1 INTRODUÇÃO
Diante do fato de nunca ter sido aprovada uma intervenção federal pelo STF, desde a Constituição Federal de 1988, a presente pesquisa intenta discutir e analisar os princípios regentes para o decreto desse dispositivo e sua funcionalidade e aplicabilidade frente a algumas jurisprudências recorrentes.
2 CONCEITO E PRINCÍPIOS REGENTES
A Intervenção Federal, instituto político-excepcional, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 34, 35 e 36, consiste em um cerceamento temporário da autonomia de um ente, a fim de que, nas hipóteses previstas, preserve-se a soberania da República Federativa e da autonomia dos entes federados. São, nas palavras de José Afonso da Silva [1], situações extremas que põem em cheque a segurança estatal, a estabilidade federativa, as finanças estaduais e o equilíbrio da ordem constitucional. O decreto desse instituto, a fim de não ferir o princípio federativo, deverá obedecer estritamente a alguns princípios – excepcionalidade, taxatividade, temporalidade e proporcionalidade.
O princípio da excepcionalidade é justificado em virtude da regra de que, no Federalismo, os entes devem ser autônomos, sendo livres e capazes para realizar atividades do seu interesse dentro das restrições impostas pelo ente soberano. É previsto expressamente no artigo 34, caput, CF/88: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:” (grifei). A taxatividade, por sua vez, consiste no fato de as hipóteses de intervenção fazerem parte de um rol numerus clausus, isto é, fechado, limitado à lei. A temporalidade assinala a necessidade do prazo determinado do decreto, para que, mais uma vez, a autonomia dos entes seja garantida. Sendo assim, percebe-se que tal instituto busca reestabelecer o equilíbrio, de modo que, uma vez reestabelecido, retorna-se à autonomia federativa. A proporcionalidade, por fim, presente nas situações restritivas de direitos fundamentais ou conflito entre princípios constitucionais, estabelecerá uma restrição aos excessos, por meio das máximas da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Verificar-se-á, então, se a intervenção federal é apta ou adequada, para que seja reestabelecido o equilíbrio, se ela é, de fato, necessária, não cabendo outro meio menos gravoso e igualmente válido para se atingir a estabilidade, e, finalmente, se há uma ponderação entre o grau de restrição de um princípio e a efetivação de um princípio contraposto.
3 HIPÓTESES E PROCEDIMENTOS
Previstas no artigo 34, CF/88, estão as hipóteses excepcionais para a ocorrência de intervenção da União no âmbito estadual e do Distrito Federal:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - manter a integridade nacional;
II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
Para essas hipóteses, existem diferentes procedimentos constitucionais para o decreto da intervenção federal, previstos no artigo 36, CF/88. Um desses procedimentos é a decretação ex offício pelo Presidente da República. Ocorrerá nos casos dos incisos I, II, III e V, do artigo 34, CF/88, as situações de emergência: manter integridade nacional, repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra, pôr termo a grave comprometimento da ordem pública e nos casos que dizem respeito à organização das finanças do ente federado. Nesses casos, trata-se de competência discricionária do chefe do Executivo – independe de provocação, sendo prevista, apenas, uma consulta não vinculativa ao Conselho da República e ao Conselho da Defesa. Nesse sentido, o Presidente está sujeito a um juízo de oportunidade e conveniência, age apenas conforme seu arbítrio.
Já na circunstância do inciso IV, artigo 34, CF/88, que versa sobre a garantia do livre exercício dos Poderes nas unidades da Federação, haverá a necessidade de uma solicitação, por parte do Legislativo ou do Executivo, que esteja impedido ou sofrendo alguma coação que obste a destreza de sua autonomia. Quando o impedimento ocorrer na esfera do Poder Judiciário, ocorrerá uma requisição via STF para o Presidente da República. Importante observar que, no caso de requisição judicial, o Presidente encontra-se vinculado a essa requisição, não havendo espaço para atuar na sua discricionariedade a fim de decretar ou não a intervenção federal.
No inciso VI do mesmo dispositivo constitucional, na situação de descumprimento de ordem ou decisão judicial, o decreto de intervenção pelo Presidente da República também estará sujeito à requisição judicial, seja pelo STF, STJ ou pelo TSE. Novamente, ressalva-se o caráter vinculativo da requisição judicial, que afasta a discricionariedade do chefe do Executivo. Nesse mesmo inciso, em caso de recusa à execução de lei federal, haverá um procedimento diverso dos já mencionados. O Procurador Geral da República fará uma representação que dependerá de provimento do STF. Essa representação pode dar ensejo a uma Ação de Execução de Lei ou a uma ADI Interventiva, ambas regulamentadas pela Lei 12.562/2011. Do mesmo modo, na hipótese do artigo 34, VII, que trata da inobservância de princípios constitucionais, a intervenção também dependerá de representação do PGR, que dará ensejo a uma ADI Interventiva, e penderá de provimento do STF.
4 ANÁLISE DE ALGUMAS JURISPRUDÊNCIAS
A fim de se enfatizar o caráter de excepcionalidade da medida interventiva, analisaremos algumas jurisprudências que refletirão o processo complexo e burocrático para que uma intervenção seja colocada em vigor.
IF 2915 / SP - SÃO PAULO
INTERVENÇÃO FEDERAL
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO
Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES
Julgamento: 03/02/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação
DJ 28-11-2003 PP-00011 EMENT VOL-02134-01 PP-00152
Parte(s)
REQTES.: NAIR DE ANDRADE E OUTROS
ADVDOS.: ANTÔNIO ROBERTO SANDOVAL FILHO E OUTROS
REQDO. : ESTADO DE SÃO PAULO
ADVDOS.: PGE-SP - EDSON MARCELO VELOSO DONARDI E OUTROS
Ementa
EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido
Decisão
Após o voto do Senhor Ministro Relator, deferindo totalmente o pedido formulado, do voto do Senhor Ministro Ilmar Galvão, deferindo-o, em parte, e dos votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Nelson Jobim e Maurício Corrêa, indeferindo-o, pediu vista o Senhor Ministro Carlos Velloso. Falaram, pelos requerentes, o Dr. Antonio Roberto Sandoval Filho, e, pelo requerido, o Dr. Elival da Silva Ramos, Procurador-Geral do Estado de São Paulo. Presidência do Senhor Ministro Marco Aurélio. Plenário, 14.8.2002.
- Apresentado o feito em mesa pelo Senhor Ministro Carlos Velloso, que pedira vista dos autos, a Presidência indicou adiamento. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Gilmar Mendes, e, nesta assentada, os Senhores Ministros Moreira Alves, Ilmar Galvão e Nelson Jobim. Presidência do Senhor Ministro Marco Aurélio. Plenário, 11.09.2002.
- Após o voto do Senhor Ministro Carlos Velloso, indeferindo o pedido formulado, pediu vista o Senhor Ministro Ilmar Galvão. Ausentes, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie, e, neste julgamento, o Senhor Ministro Nelson Jobim. Presidência do Senhor Ministro Marco Aurélio. Plenário, 25.09.2002.
- O Tribunal, por maioria, vencido o Presidente, o Senhor Ministro Marco Aurélio, indeferiu o pedido formulado na inicial da intervenção.
Redigirá o acórdão o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Ausente,
justificadamente, o Senhor Ministro Carlos Velloso, que proferira voto
na assentada anterior. Plenário, 03.02.2003.
No caso em apreço, com a aplicação do princípio da proporcionalidade fundamentou-se o indeferimento do pedido de intervenção. Não se verifica a adequação de uma medida interventiva, uma vez que o Estado não adotou postura inerte frente ao pagamento dos precatórios. Há uma limitação orçamentária dentro de um quadro de múltiplas obrigações de mesma ordem hierárquica. Nesse sentido, caso decretada a intervenção, estaria o interventor, também, limitado por esses mesmos empecilhos.
MS 21041 / RO - RONDÔNIA
MANDADO DE SEGURANÇA
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 12/06/1991 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação
DJ 13-03-1992 PP-02923 EMENT VOL-01653-01 PP-00197
RTJ VOL-00137-01 PP-00177
Parte(s)
IMPTE: GOVERNO DO ESTADO DE RONDÔNIA
ADV: LUIZ RIBEIRO DE ANDRADE
ADV: ERASTO VILLA VERDE DE CARVALHO E OUTROS
IMPDO: PRESIDENTE DA REPÚBLICA
IMPDO: MINISTRO DA JUSTIÇA
IMPDO: GOVERNADOR DO ESTADO DO ACRE
Ementa
MANDADO DE SEGURANÇA - DIVISA ENTRE OS ESTADOS DO ACRE E DE RONDÔNIA - PONTA DO ABUNÃ - ADCT/88, ART. 12, § 5. - ATOS EMANADOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DO MINISTRO DA JUSTIÇA E DO GOVERNADOR DO ACRE - ATO COMPLEXO NÃO CONFIGURADO - COAÇÃO INEXISTENTE. MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA - AUTORIDADE NÃO SUJEITA À JURISDIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - INCOMPETÊNCIA DA CORTE - MANDADO DE SEGURANÇA NÃO CONHECIDO. PRESIDENTE DA REPÚBLICA - INTERVENÇÃO FEDERAL - PODER DISCRICIONÁRIO - OMISSÃO INEXISTENTE - "WRIT" DENEGADO. MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO POR ESTADO-MEMBRO EM FACE DE ATOS DO GOVERNADOR DE OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO - COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - INTELIGÊNCIA DO ART. 102, I, "f", da CONSTITUIÇÃO FEDERAL - "WRIT" CONHECIDO, MAS DENEGADO. - O instituto da intervenção federal, consagrado por todas as Constituições republicanas, representa um elemento fundamental na própria formulação da doutrina do federalismo, que dele não pode prescindir - inobstante a expecionalidade de sua aplicação -, para efeito de preservação da intangibilidade do vínculo federativo, da unidade do Estado Federal e da integridade territorial das unidades federadas. A invasão territorial de um Estado por outro constitui um dos pressupostos de admissibilidade da intervenção federal. O Presidente da República, nesse particular contexto, ao lançar mão da extraordinária prerrogativa que lhe defere a ordem constitucional, age mediante estrita avaliação discricionária da situação que se lhe apresenta, que se submete ao seu exclusivo juízo político, e que se revela, por isso mesmo, insuscetível de subordinação à vontade do Poder Judiciário, ou de qualquer outra instituição estatal. Inexistindo, desse modo, direito do Estado impetrante à decretação, pelo Chefe do Poder Executivo da União, de intervenção federal, não se pode inferir, da abstenção presidencial quanto à concretização dessa medida, qualquer situação de lesão jurídica passível de correção pela via do mandado de segurança. - Sendo, o Governador, a expressão visível da unidade orgânica do Estado-Membro e depositário de sua representação institucional, os atos que pratique no desempenho de sua competência político-administrativa serão plenamente imputáveis à pessoa política que representa, de tal modo que o ajuizamento da ação de mandado de segurança, por outro Estado, contra decisões que tenha tomado, nessa qualidade, sobre traduzir uma clara situação de conflito federativo, configura, para os efeitos jurídico-processuais, causa para os fins previstos no art. 102, I, "f", da Constituição. A Constituição da República, ao prever a competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar "as causas e os conflitos" entre as entidades estatais integrantes da Federação (art. 102, I, "f"), utilizou expressão genérica, cuja latitude revela-se apta a abranger todo e qualquer procedimento judicial, especialmente aquele de jurisdição contenciosa, que tenha por objeto uma situação de litígio envolvendo, como sujeitos processuais, dentre outras pessoas públicas, dois ou mais Estados-Membros, alcançada, com isso, a hipótese de mandado de segurança impetrado por Estado-membro em face de atos emanados de Governador de outra unidade da Federação.
Decisão
Apresentado o feito em mesa, o julgamento foi adiado em virtude doa
diantado da hora. Plenário, 05.06.91.
Decisão: O Tribunal, por votação unânime, não conheceu de ação quanto
ao ato do Ministro de Justiça e, ainda, por unanimidade, indeferiu o
mandado de segurança, enquanto impetrado em face do Governador do
Estado do Acre e do Presidente da República. Votou o Presidente. Falou
pelo impetrante, o Dr. Herácito Vila Verde de Carvalho. Plenário,
12.06.91.
Em relação ao Mandado de Segurança supramencionado, não há decisão judicial que vincule o Presidente da República ao decreto de intervenção federal na hipótese do artigo 34, II, CF/88, que versa sobre a repressão de invasão de uma unidade da Federação em outra. Nessa situação, o decreto de tal instituto constitucional estará vinculado apenas à discricionariedade do Chefe do Executivo, não cabendo provocação de outros Poderes.
5 CONCLUSÃO
Pela observação dos princípios constitucionais que regem o instituto da intervenção federal, as hipóteses para o decreto e a análise jurisprudencial, percebe-se a efetividade da proteção à autonomia dos entes Federados. Diante das jurisprudências supramencionadas e de outras semelhantes não citadas, é evidente que ainda não ocorreu hipótese excepcional para interferência na autonomia dos entes. Contudo, não se descarta a importância desse dispositivo constitucional, uma vez que, nos casos extravagantes previstos no rol do artigo 34, CF/88, colocar-se-ia em xeque o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, ressalta-se a imprescindibilidade da Intervenção Federal como último recurso de se garantir e assegurar a supremacia da forma republicana, do sistema representativo e do regime democrático [2].
6 BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. 2.380.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Salvador: Editora JusPodivum, 2014.
MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo :Editora Saraiva, 2015.
PEREIRA, Milton Luiz. Intervenção federal: requisição judicial. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.91, n.795, p.77-80, jan. 2002.
[1] Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p.418.
[2]LEWANDOWSKI, ENRIQUE RICARDO. Comentário ao artigo 34. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 808-809.