Se você nunca ouviu falar sobre o programa Boundless Informant, ou o programa PRISM, e exatamente por isso não tem a menor ideia da relação deles com a Lei 12.965 (BRASIL, 2014), instituidora do marco civil da internet, numa completa ignorância sobre como tudo isso vai influenciar sua vida daqui para frente, então não deixe de mergulhar na leitura da obra “Sem lugar para se esconder”, do jornalista Glenn Greenwald, com publicação da editora Primeira Pessoa.
O livro em questão, sem dúvida, constitui-se num marco histórico do jornalismo investigativo, movido pela livre convicção do autor em defesa da garantia da privacidade enquanto uma premissa da democracia. Impactante o modo como o leitor é conduzido para dentro da máquina de espionagem mantida pela Casa Branca, pondo em angustiante contradição o discurso do Tio Sam em favor da liberdade no mundo, enquanto no seu próprio quintal tenta esconder o lobo que ele mesmo pôs para proteger o galinheiro.
Tal como uma gigantesca teia a enovelar as redes de comunicação num labirinto escuro, o leitor, pouco a pouco orientado pela clareza do texto jornalístico, desvenda o jogo político entre governo e empresas midiáticas.
Para tanto, o autor teve o cuidado em explicar nas primeiras páginas do livro o longo percurso que o fez sair de sua casa no Brasil até Hong Kong, cidade escolhida pelo entrevistado para receber o entrevistador. O ano era 2012 e do primeiro contato feito por sua fonte até o primeiro encontro com ela muito precisou ser feito por ambas as partes. O entrevistado corria risco pelo material que tinha em mãos e pelo que estava prestes a revelar sobre tudo o que sabia em matéria de espionagem, dada sua experiência de atuação na área. Os primeiros contatos via web, através de ferramentas criptografadas, davam conta de uma reportagem de grande impacto, até porque seu conteúdo sinalizava para uma exposição solar da intimidade de todo e qualquer cidadão. Recursos precisavam ser angariados para a viagem, incluindo apoio para publicação do material a ser trabalhado.
Para o entrevistador somavam-se perguntas ávidas por respostas convincentes, na medida em que a denúncia da fonte dizia respeito a um intrincado mecanismo de armazenamento de dados capaz de destrinchar a vida de qualquer cidadão, até mesmo nos seus escaninhos mais reservados: desde as conversas mantidas numa rede de relacionamento virtual, passando por sua movimentação bancária e chegando até aos níveis de glicemia supostamente mantidos em sigilo no banco de dados do laboratório para onde normalmente se confia realização da análise do sangue coletado.
Muito provável que o nome de Edward Snowden não seja de todo desconhecido, e muito menos afastado de uma vaga lembrança de tê-lo ouvido falar num dos noticiários da televisão brasileira, quiçá internacional. Ao lado dele posam na galeria dos descobridores de um novo mundo: Hervé Falciani, pela descoberta das contas secretas, em depósitos milionários no HSBC da Suiça, mantidas, entre outros, por super estrelas das novelas “globais” e do jornalismo “isento”, todos agastados nas grandes redes de telecomunicações; Julian Assange, ao navegar em zonas proibidas com seu site Wikileaks e por isso mesmo pagar uma conta alta com a privação de sua liberdade em exílio na representação consular do Equador; entre outros menos votados[1].
Muito se tem a contar sobre essas iniciativas que tomam de assalto os círculos políticos mais atrasados, muito freqüentados por quem sempre gostou de usar a capa da honradez, quando convinha manter a reputação de paladino da justiça aos olhos do povo. Mas essa festa da hipocrisia nem sempre termina bem e mais uma vez seus comensais foram surpreendidos por um novo intruso atendendo pelo sobrenome de Snowden, o mesmo a quem este texto trata como convidado de honra. Uma honradez estampada num jovem norte-americano que decidiu revelar ao mundo segredos de espionagem do governo estadunidense. Acompanham nesse pacote de denúncias os “grampos” efetuados na Petrobrás durante o governo de Dilma Rousseff, além das conversas até então tidas como sigilosas da Primeira-Ministra alemã Ângela Merkel com seus assessores.
O autor do livro em questão possui experiência como advogado constitucionalista, com inúmeros prêmios internacionais concedidos em reconhecimento ao seu talento no campo do jornalismo investigativo. Não por acaso, a ele Snowden confiou sua delação, junto com a entrega dos documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA), que mais tarde iriam incriminar a maior potência econômica do mundo em uma série de publicações do jornal independente “The Guardian”.
Na mesma medida de importância, o trabalho de Glenn informa também sobre o papel destacado da documentarista Laura Poitras, com quem dividiu o mérito de garimpar dados capazes de embasar um dos maiores libelos acusatórios desse século.
O reconhecimento do papel heroico de David Miranda, brasileiro detido na Inglaterra por levar consigo parte do conteúdo das informações obtidas na entrevista em Hong Kong, submetido, segundo palavras do autor, a um calvário grotesco e enfurecedor por parte da polícia britânica, deve servir de orgulho a todo o cidadão interessado em defender sua própria privacidade, enquanto uma das maiores conquistas da humanidade. O autor tem em David a confiança típica de quem compartilha uma vida matrimonial reconhecendo nele alguém em quem se espelhar pela altivez do caráter e pela inteligência em encontrar respostas às questões mais angustiantes.
Concomitante a todo esse cenário, vale o conselho de se buscar conhecer melhor a lei que instituiu no Brasil o Marco Civil da Internet inaugurando no mundo a primeira iniciativa de regulamentação da matéria. Quem sabe, em uma próxima edição do livro ora resenhado, o autor nos brinde, com a citada lei? Em tempo, vale dizer que a lei trata o tema da privacidade a partir de um texto aquinhoado por clareza técnica e conteúdo interdisciplinar, distinguindo os direitos e garantias dos usuários, sobretudo quanto a proibição do fornecimento a terceiros de dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, passando a ser obrigação das empresas informar previamente, e de modo transparente, com suficiente descrição aos usuários da rede, tudo que for relacionado sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança do sistema de comunicação como um todo.
Todo esse aparato de proteção busca enfrentar sofisticados programas de monitoramento nas trocas de mensagens muito comuns em redes virtuais de relacionamento como Skype e Facebook. Os exemplos mais nítidos da medida de força desse monitoramento, segundo dados colhidos pelo autor junto ao seu entrevistado, atingem os recônditos da vida privada das pessoas atendendo pelos nomes de Boundless Informant e PRISM. Só para ter uma noção preliminar da força onipresente desses sistemas, nenhuma senha de acesso resiste a eles porque estão capacitados a produzir um bilhão de combinações em menos de um segundo. O programa Cryptocrat parece ser uma das poucas ferramentas a resistir a essa invasão de privacidade, mas ninguém sabe por quanto tempo ele continuará confiável.
Diante desses mecanismos de captura de conversas supostamente reservadas ao círculo de pessoas inscritas em um chat, acrescente o monitoramento das ligações telefônicas ao ponto de se operar a chamada escuta móvel, quando se é possível fazer do celular desligado um microfone capaz de gravar conversa presencial sem que os interlocutores saibam disso.
A leitura do livro em destaque oferece oportunidade de maior contextualização de um novo paradigma de controle sobre os meios de produção, quando o ato de vigiar e punir ganha dimensão que talvez jamais pudesse ser imaginada, nem mesmo pelas lentes de Foucault (Foucault; 1975) quando da edição de um de seus livros mais famosos.
De acordo com a narrativa do livro, o exercício de vigiar se reencontra no modelo panóptico de Bentham (Apud. Foucault, 1975), na oportunidade em que os olhos que tudo veem conseguem alcançar ao nível celular os atos típicos de privacidade. Em sentido diametralmente inverso, a privacidade é moeda de valor inegociável para alguns privilegiados: para NSA vale vasculhar a vida alheia, mantendo os dados obtidos ao livre acesso de seus agentes em salas fechadas a cadeado para quem teve sua vida devassada por esse mecanismo de controle; contas bancárias em paraísos fiscais são trancadas a sete chaves, nada importando as suspeitas sobre a origem dos recursos lá depositados; a grande mídia seletivamente colocando em rede de transmissão mundial os fatos que ela julga serem merecedores de notícia para concomitantemente silenciar-se sobre os fatos contrários aos seus interesses comerciais.
Para esses casos, privar as pessoas de conhecerem certas informações consagra uma ideia distorcida de privacidade, pois esta passa a ser atributo exclusivo de quem detém o poder político e econômico. Aos demais a privacidade soa como falácia.
A essa altura dos acontecimentos, por tudo o que foi revelado por Snowden em relação a NSA torna-se bizarra a tentativa de autoridades da Casa Branca em desfraldar a bandeira da prerrogativa de sigilo das atividades, por relevante interesse nacional de segurança e ordem pública, conforme descrito na obra em exame. A chamada “lei patriota” aprovada pelo Congresso americano em 2001 logo depois dos atentados de 11 de setembro fez da exceção uma regra. O sigilo de um ato praticado por agente governamental trata, por certo, de uma exceção ao princípio do livre acesso às informações de interesse público, ou mesmo de interesse pessoal de quem tenha pretensão de obtê-las ao juízo de sua conveniência pessoal[2]. Mas mesmo considerada essa hipótese de exceção, ao redor dela uma série de garantias sobrevém, tais como direito de consciência, de privacidade, intimidade, de livre comunicação de ideologias e crenças - sendo o espaço material e imaterial de abrigo desses direitos o asilo inviolável do ser humano, dai porque ganha sentido óbvio o prazo pré-determinado de vigência do ato sigiloso, segundo fundadas razões que venham a amparar sua excepcionalidade[3].
Diante desse quadro apresentado no livro há de se considerar que mesmo para Foucault não seria possível, a sua época, imaginar um alcance tão longínquo das lentes de observação. A rede de vigilância vislumbrada por George Orwell, no épico literário “1984” (Orwell; 1949) faz do “grande irmão” um ser raquítico, pois a medição da qualidade dos serviços de informação e espionagem não está limitada mais na captura do ato em si, mas também na captura de suas motivações por mais resguardadas que possam estar nos arquivos lançados nas nuvens de dados. Muito provavelmente para tentar encobrir o ato em si e suas motivações, o entrevistado de Glenn se vale de um cobertor para encasulá-lo no momento em que digita a senha de acesso ao lap top. Esse singelo gesto relatado pelo autor parece dar alma ao título do livro, ou seja, não há mesmo lugar para se esconder. O receio de ser descoberto a qualquer momento e sob qualquer circunstância eleva em altíssimo grau o risco de um surto paranóico. E esse é o clímax proporcionado pela leitura, uma vez que o leitor é chamado a decidir entre a ação e a inação. Ao decidir pela ação, um horizonte de possibilidades descortina-se a sua frente fazendo dele no mínimo um multiplicador da denúncia. Ao decidir pela inação a sombra do Leviatã (Hobbes; 1651) o impedirá enxergar o caminho da liberdade, sendo tal decisão a última de sua vida, porquanto não lhe restará mais a condição de ser livre no momento em que aceita no entorno de seus pulsos os grilhões do autoritarismo que, por sua vez, reinventa em pleno século XXI um novo estilo de escravidão, onde as correntes não se prendem mais ao corpo, mas a mente subjugada.
As lições de Foucault não deixam dúvidas. A inação cria a condição necessária para o ato de punir, o que equivale dizer, nesse contexto, a perda do lugar e do estado de intimidade. O lugar enquanto espaço físico onde a pessoa deve encontrar abrigo para estar só consigo mesma, ou na companhia de quem ela elegeu no seu círculo de cumplicidades; e estado no significado do conforto psíquico proporcionado pela idéia de intimidade no sentido de um recolhimento ao que se possa chamar de individualidade.
Por certo a leitura da obra pode causar desconforto pelo impacto dos fatos antes obscuros dos sistemas de informação e agora expostos à luz do dia. Mas de tudo fica a lição de que é desejável encontrar medidas de limitação a essa face do poder antes encoberta pela máscara da defesa da liberdade como base da cidadania.
Referências
Assembleia Geral das Nações Unidas. Resolução nº 217 A (III) em 10 de dezembro de 1948. Brasília. 2014. Disponível em: http://nacoesunidas.org/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/. Acesso em: 01 maio 2015.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acessado em 12/03/2015. Acesso em: 01 maio 2015.
BRASIL. Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 02 maio 2015.
BRASIL. Decreto no 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. Acesso em: 02 maio 2015.
Domscheit-Berg, Daniel. Os bastidores do WikiLeaks – A história do site mais controverso dos últimos tempos escrita pelo seu ex-porta voz. Editora Campus. Rio de Janeiro: 2011.
Foucault, Michel. Vigiar e Punir. 40 ed., Editora Vozes, Rio de Janeiro: 2012
Greenwald, Glenn. Sem lugar para se esconder – Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano. Sextante. Rio de Janeiro: 2014
Hobbes, Tomas. Leviatã ou matéria, Forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.. Editora Abril Cultural. Coleção Os Pensadores. São Paulo: 1984
Orwell, George. 1984. Companhia Editora Nacional, São Paulo: 1984
Notas
[1] Tanto Hervé Falciani, como Julia Assange merecem cada um deles um livro do quilate desse que se coloca no objeto da presente resenha. Quem sabe, essa publicação não motive o autor da obra em análise a escrever sobre essas pessoas, ou mesmo não inspire outro autor a fazê-lo? A esse propósito Daniel Domscheit-Berg saiu na frente com a publicação de “os bastidores do wikileaks” (Domscheit-Berg; 2011), mas ao seu próprio estilo evidentemente estando ele longe de ser escritor nato. Fica aqui a insistência pela publicação de outro livro pela lavra de Glenn Greenwald.
[2] Está escrito no artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948): “Ninguém deverá ser submetido a interferências arbitrárias na sua vida privada, família, domicílio ou correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques todas as pessoas têm o direito à proteção da lei.”
[3] O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi aprovado em 16 de dezembro de 1966 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e segundo prescrição encartada em seu artigo 19 toda pessoa terá direito à liberdade de expressão, sendo esse direito consistente na liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de consideração contextualizada nos limites da fronteira de um determinado país. Obedecendo essa diretriz, mais de 90 países adotaram regulação interna que prevê como regra a liberdade de acesso a informação. No Brasil, por exemplo, a Lei 12.527 (BRASIL, 2011) define os prazos máximos de restrição de acesso à informação, segundo classificação de: ultrassecreta com 25 (vinte e cinco) anos; secreta: 15 (quinze) anos; e reservada: 5 (cinco) anos.