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Audiência de custódia: o grande dilema

Agenda 14/05/2015 às 13:29

O texto analisa o tema audiência de custódia sob o ponto de vista do Direito Internacional e do Direito Constitucional, verificando sua validade diante do aspecto temporal a partir dos tratados de direito internacional de direitos humanos e a adesão pelo Estado brasileiro.

O tema audiência de custódia vem sendo debatido por uma boa parcela do segmento jurídico brasileiro, principalmente entre aqueles que atuam diretamente na seara criminal.  

O Conselho Nacional de Justiça criou o denominado “Projeto Audiência de Custódia” que consiste na criação de uma estrutura multidisciplinar nos Tribunais de Justiça que receberá presos em flagrante para uma primeira análise sobre o cabimento e a necessidade de manutenção dessa prisão ou a imposição de medidas alternativas ao cárcere. 

A Defensoria Pública vem lutando incessantemente pela imediata implementação da audiência de custódia em todo o Brasil. 

No Senado Federal tramita o PLS 554/2011, que sugere alterações ao artigo 306 do Código de Processo Penal e implementa a audiência de custódia. 

Entretanto, antes de nos aprofundarmos no tema, necessário se faz alguns esclarecimentos históricos, até mesmo para uma compreensão mais ampla no que diz respeito a audiência de custódia. 

Com origem no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 e na Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de San José da Costa Rica e sigla (CADH) de 22 de novembro de 1969, a entrevista preliminar de uma pessoa presa com uma autoridade judicial, no Brasil denominada de audiência de custódia, visava impedir prisões arbitrárias, em especial as prisões de caráter político, já que a época, países da América Latina passaram a ser dirigidos por regimes totalitários, inclusive sob comando de militares. 

Apenas para se ter uma ideia, destacamos, de forma resumida, o histórico de intervenções ditatoriais na América Latina. 

1954 – Guatemala    

A primeira intervenção direta dos Estados Unidos no continente derruba Jacobo Arbenz, presidente da Guatemala. 

1954 - Paraguai 

Em 11 de julho, o chefe do Estado-Maior do Paraguai, general Alfredo Stroessner, comanda um golpe contra o presidente Federico Chávez e assume o poder.  

1962 - Argentina 

Em fevereiro, militares argentinos depõem Arturo Frondizi, presidente desde 1958. É apenas mais um golpe na Argentina, que teve depostos todos os seus presidentes desde Perón, que assumiu em 1946, a Isabelita Perón, em 1976. 

1964 - Brasil 

No dia 31 de março, um golpe militar derruba o presidente João Goulart. O governo não reagiu, assim como os grupos que lhe davam apoio. Em 15 de abril, o general Humberto de Alencar Castelo Branco assume a presidência. 

1967 – Nicarágua 

Anastasio Somoza implementa a ditadura e se mantém no poder até 1978, quando uma revolução popular, liderada por Daniel Ortega, provoca um golpe de esquerda. O novo governo, de Daniel Ortega, passa a enfrentar uma contrarrevolução apoiada pelos Estados Unidos. 

1968 - Peru 

Uma junta militar liderada pelo general Juan Velasco Alvarado instala-se no poder ao depor o líder Belaunde Terry. 

1973 - Uruguai  

Em junho, é a vez do governo democrático do Uruguai, liderado pela Frente Ampla, cair perante os militares.

1973 - Chile 

Em setembro, no Chile, uma ação militar cerca o presidente comunista Salvador Allende, que se suicida. Quem assume é o general Augusto Pinochet. 

1978 - República Dominicana 

As ditaduras começam a perder prestígio a partir de 1977, com a política de valorização dos direitos humanos do presidente americano Jimmy Carter. Uma das primeiras a cair foi a da República Dominicana, que teve início em 1965, com a invasão do país por 22 mil soldados da Organização dos Estados Americanos. 

1982 - Bolívia 

País campeão em quarteladas e contragolpes em todo o século 20, a Bolívia teve dezenas de presidentes desde 1964, quando foi derrubado o presidente de esquerda Paz Estenssoro (golpista e depois eleito democraticamente). 

Como se percebe, a América Latina estava dominada por regimes ditatoriais, onde todos os tipos de atrocidades foram cometidos, prisões arbitrárias, execuções sumárias, e centenas de milhares de pessoas “desaparecidas”, assim, para tentar coibir esses abusos, é que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, trouxe em seu artigo 9º, item 3, a seguinte redação: 

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  Artigo 9º  

3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. (grifo nosso) 

Ressalte-se que manifestar-se contrariamente ao governo em regimes ditatoriais, em regra, é considerado crime, e no Brasil, durante o regime militar, não foi diferente, fato que podemos constatar facilmente ao lermos os textos do Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, do Decreto-Lei Nº 898, de 29 de setembro de 1969 e da Lei Nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 e que se referem à Lei de Segurança Nacional. 

Convenção Americana de Direitos Humanos realizada em San José da Costa Rica, 22 de novembro de 1969, contemplou em seu artigo 7º, item 5, a seguinte redação: 

Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal 

5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (grifo nosso) 

Tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos, no que se refere à apresentação de pessoa presa perante um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais, em nenhum momento restringiu aos presos em flagrante, ao contrário, ambos os textos adotaram pronome indefinido (Qualquer pessoa presa / Toda pessoa presa), o que significa que sua abrangência é geral, logo, se destina a toda e qualquer pessoa presa, e não somente aquelas presas em flagrante.

Conforme observamos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é de 16 de dezembro de 1966 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica) de 22 de novembro de 1969, sendo certo que somente passaram a vigorar no Brasil mais de vinte anos depois de sua criação, o primeiro pelo Decreto 592, de 6 de julho de 1992 e o segundo pelo Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, quando o regime ditatorial militar já não mais imperava.

Aliás, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 contemplou e ampliou inúmeros dispositivos constantes do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que por si só já tornaria desnecessária a adesão aos referidos Pactos.

Feito o esclarecimento histórico, vamos adentrar no “Projeto Audiência de Custódia” criado pelo Conselho Nacional de Justiça e iniciado, preliminarmente na capital paulista.

Segundo o que foi noticiado na página oficial de internet do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o “Projeto Audiência de Custódia” consiste na criação de uma estrutura multidisciplinar nos Tribunais de Justiça que receberá presos em flagrante para uma primeira análise sobre o cabimento e a necessidade de manutenção dessa prisão ou a imposição de medidas alternativas ao cárcere. (grifo nosso)

Pelo que se depreende da redação divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça, nos dá a impressão que os juízes não vêm observando o que determina a legislação processual penal em vigor, principalmente depois do advento da Lei 12.403/2011, o que acreditamos não ser verdade. 

A implementação da “audiência de custódia” depois de 22 anos de o Brasil ter feito a adesão aos tratados internacionais dos quais já nos referimos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, e mais de 45 anos depois da criação destes pactos (1966 e 1969 respectivamente) nunca teve a atenção de qualquer autoridade pública neste país, principalmente quando o cidadão brasileiro mais precisava, qual seja, antes da promulgação da Constituição de 1988, em especial durante o regime militar.

Diante do tamanho descaso do Estado brasileiro diante do que determina os tratados internacionais ratificados por nossa nação, podemos pensar o seguinte:

a)– Que o Brasil, por possuir uma autoridade policial bacharel em direito, o Delegado de Polícia, sempre realizou a audiência de custódia, uma vez que toda pessoa presa, detida ou retida a ele deve ser apresentada, tendo esta autoridade o condão de fazer a primeira análise jurídica dos fatos e decidindo, nos termos da lei, sobre a manutenção ou não da prisão.

b)– Que o Brasil, considerando que a autoridade a qual o preso deverá ser apresentado para a audiência de custódia é juiz e somente o juiz, está em débito perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos há mais de 22 anos, devendo ser denunciado e responder pelo descumprimento do pactuado.

Queremos deixar claro que não fazemos oposição à audiência de custódia realizada exclusivamente pelo juiz, entretanto, acreditamos que ao prevalecer este entendimento, deverá ser implementado nos termos determinados pelos tratados internacionais e ratificados pelo Brasil, não pode, em nosso entendimento, ser colocado em prática de forma fracionada, nem mesmo a título de “projeto piloto”, pois desta forma o Brasil continua em débito perante a corte internacional.

Destaque-se que pela forma implementada o próprio Poder Judiciário descumpre o consagrado princípio da igualdade previsto em nossa Constituição Federal, uma vez que apenas alguns poucos possuem assegurado o seu direito de entrevistar-se com um juiz, já que a audiência de custódia não está sendo realizada em todo o país, e o pior, nos pouquíssimos lugares onde estão ocorrendo, não acontece de maneira contínua e que garanta o pleno atendimento, pois, pelo menos por enquanto, não se realizam nas sextas-feiras, aos sábados, domingos e feriados.

Ressalta-se que o “Projeto Piloto de Audiência de Custódia”, em suas justificativas, menciona um projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional, o PLS 554/2011, o qual também não atende o determinado pelos tratados internacionais já referidos, pois contempla apenas as pessoas presas em flagrante.

Como já afirmamos, tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e quanto a Convenção Interamericana de Direitos Humanos são claros em suas redações ao assinalarem, respectivamente que qualquer pessoa presa ou toda pessoa presa, detida ou retida, deva ser conduzida, sem demora a presença de um juiz, mas em nenhum momento determina que apenas os presos em flagrante é que possuem este direito, logo, devem também ter esta garantia os presos em razão de prisão temporária ou preventiva, o preso administrativo em razão de pensão alimentícia, o preso capturado que se encontrava evadido e o militar preso por determinação superior. E mais, e se ocorrer o que preceitua o artigo 307 do Código de Processo Penal em sua parte final, ou seja, o Juiz presidir o auto de prisão em flagrante delito, a quem caberá realizar a audiência de custódia?

Assim, ou o Brasil implementa, integralmente o determinado nos tratados internacionais e por nós ratificados, ou continuará em débito perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e por tanto, deverá ser denunciado e deverá responder pelo seu descaso de todos estes anos, conforme preceitua o artigo 5º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:

Artigo 5º 

§2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-parte no presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou nos reconheça em menos grau. (grifo nosso)

No primeiro mês de experiência do Projeto Audiência de Custódia em São Paulo foram realizados 428 atendimentos, dos quais 256 casos (60%) as prisões em flagrante foram convertidas em prisões preventivas. Houve concessão de liberdade provisória em 167 casos e 5 casos de relaxamento de flagrantes.

Sobre o autor
George Melão

Advogado especializado em Direito Eleitoral – Pós-graduado em direito Público e Privado pela Faculdade Damásio de Jesus – Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura – Pós-graduado em Direito Eleitoral e Direito Processual Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista – Foi Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Processual Civil do Curso Preparatório para Concursos FMB.<br>

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