Prevê o artigo 345 do Código Penal:
Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
Tutela-se a administração da justiça, impedindo-se que o particular satisfaça sua pretensão, legítima ou ilegítima, fazendo valer sua vontade por meio de violência, ameaça, fraude, etc. Isso porque compete ao Judiciário dirimir conflitos de interesses, não se permitindo que qualquer pessoa crie embaraço à atuação regular da Justiça. No crime em tela o indivíduo revela desprezo pela Justiça, uma vez que usurpa uma prerrogativa que é inegavelmente própria do Poder Judiciário, que exerce o poder-dever da Jurisdição.
Em face da pena aplicada é crime de menor potencial ofensivo, podendo ser aplicado o benefício da transação penal (artigo 76 da Lei 9.099/95).
Tem-se a origem desse tipo penal no direito italiano (Código Penal, artigo 392), com precedentes históricos no Código sardo de 1859 (artigo 286) e ainda no código toscano de 1853 (artigo 146), de onde passou aos códigos Zanardelli (artigo 235) e Rocco (artigo 392 e 393).
A essência do delito está no direito-dever de aplicar e fazer valer o direito, tarefa do Estado, ao passo que o particular aplica e faz valer o direito do Estado, como se tem da lição de Piero Marsich (Esercizio arbitrario delle proprie ragioni nel diritto italiano vigente, Padova, 1926, pág. 69 e seguintes).
Sobre o assunto, confira-se a lição de Rui Stocco e Tatiana de O. Stocco:
“O ser humano evoluiu e desenvolveu-se no sentido de buscar estruturar-se através de um grupo social do qual faça parte e, nele inserido, acatar as regras e o modus vivendi que o próprio estrato social estabeleceu. Um dos pressupostos da vida em sociedade e da inserção da pessoa nessa sociedade é - obrigatoriamente - a submissão às regras estabelecidas e à legislação posta. Se as divergências entre pessoas devem ser dirimidas pelo Poder Judiciário - porque assim se estabeleceu -, que tem no juiz o árbitro das querelas, nada justifica que alguém queira fazer justiça pelas próprias mãos. Essa a razão pela qual a reprovação da sociedade a esse comportamento fez com que a conduta fosse considerada grave e erigida à condição de crime.
(...)
Objeto material é a conduta justiceira daquele que despreza a legislação regente do inter-relacionamento das pessoas e que estabelece os mecanismos e procedimentos para dirimir conflitos e busca, individualmente, fazer a sua justiça, segundo a sua visão e entendimento, em desprezo às regras previamente estabelecidas”. (Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 1685.)
Explica Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume III, 5ª edição, pág. 523) que “a materialidade do fato consiste em fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão jurídica. Sendo assim a existência da pretensão é pressuposto indispensável do fato, sendo, porém, irrelevante, que ela corresponda efetivamente a um direito, desde que o agente suponha de boa-fé que o possui”.
É conhecida a lição de Nelson Hungria (Lições de direito penal, volume IX, pág. 492) no sentido de que para que se possa reconhecer a sinceridade da convicção (titularidade de um direito) deve existir pelo menos a aparência do direito, um fumus iuris, ou como entende Sabatini, uma pretensão que, se levada a juízo, não seria rebatida como lide temerária. Para Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume II, 5ª edição, pág. 523) o essencial é que o agente pratique a ação de boa fé, não se podendo excluí-la a priori mesmo nos casos em que haveria lide temerária, devendo ser levada em conta, à luz do que disse Manzini, a educação, a cultura e a capacidade intelectual do agente.
Ao contrário do que ocorre com o direito italiano, a violência não é elemento constitutivo do crime, que pode ser praticado mediante fraude.
Esse crime não se confunde com a figura do esbulho possessório (artigo 161, § 1º, II), que tem como pressuposto a invasão de propriedade alheia com o fim de esbulho possessório (RT 380/173).
Paulo José da Costa (Comentários ao código penal, volume III, 1989, pág. 564), lembra a lição de Carrara quando ensinou que “ o ato externo deve privar alguém contra a sua vontade de um bem que desfruta. Aquele que está fruindo de um bem e continua a fruí-lo apesar de quem não o queira, não delinque porque a lei protege o status quo que não poderá mudar a não ser por consentimento dos interessados, por decreto da autoridade judiciária”.
Sujeito ativo é qualquer pessoa que pratica a conduta inscrita no artigo 345 do Código Penal, de forma que se tratar de funcionário público poderá ser hipótese de abuso de autoridade. Por sua vez, o sujeito passivo do crime é o Estado que exerce a administração da Justiça.
O crime se configura quando o agente faz justiça pelas próprias mãos, para satisfazer a uma pretensão. Ensina Magalhães Noronha (Direito Penal, 15ª edição, 1978, volume IV, pág. 505), que a pretensão se assenta em um direito que o agente tem ou julga ter, ou seja, pensa de boa-fé possuí-lo, o que deve ser apreciado não apenas quanto ao direito em si, mas também de acordo com as circunstâncias e as condições da pessoa. Assim a pretensão pode ser ilegítima, ocorrendo o ilícito em discussão desde que o agente se convença de ser o titular do direito.
Sendo assim será indispensável que a pretensão possa ser objeto de apreciação da Justiça, pois não ocorrerá o crime se houver carência de ação, como impossibilidade jurídica do pedido (cobrança de dívida de jogo ilegal), falta de interesse de agir (falta de necessidade ou utilidade em recorrer ao Judiciário diante de uma pretensão resistida ou a inadequação da via eleita), se a pretensão estiver sujeita a prescrição, que é uma forma de encobri-la. Considera-se indiferente a efetiva existência do direito.
Essa pretensão pode envolver um direito pessoal, um direito real, um direito de família.
Pode a pretensão ser do próprio agente ou de terceiro, se houver mandato ou gestão de negócios, por exemplo, como ensinou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume IX, pág. 492).
Como ensinou Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, pág. 417) o crime de exercício arbitrário das próprias razões é de ação livre, podendo ser praticado por violência, fraude, ameaça. Assim o tipo penal exige uma pretensão legítima (ou supostamente tal) e de uma ação ou omissão que em outras circunstâncias iria constituir um fato delituoso autônomo: furto, dano, apropriação indébita, etc, de forma que justificada pelo propósito doloso e específico do agente.
Assim há o crime previsto no artigo 345 do Código Penal: se a intenção do agente, ao se apoderar da coisa alheia móvel, foi a de se pagar dívida que o dono se recusara a satisfazer (RT 522/439; 554/377; RF 145/346). Haverá tal crime se o médico vem a reter o paciente no hospital uma vez que não recebeu o pagamento atinente a internação e tratamento (RT 512/423). Já se decidiu ainda que havia esse crime previsto no artigo 345 do CP se o objetivo não era a subtração, mas a retenção do objeto até que fosse saldada a dívida (RT 486/326). Há ainda esse crime se há uma conduta que leve a dano da coisa se praticada para reaver coisa que o agente suponha lhe pertencer (RT 419/390). Há o crime do artigo 345 do CP se o agente, para conter a agressividade da vítima, depois de dominá-la fisicamente a amarrá-la a um mourão, se dirigiu a policia para informar o fato persuadido de haver exercido um direito (RT 182/319). Outro exemplo presente no artigo 345 do CP existe quando o agente acorrenta a vítima com o intuito de fazê-la trabalhar para si, a pretexto de se ressarcir de prejuízo causado por aquela (RJDTACRIM 5/95). Outros exemplos: derrubar muro divisório de sua propriedade erguido pelo confinante (RT 485/332); cortar água e luz do locatário, absorvendo-se a contravenção referente à economia popular (RT 429/430); o adquirente do imóvel arrematado em execução hipotecária, aproveitando-se da ausência do ocupante, muda o cilindro da fechadura para imitir-se na posse (RT 639/370).
No julgamento do RHC 33.166/RN, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 5 de setembro de 2012, registra-se que foi narrado pelo órgão acusador que, embora não tenha utilizado a via correta, o recorrente, insatisfeito com o serviço anteriormente prestado pela empresa vítima em seu veículo, acompanhado de outra pessoa, impelido por um acerto de contas, resolveu se apropriar de alguns dos bens da empresa vítima como forma de ser ressarcido do suposto prejuízo. Era caso típico de aplicação do artigo 345 do Código Penal. O recurso foi provido para atribuir nova classificação à conduta dos recorrentes para o crime de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 345 do Código Penal, anulando ação penal ajuizada, em razão da ilegitimidade ativa do Ministério Público, e declarar a extinção da punibilidade dos recorrentes pela decadência do exercício da ação penal privada pelo ofendido, nos termos dos artigos 103 e 107, inciso IV, do Código Penal.
Mas se exclui a antijuridicidade da ação nos casos em que a lei permite a violência privada: legítima defesa, estado de necessidade, cumprimento do dever legal, restituição de posse incontinenti, nos casos de turbação ou de esbulho.
O elemento subjetivo do tipo é o dolo que se constitui não só pela vontade de empregar o meio, que pode ser a violência, a ameaça, a fraude, etc, como ainda pela finalidade de fazer justiça pelas próprias mãos, ou seja, satisfazer a uma pretensão real ou ainda supostamente legitima (RT 654/307-9). O dolo genérico acha-se representado pela vontade livre e consciente de fazer justiça enquanto que o dolo específico pela finalidade do agente de satisfazer pretensão jurídica legítima ou supostamente tal. Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 525) segue a linha de Manzini, para quem o agente deve limitar-se a pretender ainda que com meios ilícitos, o que supõe ser materialmente justo.
Como ensinou Paulo José da Costa (obra citada, pág. 564) consuma-se o crime quando o agente, substituindo-se arbitrariamente à autoridade judiciária, a qual poderia recorrer, faça justiça por ele mesmo. Para Paulo José da Costa, assim, não se aperfeiçoa o crime com o mero uso de meio arbitrário, como disse Magalhães Noronha (obra citada, volume IV, pág. 378), fundado nas lições de Maggiore, para quem consuma-se o crime com o emprego ou uso do meio arbitrário, sendo indiferente que o agente consiga ou não a sua pretensão. Para Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 524) não parece ser este o melhor entendimento, já que o crime é fazer justiça pelas próprias mãos, e não se pode dizer que faz justiça quem apenas tenta fazê-la.
O núcleo do tipo é fazer justiça pelas próprias mãos de forma que o tipo penal se consuma com a satisfação da pretensão. Em não sendo obtido o resultado pretendido, no entender de Júlio Fabbrini Mirabete (obra citada, pág. 418), há tentativa, ao contrário do que ensina Magalhães Noronha (obra citada, pág. 506 e 507).
Responde o agente pelo crime de exercício arbitrário das próprias razões em concurso com a violência, sendo que o dano é objeto de absorção (RT 485/332).
Consoante os termos do parágrafo único do artigo 345 do Código Penal, no parágrafo único, se não há emprego de violência, procede-se mediante queixa. É o caso do crime quando envolve ameaça, ainda que grave (RT 282/106). No ensinamento de Nelson Hungria (obra citada, volume IX, pág. 491), a ação penal é privada quando se tratar de violência contra a coisa, pois a lei ao falar em vis corporalis se refere à violência contra a pessoa (RT 503/333). No entanto, a ação penal será sempre pública se houver interesse da União, Estado e Município, a teor da Lei 8.699, de 27 de agosto de 1993. A propósito, transcreve-se a lição de Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 525):
“Há grande divergência doutrinária e jurisprudencial, no que concerne ao sentido do vocábulo violência, no dispositivo que ora estudamos. Ao passo que alguns julgados (RF 115/581) e autores (Bento de Faria, “Código Penal”, 1943, vol. 5, 616; Jorge Severiano, “ Código Penal”, vol. 4, 441) entendem que a violência, para ensejar a ação pública, tanto pode ser feita a pessoa como a coisa, outras decisões (Fragoso, “ Jur. Crim.”, nº 225) e autores (Nelson Hungria, IX, 491) afirmam que só cabe ação pública quando se trata de violência a pessoa. Este último entendimento tem sido sufragado pelo STF e por outros tribunais (RF 181/305, 260/331; RT 503/333, 503/429).
Ousamos divergir dos que entendem que o dispositivo em exame contempla apenas a violência à pessoa, pois tal opinião, conquanto autorizada, não se ajusta a nosso direito positivo. Não hesitamos em defendê-la de lege ferenda.”.
Para tanto, Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 526), em defesa de sua tese, faz menção a lição de Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume VIII, 69) noutro caso em que fala em violência tout court (artigo 208, parágrafo único, CP) quando ensina que pode ela referir-se tanto à pessoa como à coisa.
Espécie do crime de exercício arbitrário das próprias razões é o delito de tirar (subrair), suprimir (extinguir, eliminar), destruir (arruinar, demolir)ou danificar (causar dano, estragar, danificar) a coisa própria na posse legal de terceiro, previsto no artigo 346 do CP, que somente poderá ser praticado pelo proprietário da coisa que é objeto do crime, nada impedindo a coautoria ou participação de terceiros. Na primeira conduta, subtração, será necessário o desapossamento e que a vítima perca a posse. São exemplos: a venda de bens seqüestrados por determinação judicial, ainda que não haja sido assinado o auto de depósito lavrado, desde que dele já tenha sido intimado o alienante que os tinha em seu poder (RF 219/343-344) ou mesmo que tenha sido realizado eventual acordo entre autor e réu em pendência civil que deu origem ao fato típico penal. O tipo é doloso, que se consubstancia na vontade de praticar uma das modalidades previstas no artigo 346 do CP, não se exigindo que o agente tenha a finalidade de satisfazer a uma pretensão de direito real ou suposto, consumando-se numa das hipóteses legais, admitindo-se a tentativa. Quando a coisa, objeto do crime pertence não só ao agente, como também a terceiros que não sejam os coautores ou partícipes, ocorrerá, se houver subtração o crime previsto no artigo 156 do CP, que se procede mediante representação. No caso do artigo 346 do CP, a ação penal será pública. Certo, então, que a ação delituosa deve recair sobre coisa própria, isto é, coisa que pertença ao próprio agente, e, salvo na hipótese de furto, tanto faz que seja móvel ou imóvel, como bem ensinou Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 527).
Diverso é o linchamento ou linchagem.
Fala-se que o linchamento é o assassinato de uma ou mais pessoas, geralmente por uma multidão, como objetivo de punir um suposto transgressor ou para intimidar, controlar ou manipular um setor específico da população.
Em climas de tensão social ou econômica os estudiosos das ciências sociais encontram essas situações patológicas.
Como tal é delito que pode ser cometido por multidão.
Não há um crime de linchamento previsto pela lei penal. Pode-se falar em crime contra a vida, homicídio qualificado (artigo 121, § 2º, CP) e ainda na forma tentada (artigo 14, II, CP), crimes que devem ser objeto de competência de Júri Popular, por serem dolosos contra a vida (artigo 5º, alínea “d”, do inciso XXXVIII).
Afastada a hipótese de associação criminosa (quadrilha ou bando) é possível o cometimento de crime pela multidão delinquente, como se vê, nas hipóteses de linchamento, saques, depredações, etc. Responderão todos os agentes do homicídio, roubo, dano, nesses exemplos, mas terão as penas atenuadas aqueles que cometerem o crime sob a influência de multidão em tumulto se não o provocaram (artigo 65, III, ¨e¨). A pena, por sua vez, será agravada para os lideres, os que promoveram ou organizaram a cooperação no crime ou dirigiram a atividade dos demais agentes, como se lê do artigo 62, I, do Código Penal. Essa a melhor lição de Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume I, 21ª edição, pág. 242).
Por certo, há exemplos de linchamentos na Antiguidade, na Idade Média na Europa e, no século XIX, há exemplos na Irlanda e na Rússia.
Durante a guerra de independência dos Estados Unidos, muitos atribuíram a origem da palavra linchamento ao coronel Charles Lynch, que o praticava por volta de 1782, ao tratar dos pró-britânicos. Nos EUA, os negros foram perseguidos por comitês de vigilância que deram origem a Ku Klux Klan, dentro de uma ideia abominável de ódio racial.
Os estudiosos no Brasil entendem que o linchamento se dá diante da falta ou ineficiência da presença do Estado, de uma população que não acredita no poder de policia, resolvendo fazer “justiça com as próprias mãos”, como uma forma de expurgo social, tentando restabelecer uma ordem que julgam perdida.
No Brasil, tem-se notícia de um homem que foi amarrado nu a um poste no Rio de Janeiro, quando diziam: “Era bandido”. Em São Paulo, uma mulher foi linchada no Guarujá, e ali se pensava: “ Era sequestradora de crianças”.
No Brasil, já se constatou que os linchamentos são autodefensivos, uma vez que seriam supostamente praticados em defesa da sociedade e não contra ela. Tudo isso porque esses linchadores seriam levados à ação pelo medo, um medo social difuso, que vem a se dissipar, de forma momentânea, no ato de linchar quando se vê a multidão forte e invencível, sob a forma de um verdadeiro ritual.
De acordo com o sociólogo Jose de Souza Martins (mestre em História Social e doutor em Educação Popular), quando estudou o fenômeno, “ há três anos eram três ou quatro por semana. Hoje estamos a mais de uma tentativa de linchamento diária”. Isso é preocupante para os estudiosos da matéria e para as autoridades e somente fará aguçar a chamada “ cultura do medo”, em que se nota que a causalidade da violência se deve a um conjunto de fatores em contextos precisos, como a que nasce da desigualdade social, étnica, e tem na pobreza sua mais estreita relação. É o retrato da miséria humana.
Realmente, no Brasil, os indícios de linchamento e tentativas vem crescendo: de quatro por semana antes das manifestações de rua de junho de 2003, que alguns têm como manifestação apartidária de democracia comunicativa, para um por dia depois dessas manifestações e, segundo se relata, chegaria a dois casos diários nos últimos dias. É o retrato do descontrole da sociedade, expressão de falta de confiança nas instituições, medo e insegurança.
Disse José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, em artigo para o Jornal Estado de São Paulo, com o título “Seres sem rumo”, criada a circunstância do medo e a matéria-prima do estereótipo, a população entra de prontidão para identificar sinais do estigma da bruxa, como se fazia na Idade Média e no Brasil Colônia, na época da Inquisição, onde a vítima sempre terminava queimada viva na fogueira punitiva, de modo a lhe destruir o corpo e a alma.
O linchamento ocorre ás margens do sistema legal vigente, em que o acusado não tem condições de se defender.
É o linchamento a “justiça feita pelas próprias mãos”. Como tal não se justifica em pleno Estado Democrático de Direito que vivemos.
Afrontam esses “tribunais de rua” os direitos e garantias constitucionais que trazem a previsão do direito de defesa e da tutela do Estado. Não há um juiz ou um tribunal de apelação.
Concorda-se com a opinião de Virgílio Afonso da Silva (Folha de São Paulo, 16 de maio de 2014) para quem “nos casos de linchamento, não há polarização entre direita e esquerda. A contraposição é entre civilização e barbárie.”
Em verdade, como apontam os estudiosos, a conquista da civilização de não ser julgado pelo seu vizinho, de não ser apedrejado na rua, de não ser amarrado a um tronco não pode ser destruída porque o Estado em alguma medida vem a falhar na sua tarefa de garantir segurança pública e julgar.
Necessário ainda cuidado com o chamado “efeito copycat”, quando linchamentos são filmados e exibidos na imprensa ou na internet, causando um aumento do número de casos desse tipo.
Observa-se em tudo isso o poder da internet para provocar o comportamento irracional da turba, de forma que, às vezes, tem tido um papel decisivo na mobilização de multidões e na manifestação da loucura que se apossa dela. Será que as autoridades ainda não chegaram a conclusão de que a Internet está cheia de lixo, pois ela pode difundir inverdades?
É a cibernética com a Internet, obra do futuro, contribuindo para uma conduta primitiva, que leva à barbárie, onde os seres humanos estão sem rumo.
São reflexos de uma sociedade que vê a impunidade em suas barbas e resolve punir, voltando à velha lei de “olho por olho, dente por dente”.
Veja-se mais um triste espetáculo:
“O jovem identificado como Nilton Tavares da Silva, de 20 anos de idade, foi assassinado na tarde da última segunda-feira (01) em São Gonçalo do Amarante, após realizar assaltos em uma van se utilizando de uma faca.
Niltinho, como era mais conhecido, realizou um verdadeiro arrastão nos passageiros e ao descer da van, foi perseguido por populares revoltados que o alcançaram e o espancaram até a morte.”
Foi hipótese de um verdadeiro homicídio qualificado.
Há situações no crime de homicídio em que se dificulta ou se torna impossível a defesa da vítima (traição, emboscada, surpresa).
O homicídio é a morte de uma pessoa por outra.
Há o homicídio simples (matar alguém); o homicídio qualificado,; o homicídio privilegiado; o homicídio culposo, inclusive sob culpa gravíssima; a eutanásia; o infanticídio (homicídio privilegiado especial), o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio.
O homicídio é crime material e se consuma com o evento morte. A gravidade desse crime (ato antijurídico e típico), deve merecer séria reprimenda penal. Correto o projeto ao aumentar a pena mínima do homicídio simples de seis para oito anos de prisão. Por outro lado, aumenta de um sexto para um quarto da pena o tempo mínimo que o apenado primário é obrigado a ficar preso em regime fechado. Por sua vez, a progressão para os reincidentes em crime doloso ou cometido com violência ou grave ameaça fica em um terço da pena.
O homicídio qualificado é oposto do homicídio privilegiado, já que as circunstâncias deste suavizam as penas cominadas no homicídio simples.
Percebe-se que estamos em situação grave, diante do homicídio qualificado, previsto no artigo 121, § 2º, onde o agente revela um verdadeiro desprezo a seu semelhante seja praticando o crime: mediante paga, mando, promessa de recompensa; por preconceito de raça, cor, etnia, orientação sexual e identidade de gênero, deficiência, condição de vulnerabilidade social, religião, procedência regional ou nacional, ou por outro motivo torpe; ou em contexto de violência domestica ou familiar; por motivo fútil; com emprego de veneno; fogo, explosivo, asfixia, tortura ou meio igualmente insidioso,cruel ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, mediante dissimulação ou outra conduta análoga para dificultar ou tornar impossível a defesa do ofendido; para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime ou por dois ou mais agentes em atividade típica de grupo de extermínio. A isso se acrescenta agravante genérica como é o caso do parricídio, um crime infame que é matar um pai.
A tortura é meio cruel, onde se revela uma culpabilidade extrema. O artigo 1º da Convenção da Organização das Nações Unidas, de Nova York, assim declara: “Para os fins da presente Convenção, o termo ‘ tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimento são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa, no exercício de funções públicas, ou por instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência”.
A gravidade do crime de homicídio qualificado exige a correta reprimenda na proporcionalidade devida, à luz do artigo 121, § 1ª, de prisão (não se falará mais de reclusão ou de detenção) de doze a trinta anos, podendo a pena ser aumentada de um terço (causa de aumento de pena), que surgirá, na terceira fase junto com as causas de diminuição, pelo método trifásico, após o cômputo das circunstâncias judiciais e atenuantes e agravantes (artigo 84) , se o crime é praticado contra criança ou idoso.
É trazido a discussão o homicídio qualificado (artigo 121, § 2º, IV, do CP), quando há indícios de que seria cometido “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. São circunstâncias que levam à prática do crime com maior segurança para o agente, que se vale da boa-fé ou desprevenção da vítima e revelam a covardia do autor. A traição consubstancia-se essencialmente na quebra de confiança depositada pela vítima do agente, que dela se aproveita para matá-la. Demonstra o agente um maior grau de criminalidade quando pratica o crime à traição. Atinge o agente a vítima descuidada e confiante, em casos de perfídia e deslealdade. Se mata a vítima adormecida pode agir com traição, que é caracterizada pela perfídia e pela deslealdade (RF 159/385; 165/334). Será o procedimento insidioso, quando houver disfarce da intenção hostil, de tal modo que a vítima iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e venha a ser colhida de surpresa (RF 106/128; 159/385).
O Código Penal menciona a expressão genérica ou outro recurso que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima como a surpresa para o ofendido (RT 154/22 – 159/556 – 166/528 – 177/128). Em verdade, como explicou Magalhães Noronha (Direito Penal, 1976, pág. 33) “a dificuldade ou impossibilidade há de resultar do modo por que o agente atua e não de condições do sujeito passivo”.
É o mundo cão.
No caso que se desenvolveu no Rio Grande do Norte ainda se fala que ainda viram expressão de satisfação em pessoas que mataram o assaltante. Como se tivessem cumprido um dever perante a sociedade.
Assunto que tem preocupado a sociedade diz respeito a chamada multidão delinquente.
São crimes que ocorrem coletivamente como em guerra de torcidas, linchamentos públicos, invasões de propriedades, furtos de residências, casas comerciais ou ainda repartições públicas. Normalmente há o vínculo psicológico. Deve-se individualizar a participação de cada um dos intervenientes.
Na linha formulada pela doutrina alemã, com base em Welzel e ainda Roxin, sou dos que entendem que a lei brasileira, com a reforma penal de 1984, adota a teoria do domínio final do fato. É o critério final-objetivo, como disse Nilo Batista, onde autor do crime será aquele que, na concreta realização do fato típico, consciente, o domina mediante o poder de determinar o seu modo e quando possível interrompê-lo. Autor é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. Não é só aquele que executa a ação principal, o que realiza a função típica (matar, roubar, furtar, causar dano), como ainda aquele que se utiliza de uma pessoa que não age com dolo ou culpa (elemento subjetivo do tipo penal), como é o caso do autor mediato. Já o partícipe limita-se a colaborar com o fato, dominado pelo autor e coautores, de modo finalista, podendo advir por cumplicidade ou instigação, que abrange a determinação e a instigação propriamente dita.
Há evidente coautoria nos chamados crimes dolosos, como é o caso do roubo, furto e ainda dano, por exemplo. A maioria da doutrina considera que há coautoria culposa, mas descarta a possibilidade de participação culposa. Realmente discute-se a possibilidade de comum resolução para o fato em caso de crimes culposos, onde há violação do dever. Da mesma forma, não se fala em coatoria, nos chamados crimes omissivos, crimes de dever, pois é impossível falar em domínio do fato frente à estrutura desses crimes, como já expôs Roxin, em seu Täterschaft und Tatherrschaft.
A partir dos ensinamentos de Nelson Hungria Hoffbauer, com base na doutrina italiana, do que se vê em Antolisei, tem-se que existe um vínculo psicológico entre duas pessoas na prática de uma conduta ainda que não em relação ao resultado, se obrarem com culpa em sentido estrito. A jurisprudência é cediça nessa matéria com relação a tal concurso de agentes que se funda na colaboração da causa.
No entanto, fico com a lição de Nilo Batista, dentre outros, para quem não existe coautoria em crime culposo.
Já a participação, que se distingue dos chamados crimes de fusão, como é o caso da receptação, adotada a linha de conclusão a partir do exaurimento de outro delito previamente praticado por terceiro, é conduta essencialmente dolosa e deve dirigir-se à interferência num delito ainda doloso. O dolo do instigador ou do cúmplice compreende o conhecer e querer a colaboração prestada a um ilícito doloso.
Entende-se que não há participação culposa em crime doloso ou participação dolosa em crime culposo, respondendo cada um conforme seu elemento subjetivo.
Vem a pergunta: qual o papel do organizador, do instigador nesses crimes?
Organizador, como se lê do artigo 62, I, do Código Penal, é aquele que promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes. Temos aqui, uma hipótese de coautoria, fundada no domínio funcional do fato, dentro de uma divisão de trabalho.
Aceita a teoria monista ou unitária, adotada pelo Código Penal, segundo o qual há um único crime para o autor e partícipe, todos respondem pelo mesmo crime. Assim todos respondem, mesmo diante de autoria incerta, pelo resultado ainda que não se possa sequer saber quem praticou a ação prevista no núcleo do tipo penal, pois todos assumiram o risco do resultado ilícito. Como bem advertiu Nilo Batista a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940 supunha ter resolvido a questão à base da afirmativa de ser desnecessário o prévio ajuste. Ora, na autoria colateral o que falta não é o ajuste prévio e sim o acordo de vontades, que pode dar-se no momento da realização conjunta do fato, pois quando ele se dá o que haverá será coautoria.
Se A e B, numa hipótese típica de crime de furto qualificado, por destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa (artigo 155, § 4º, I, CP), desconhecendo reciprocamente suas atividades criminosas, dentro de um crime de multidão, e não se consegue determinar quem assim agira, subtraem esse bem, é de se perquirir qual a solução a adotar. Trago a lição de Magarinos Torres em que admite-se o crime para A e B, fazendo-se tabula rasa do evento cujo autor não se apurou. Ora, essa questão é de ordem processual e deve ser objeto de solução com os instrumentos do direito processual penal.
Mas, geralmente, nesses crimes de multidão, que geralmente são objeto de aplicação, no processo penal, de conexão intersubjetiva por simultaneidade (artigo 76, I, CPP), pode incidir o que chamamos de autoria colateral, quando ocorrem infrações, praticadas ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, sem que as pessoas envolvidas estejam previamente acordadas. Ao contrário, haverá conexão intersubjetiva concursal, quando essas várias pessoas estiverem previamente acordadas embora diversos o tempo e o lugar.
Ensina Nelson Hungria Hoffbauer que a autoria colateral se dá quando inexiste o chamado vínculo psicológico que une as atividades em concurso, se falta a consciência de cooperar na ação comum. Assim se não houver o acordo de vontades, seja tácito ou expresso, que dá o índice da comum resolução para o fato, não haverá coautoria, mas, sim, autoria colateral. Várias pessoas sem o conhecimento da atividade de depredação da outra cometem um crime de dano, em autoria colateral. Cada pessoa que cometeu o crime, nessas hipóteses, deve responder pelo crime de forma individual, a teor do artigo 29 do Código Penal.
No entanto, se houver domínio final do fato, mesmo com coautoria sucessiva, que se dá até a consumação, ou para alguns exaurimento, quando o agente vem a aderir à empresa delituosa, estamos diante de coautoria, em havendo a realização conjunta do fato.
Afastada a hipótese de associação criminosa (quadrilha ou bando) é possível o cometimento de crime pela multidão delinquente, como se vê, nas hipóteses de linchamento, saques, depredações, etc. Responderão todos os agentes do homicídio, roubo, dano, nesses exemplos, mas terão as penas atenuadas aqueles que cometerem o crime sob a influência de multidão em tumulto se não o provocaram (artigo 65, III, ¨e¨). A pena, por sua vez, será agravada para os lideres, os que promoveram ou organizaram a cooperação no crime ou dirigiram a atividade dos demais agentes, como se lê do artigo 62, I, do Código Penal.