupro, nos termos do art. 5º da C.F., "caput".

E não se trata de preceito especial revogando geral, pois a inalienabilidade à vida é um preceito que se estende aos casos particulares, como preza a redação do artigo, com exceção dos casos de pena de morte em caso de guerra declarada e nas causas de exclusão da ilicitude, que avaliam a necessidade da manutenção de uma vida em desfavor de outra, como na legítima defesa e estado de necessidade, o que não é o caso quando se realiza o aborto de feto originado de estupro.

Dispõe o art. 5º da Constituição Federal: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. "Vale dizer que a morte do nascituro, se fosse uma pessoa juridicamente considerada, feriria não só o direito a vida, como à igualdade e à segurança, visto que o seu tratamento não poderia ser diferenciado das outras pessoas físicas.

Assim, vale dizer que a disposição penal que permite o aborto em caso de estupro poderia ser tida como inconstitucional se interpretássemos pela existência da personalidade do nascituro em termos de direito constitucional (que se utiliza da definição do Código Civil e não da do Código Penal) (8). Aliás, o entendimento pacífico dos tribunais pátrios é pela desconsideração da personalidade jurídica do nascituro.

Afirma Elimar Szaniawski (9) que o fato do crime de aborto ser considerado pelo Código Penal como um delito contra a vida, é o bastante para sustentar a existência de personalidade para o nascituro. Todavia, é uma interpretação errada, porque, avaliando o Código Penal, de fato admite-se que o nascituro é sujeito passivo de crime contra vida, mas tendo personalidade jurídica apenas para efeitos penais, não abarcando os demais ramos do direito, principalmente porque assim não contraria a Constituição, como no caso de aborto em caso de estupro.

Desta maneira, não incorre em impropriedade o Código Penal, visto que, mesmo tratando dos bens jurídicos sobre os ângulos considerados mais importantes, (que na grande maioria também são tratados pelo direito civil, com exceção de certos crimes, entre eles, alguns formais e de mera desobediência), realiza um enfoque diferenciado dos outros ramos do direito, e em virtude disso, estabelece princípios, regras e conceitos próprios, sem a necessária repercussão sobre os demais ramos.

Por outro lado, se admitindo ou não a personalidade jurídica do nascituro, podemos concluir que efetivamente existem diferenças entre o embrião armazenado fora da barriga materna (geralmente na forma congelada, para inseminação artificial) e aquele que se encontra na barriga mãe, em contraposição a doutrina de Szaniawski.

Isso se dá pela concepção restrita que deriva da palavra nascituro (que é o único tipo de embrião protegido por direitos, como disciplina o C.C), perfeitamente definida pelo dicionário Aurélio, que dispõe sobre a definição técnica e jurídica da palavra: "Nascituro. [Do lat. nascituru.] Adj. 1. Que há de nascer. S. m. 2. Aquele que há de nascer. 3. Jur. O ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo". Com certeza, o nascimento do embrião fora da barriga materna, principalmente aquele congelado, não pode ser tido como um fato futuro e certo, visto que, para inseminação artificial, se congelam vários embriões para se tentar realizar uma única concepção bem sucedida.

Assim, é certo que a maioria deles não resultará numa fecundação com sucesso, e, desta maneira, não podem ser considerados nascituros, justo porque seu nascimento não é um fato futuro e certo, muito pelo contrário, é um fato improvável e incerto. Em termos jurídicos, é um absurdo cogitar que um embrião dotado de duas células (gametas) possa ser algo mais que apenas duas células, se igualando aos nascituros localizados em ventre materno. A destruição destes embriões que não se localizam no ventre materno é legal, não se atentando contra a vida, praticando o aborto, visto que este necessariamente reflete a morte provocada do embrião alojado no ventre materno.

Levando em conta a realidade, a destruição destes embriões é inevitável, o seu excesso é um resultado da própria inseminação artificial, que retira maiores quantidades de material genético dos pais para evitar desgastes emocionais e econômicos derivados de realizar o procedimento com parcelas menores, que acabam impossibilitando a medida biotecnológica.

Por outro lado, também é legítima a utilização dos embriões para fins terapêuticos, quer dizer, para pesquisas científicas que procuram a cura para doenças e mazelas, visto que se sacrifica um tipo de vida (não em termos jurídicos, mas biológicos) com status jurídico inferior para propiciar benefícios para entes dotados e personalidade jurídica.

Todavia, a utilização de material genético para produção de bens e vantagens fúteis e estéticas deveria ser vedada por lei, visto que não existe ainda um benefício comprovado do uso destes genes que não possa ser obtido por outras essências extraídas da natureza. Na maioria das vezes, a utilização deste tipo de matéria prima preza antes pelo impacto nas vendas que pelos potenciais benefícios.

Verificamos que, seja doando os embriões para casais inférteis, seja utilizando os embriões para fins terapêuticos, a opção é bastante razoável, simplesmente eliminando os excedentes. É certo que os pais devem decidir o seu destino, visto que o corpo humano e suas características genéticas são bens personalíssimos com os quais os pais usam para identificar a sua prole.


Notas de rodapé

1- Sobre a descontinuidade das práticas: "Os homens não têm o hábito de trocar de vocabulário toda vez que trocam de costumes", dizia outra vez Bloch (1990:31)... temos de estar atentos para o fato de que a continuidade do uso da palavra pode esconder a descontinuidade das práticas". Lopes, José Reinaldo Lima. O Direito na História. 1ª Ed. Editora Max Limonad, 2000. Pág. 20-21.

2- DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994

3- "É neste sentido que devemos interpretar a frase de Ockham de que `é inútil fazer com mais o que pode ser feito com menos´. Esta é a base da afirmação diferente e mais conhecida, de que ´não se deve multiplicar os entes além do necessário´. Embora não conste dos seus escritos, esta máxima acabou conhecida como a ´navalha de Ockham´". Russell, Bertrand. História do pensamento ocidental: a aventura dos pré-socráticos a Wittgenstein. Tradução: Laura Alves e Aurélio Rebello. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. Pág. 226-229.

4- Diniz, Maria Helena. O estado atual do biodireito, São Paulo: Saraiva, 2001. Pág. 127.

5- Amaral, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3ª Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Pág. 221.

6- Jesus, Damásio E. de. Direito Penal. 1º V. 2ª Edição, ampliada e atual. São Paulo: Saraiva, 1980.Pág. 166.

7- Jesus, Damásio. Opus cit. Pág. 137.

8- Sobre a indisponibilidade da vida dos fetos em favor de outras, Elimar Szaniawski afirma pela "idéia de que com a concepção inicia-se a vida humana e o embrião deve ser considerado uma pessoa humana, não podendo ser sacrificado para salvar outra" O Embrião Excedente. In "Revista Trimestral de Direito Civil". Ano 2, vol. 8, outubro a dezembro de 2001. Pág. 93.

9- Szaniawski, Elimar. Opus cit. Pág. 90.

Sobre o autor
Alessandro Rafael Bertollo de Alexandre

acadêmico de Direito na Universidade Federal do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALEXANDRE, Alessandro Rafael Bertollo. O início e o fim da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3898. Acesso em: 18 dez. 2024.

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