Sumário: Introdução.1. Conceito de tributos indiretos. 2. Problema. 3. Conceito de lucro. 4. Da não recepção do art. 166 do CTN por violar a função social da livre iniciativa e a vedação do princípio tributário do não confisco. 5. Da não recepção do art. 166 do CTN pelos princípios da legalidade e da moralidade administrativa. Conclusão.
Introdução
É necessário fazer uma reflexão sobre a possibilidade da não recepção do art. 166 do CTN pelos arts. 1º, III, 3º, II, 5º, XXXV,170, caput, 37, caput e150, IV da Constituição de 1988, tendo em vista que o Estado tem cobrado tributos chamados “indiretos”, sem precisar restituir indevidamente, com o “estímulo” da jurisprudência nacional, a qual tem corroborado esta prática. A isso se propõe este trabalho, mas primeiramente se estabelecerão as premissas, definindo-se brevemente o conceito de tributos indiretos e de lucro, bem como a explicação do problema, desenvolvendo-se posteriormente, por indução, a tese central, para ao final sugerir uma solução.
1. Conceito de tributos indiretos
Tributos indiretos são aqueles cobrados de um sujeito passivo considerado “contribuinte direto”, mas que comportam, juridicamente, a transferência do encargo econômico financeiro para outrem, considerado contribuinte “indireto”.[1]
Na prática, o conceito é extremamente frágil, pois todos os tributos comportam transferência. Sob ponto de vista econômico, todos os tributos admitem a translação do seu encargo.
O conceito se baseia na configuração jurídica do tributo, concebido pela lei, desde a origem, como tributo indireto, pelo fato de dar tratamento oficial a esta característica. São exemplos o ICMS, e o IPI.
Na verdade, trata-se apenas de uma ficção jurídica que só serve para legitimar atos confiscatórios do Estado, tendo em vista que tributo é uma relação do Estado com o contribuinte, e não entre pessoas, no âmbito dos negócios privados.
O consumidor final, que seria o tal “contribuinte” de fato, em sua natureza, não é nada além de um “consumidor” que paga por produtos ou serviços. Ninguém vai ao supermercado pagar tributos, mas sim, comprar produtos.
Não há nenhum amparo legal para a tese de que o contribuinte de direito é mero substituto tributário, tendo em vista que desempenha atividade lucrativa, conforme será melhor detalhado adiante. Portanto não existe contribuinte direito e contribuinte indireto, existe contribuinte e consumidor.
2. Problema
Quando o Estado cobra indevidamente um tributo considerado “indireto”, seja por erro ou seja por má-fé dos seus agentes, ele se locupleta de dinheiro que não lhe pertence, portanto, tem o dever de restituir, pois tributo indevido não é tributo, mas apenas um indébito, e, como tal, deve ser devolvido ao contribuinte pelo simples fundamento de que deve-se dar a cada um o que é seu[2].
Nas palavras de Hugo de Brito Machado Segundo[3]:
“O Poder Público presentado por pessoas físicas tão falíveis como quaisquer outras, por vezes, edita normas inválidas, efetua lançamentos improcedentes, e julga administrativamente de modo equivocado. Tudo isso gera, invariavelmente, o pagamento de tributos indevidos. O contribuinte, por sua vez, eventualmente comete equívocos que o levam a recolher aos cofres públicos quantias superiores às devidas.
Tais recolhimentos indevidos geram o direito à respectiva restituição, usualmente chamada, no âmbito processual tributário, de ‘repetição do indébito’. A ação de conhecimento que tem por finalidade obter o reconhecimento desse direito, com a condenação do ente público à correspondente restituição, chama-se ‘ação de repetição de indébito’. ”
Ocorre que o art. 166 do CTN, datado de 25 de outubro de 1966, cria muitas dificuldades para conseguir esta restituição, prevendo o seguinte:
"Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la."
Como visto, este dispositivo fixa as regras para a restituição dos chamados “tributos indiretos”, estabelecendo duas situações possíveis:
a) a quem prove haver assumido o referido encargo;
b) no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Tal previsão praticamente inviabiliza a possibilidade de restituição:
a) para o contribuinte direto: pois a prova de ter assumido sozinho o encargo pode ser considerada diabólica, ou seja, praticamente impossível de ser produzida, e a segunda hipótese é absurda, por subordinar o direito de acesso à justiça ao direito potestativo de outrem.
b) para o contribuinte indireto: pelo fato de a lei não ter dado a legitimidade ativa a ele para buscar repetição do indébito contra o ente tributante que cobrou indevidamente o tributo, com o qual não mantém relação jurídica, conforme a jurisprudência consolidada do STJ que, diga-se de passagem, neste aspecto é acertada, tendo em vista que a ideia de contribuinte indireto é uma mera ficção, já que suporta o encargo por razões de foro privado, estritamente contratuais, pagando o preço de tributos e serviços, e não propriamente tributos (que são prestações compulsórias de Direito Público, e não contratuais, de Direito Privado).
A jurisprudência, aqui erroneamente, tem reconhecido a possibilidade de o chamado “contribuinte indireto” buscar a restituição contra aquele que mantinha relação jurídica, ou seja, o contribuinte direto. Entretanto, isto não tem sentido, pois o consumidor paga o preço do produto e do serviço no exercício de sua autonomia privada, não havendo nesta relação nenhum aspecto tributário, ou seja, não é possível pagar tributos a uma empresa, em uma relação estritamente contratual, tendo em vista que tributo é prestação compulsória instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, portanto, é decorrente de relação de Direito Público, com fundamento no poder de império do Estado (art. 3º do CTN).
O STJ garante de forma pacífica a vigência do art. 166 do CTN, dando a seguinte interpretação, conforme este julgado representativo[4]:
"PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. IPI. RESTITUIÇÃO DE INDÉBITO. (…) 1. O "contribuinte de fato" (in casu, distribuidora de bebida) não detém legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito relativo ao IPI incidente sobre os descontos incondicionais, recolhido pelo "contribuinte de direito" (fabricante de bebida), por não integrar a relação jurídica tributária pertinente. (…) 3. Consequentemente, é certo que o recolhimento indevido de tributo implica na obrigação do Fisco de devolução do indébito ao contribuinte detentor do direito subjetivo de exigi-lo. 4. Em se tratando dos denominados "tributos indiretos" (aqueles que comportam, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro), a norma tributária (artigo 166, do CTN) impõe que a restituição do indébito somente se faça ao contribuinte que comprovar haver arcado com o referido encargo ou, caso contrário, que tenha sido autorizado expressamente pelo terceiro a quem o ônus foi transferido. 5. (…) No entanto, note-se que o contribuinte de fato não poderá acionar diretamente o Estado, por não ter com este nenhuma relação jurídica. Em suma: o direito subjetivo à repetição do indébito pertence exclusivamente ao denominado contribuinte de direito. Porém, uma vez recuperado o indébito por este junto ao Fisco, pode o contribuinte de fato, com base em norma de direito privado, pleitear junto ao contribuinte tributário a restituição daqueles valores (…). A caracterização do chamado contribuinte de fato presta-se unicamente para impor uma condição à repetição de indébito pleiteada pelo contribuinte de direito, que repassa o ônus financeiro do tributo cujo fato gerador tenha realizado... (art. 166 do CTN), mas não concede legitimidade ad causam para os consumidores ingressarem em juízo com vistas a discutir determinada relação jurídica da qual não façam parte. (REsp 903.394/AL, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2010, DJe 26/04/2010)"
Assim, a jurisprudência do STJ, data vênia, acaba por interpretar o art. 166 do CTN, sem considerar a força normativa da Constituição, ao criar barreiras ao acesso à justiça, inclusive dando azo a figura juridicamente inexistente (“contribuinte” indireto), criando hipótese de legitimidade processual extraordinária obrigatória, ao determinar que este “contribuinte” indireto receba a sua restituição por intermédio do contribuinte “direto”, o qual é o único que teria legitimidade (extraordinária) para pleitear a restituição, mediante autorização.
Portanto, o STJ dá um direito a um “ser inexistente”, uma vez que não é contribuinte, mas sim, consumidor, e ao mesmo tempo nega esse mesmo direito criando barreiras a seu acesso a justiça, violando assim o art. 5º, XXXV da CF.
Por outro lado, ao subordinar o acesso à justiça do contribuinte (o único que é contribuinte de verdade), à produção de prova diabólica ou a direito potestativo de outrem, estará excluindo da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito, mas agora de um “ser existente”, além de outros problemas que serão tratados nos capítulos seguintes.
3. Conceito de lucro
O conceito de lucro é simples, pode-se defini-lo como o resultado da receita[5] menos os custos[6].
Portanto, se uma empresa desenvolve uma atividade imune ou isenta de certos tributos, significa que a diferença entre o que cobrar do consumidor final, menos os custos da atividade, é considerada lucro.
Por isso, a importância que o Estado cobra indevidamente não perde a natureza de lucro, só que agora é “lucro confiscado”, tendo em vista que um tributo indevido não é tecnicamente tributo, pois se assim o fosse, não seria “indevido”, trata-se de apenas de um “indébito”, o qual deve ser restituído, sob pena de importar enriquecimento sem causa[7], o qual é devido justamente para aquele que deu causa, direito este previsto no art. 884 do CC[8], nos seguintes termos:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
A importância do conceito de lucro assume relevância na medida em que, logicamente, se o Estado cobra tributos indiretos reconhecidamente “indevidos”, por óbvio, está se apropriando de receitas que seriam incorporadas como lucro, sem razão jurídica e nem axiológica para isso, conforme será demonstrado.
A promoção da igualdade material, desejada por todos os amantes da democracia, somente será atingida quando o Estado e o mercado agirem em regime de cooperação, ou seja, com o Estado respeitando a legalidade, sem praticar o confisco, e com o mercado gerando circulação de riquezas, cabendo a ambos se unirem para, em conjunto, buscar a promoção da dignidade da pessoa humana, cuja conquista passa pelos valores sociais do trabalho, o qual só é possível como decorrência dos valores sociais da livre iniciativa.
O lucro é a base do próprio direito fundamental ao desenvolvimento[9] previsto no art. 3º, II da CF, o qual deixou de ser considerado um valor liberal, passando a ser consagrado pela doutrina especializada como um dever de desenvolvimento de valores sociais, funcionando como um direito humano fundamental reconhecido no plano do direito internacional, como um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes;[10]
Lucro é apenas o nome que se dá à remuneração de quem se arriscou a empreender, o qual tem grande papel no plano econômico e social, e no desenvolvimento do país, o qual só pode existir em razão do princípio da livre iniciativa, portanto, o desprezo ao lucro significa o desprezo ao direito ao desenvolvimento, em sua acepção social pós-1988.
4. Da não recepção do art. 166 do CTN por violar a função social da livre iniciativa e a vedação do princípio tributário do não confisco
A CF adotou no art. 1º, III, como fundamentos “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, sendo também, estes vetores, fundamentos da ordem econômica, conforme prevê o caput do art. 170 da CF.
Isto significa uma superação da dicotomia Estado liberal × Estado social, tendo em vista que o Estado liberal foi absolutamente excludente por ser fundado no individualismo exacerbadamente egoísta, que não respeitava os direitos econômicos, sociais e culturais; e que o Estado social foi absolutamente autoritário, por ser fundado no coletivismo que não respeitava os direitos civis e políticos[11].
Por isso, a República Federativa do Brasil adotou o modelo de Estado Democrático de Direito, que é caracterizado principalmente por ser conciliativo entre todas as vertentes ideológicas, sendo o pluralismo político um de seus fundamentos (art. 1º, V). Há um propósito solidário, até então inexistente, que inclui solucionar os problemas da vida individual e coletiva[12].
Isto impõe ao Estado que promova avanços sociais, e isso é um consenso entre todos os pensadores democráticos[13], mas, por outro lado, também impõe que se abstenha de agir com base em uma perspectiva anticapitalista de tratar o lucro privado como uma espécie de “crime”, como se o lucro, assim como a violência[14], fosse prerrogativa e monopólio do Estado. Por isso, o Estado que adota como princípio a livre iniciativa não tem o poder de se apropriar do lucro obtido pelas pessoas em sua atividade empresarial, e nem o poder de decidir arbitrariamente qual lucro pode ser confiscado e qual não pode, pois é vedado o confisco em todas as hipóteses, nos termos do art. 150, IV da CF.
O lucro remunera a organização dos fatores de produção e os diversos riscos que lhe são inerentes, cujos principais são a falência, a responsabilidade civil objetiva e a desconsideração da personalidade jurídica pela teoria menor, que podem levar os empreendedores e seus colaboradores à miséria. Dentre outros fundamentos axiológicos, o lucro se mostra como uma retribuição da sociedade em razão da inegável função social da empresa – ou nas palavras adotadas no texto constitucional, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1, III da CF) –, a qual produz emprego e gera circulação de riquezas, constituindo-se a base do sistema econômico adotado pela Constituição.
O art. 166 do CTN cumpre uma função manifestamente contrária à livre iniciativa, na medida em que cria dever de prova praticamente impossível, além de outro requisito alternativo esdrúxulo, com vistas a legitimar a atuação do Estado no sentido de se apropriar ilegal e imoralmente dos lucros pertencentes aos empreendedores que se arriscam no mercado, dinheiro este que não possui natureza tributária, pois só tem essa natureza aquilo que é devido a título de tributo, e não o que é reconhecidamente indevido.
Dar por recepcionado o art. 166 do CTN significa aplicar uma visão autoritária e arcaica sobre a ideia de lucro, pois quem defende a sua compatibilidade com a Lex Legum se fundamenta em ranços antidemocráticos que pertencem ao passado, pois é preciso aceitar que existe uma “função social do lucro” que decorre dos fundamentos adotados pela República no art. 1º, III, do objetivo previsto no art. 3º, II e dos fundamentos da ordem econômica previstos no art. 170, todos da CF.
Sem ele, não há emprego, e sem emprego, não há produção e nem circulação de riquezas, bases estas que sustentam a economia brasileira, e promovem a dignidade humana de todo o universo de trabalhadores do país.