O nascimento da Antropologia ocorreu em meio à expansão colonial européia do século XIX. Temos, portanto, a ligação da antropologia social e, conseqüentemente, da antropologia jurídica com o imperialismo europeu, que emerge, segundo Hannah Arendt, do colonialismo motivado pela dimensão expansionista, o que difere-se das políticas de formação de impérios aos moldes de Roma.
Assim, o imperialismo é caracterizado por aquilo que se denomina “bulimia territorial”, mas não somente, pois, segundo Eric Hobsbawm, o imperialismo, que se inicia em 1880, condensa-se em um novo tipo de império, fundamentado na divisão do mundo entre países “avançados” e “atrasados”.
Nesse contexto social, caracterizado pela política de massas, o Estado nacional europeu precisava fundamentar sua legitimidade, demandando esforços para angariar o apoio popular à expansão imperialista. Assim, a idéia de superioridade racial, já bastante difundida na sociedade européia em face das demais sociedades, torna-se a mais eficaz ferramenta de legitimação da expansão imperial. À época, a idéia de superioridade de raças já podia ser encontrada na obra, acerca da hierarquia das raças, Essai sur l'inégalité des races humaines, de Gobineau, à qual faz alusão o poema.
No entanto, a ideologia da superioridade necessitava de argumentos para atestar seu convencimento e, assim, a Antropologia, recém-nascida, torna-se um instrumento de grande valia no tocante ao exercício da dominação nos contextos coloniais.
Cabe ressaltar que, entre o conhecimento antropológico e a administração colonial, fora estabelecida uma “afinidade eletiva” de tal modo que a administração colonial apoiaria o desenvolvimento da antropologia e os antropólogos forneceriam, em última análise, conhecimentos que se prestariam à validação da dominação política.
O Evolucionismo, primeira grande corrente da Antropologia no século XIX, tinha um caráter etnocêntrico, permitindo a utilização da suposta ciência como instrumento de dominação. Segundo Norbert Rouland, a escola evolucionista parte das seguintes premissas: as sociedades humanas formam um conjunto coerente e unitário subordinado às leis gerais e globais de transformação; todos os grupos humanos passam por estágios idênticos e sucessivos no desenvolvimento de suas organizações econômicas, sociais e jurídicas; há uma concepção linear do tempo que aponta para a idéia de teleologia histórica.
A antropologia com enfoque jurídico também se manifesta inicialmente nesse contexto imperialista, cujos maiores expoentes formularam suas teses sob o influxo da dominação colonial. Dentre os “pais fundadores” da antropologia jurídica, temos: Lewis Morgan, que postulou a lei geral de desenvolvimento, na qual as sociedades evoluem passando pela selvageria até a barbárie para, por fim, atingir a civilização; e, ainda, Henry Sumner Maine, que estabeleceu a lei geral de evolução, caracterizada pela transmissão do status, fundado na cosmologia social, para o contrato.
Tendo por base a análise da gênese da disciplina, Orlando Villas Bôas Filho, em seu texto intitulado “A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica”, estabelece o objeto, modo e finalidade do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica do século XIX: consiste no estudo das “sociedades primitivas” fundamentado no pressuposto etnocêntrico da superioridade da sociedade européia em relação às demais, tendo um caráter meramente instrumental e constituindo-se num saber voltado à gestão de populações, expressão que Robert Weaver Shirley denomina de “dimensão pragmática” da antropologia.
O evolucionismo, escola que representou a Antropologia no século XIX, foi muito criticado pelas escolas posteriores e, sob essa ótica, a Antropologia foi questionada como ciência em relação ao seu objeto, modo e finalidade. Dentre as correntes avessas às premissas evolucionistas, temos a difusionista norte-americana, cujo maior representante é Franz Boas, pensador aludido no poema.
As críticas de Boas em relação ao evolucionismo podem ser resumidas em alguns tópicos:
- As sociedades são essencialmente diversas. Não são partes de um conjunto coerente e unitário subordinado a leis gerais de desenvolvimento. Rompe-se, assim, a perspectiva linear e teleológica da história. Portanto, não existe lei única para explicar o desenvolvimento das sociedades;
- Cada grupo cultural possui uma história própria e única, de modo que é mais importante esclarecer os processos que ocorrem concretamente em cada sociedade do que propor leis gerais de desenvolvimento das civilizações;
- homem não herda senão as potencialidades, cujo desenvolvimento depende de um dado ambiente físico e social, donde decorre a não aceitação da idéia de que a evolução está baseada na passagem por estágios idênticos e sucessivos;
- Não se pode explicar a complexidade da vida cultural baseando-se apenas num único conjunto de condições ou causas, donde decorre que as explicações raciais são, necessariamente, parciais e redutoras, para não se dizer equivocadas. O elemento raça não é suficiente para explicar as diferenças entre as mais variadas sociedades;
- Não há raças mais evoluídas que outras, o que quebra a premissa evolucionista da existência de povos com mentalidade infantil e povos com mentalidade madura, o que está na base jurídica de tutela de uma sociedade sobre outra;
- direcionamento do método antropológico deve estar voltado para a unidade empírica do indivíduo em relação com a cultura que o envolver, daí sua perspectiva culturalista.[1]
Franz Boas acenava para o estudo da história cultural e foi um dos principais representantes do difusionismo norte-americano, além de ter sido professor de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia, Nova York. Conta Freyre, no prefácio de Casa-Grande & Senzala, a profunda impressão que lhe causaram os ensinamentos de Boas, traduzidos no poema de Manuel Bandeira (“Que importa? É lá desgraça?/Essa história de raça,/Raças más, raças boas/- Diz Boas –”).
Outro crítico da corrente evolucionista foi Claude Lévi-Strauss, que lança as bases do Estruturalismo, desvinculando a Antropologia da bio-política para relacioná-la à ciência da cultura, de modo a recuperar e aprofundar o pensamento de Boas. Ao refutar as leis gerais de desenvolvimento, premissa da escola evolucionista, estabeleceu que as culturas humanas diferem-se de vários modos, tanto na relação entre sociedades distintas quanto no âmbito de uma mesma sociedade; e também apresentou a idéia de que o Homem não exerce a sua natureza numa humanidade abstrata, mas sim em culturas concretas.
As críticas ao Evolucionismo repercutiram no âmbito jurídico e tornaram-se evidentes quanto à rejeição às leis universais da história, atingindo, no seu conseqüente desenvolvimento no campo jurídico, principalmente Sumner Maine. Ainda, se as sociedades são diferentes uma das outras e, devido a isso, se organizam juridicamente de formas distintas, temos a propositura da diversidade de sistemas jurídicos, que não se resumem, portanto, à maquinaria estatal de força vinculante.
Não obstante, segundo Shelton Davis, “a Antropologia do Direito é a investigação comparada de definição de regras jurídicas, da expressão de conflitos sociais e dos modos através dos quais tais conflitos são institucionalmente resolvidos. Como tal, a Antropologia do Direito tem como ponto de partida que os procedimentos jurídicos e as leis não são coincidentes com códigos legais escritos, tribunais de justiça formais, uma profissão especializada de advogados e legisladores, polícia e autoridade militar etc.” Ou seja, a Antropologia jurídica atualmente situa-se na problematização do direito, no campo das investigações zetéticas, cujo objeto transcende o direito nas sociedades sem Estado, sendo, por vezes, questionado por supostamente adentrar ao campo da Sociologia jurídica.
“Casa-Grande & Senzala”
“Casa-Grande & senzala”
Grande livro que fala
Desta nossa leseira
Brasileira.
Mas com aquele forte
Cheiro e sabor do Norte
- Dos engenhos de cana
(Massangana!)
Com fuxicos danados
E chamegos safados
De mulecas fulôs
Com sinhôs!
A mania ariana
Do Oliveira Viana
Leva aqui a sua lambada
Bem puxada.
Se nos brasis abunda
Jenipapo na bunda,
Se somos todos uns
Octuruns,
Que importa? É lá desgraça?
Essa história de raça,
Raças más, raças boas
- Diz Boas -
É coisa que passou
Com o franciú Gobineau.
Pois o mal do mestiço
Não está nisso.
Está em causas sociais,
Da higiene e outras tais:
Assim pensa, assim fala
Casa grande e Senzala.
Livro que a ciência alia
A profunda poesia
Que o passado revoca
E nos toca
A alma de brasileiro,
Que o portuga femeeiro
Fez e o mau fado quis
Infeliz
Bibliografia
Franz Boas – Antropologia cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109p;
Manuel Bandeira – Estrela da vida inteira;
Marina de Andrade Marconi e Zelia Maria Neves Presotto – Antropologia, uma introdução. Editora Atlas AS. 2001, São Paulo, 5 ª Edição;
Orlando Villas Bôas Filho – A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica;
Robert Weaver Shirley – Antropologia jurídica;
Shelton H. Davis – Antropologia do Direito (introdução).
[1] Orlando Villas Bôas Filho – A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica.