Dentro das diversas propostas de reformas que têm ganhado os noticiários nos últimos meses, a reforma tributária figura como a mais contraditória: ao mesmo tempo em que parece ser a mais necessária é a menos debatida.
E no campo das possibilidades aventadas por especialistas, a discussão sobre adotarmos um imposto único mostra-se por vezes bastante acalorada. Os defensores da proposta têm como argumento mais intenso (e sem dúvida, legítimo também) a quantidade absurda de impostos existentes no Brasil. Já ultrapassamos a casa dos 70, fazendo da legislação tributária pátria um dos mais complexos emaranhados jurídicos do mundo. Contabiliza-se que, nos mais de 20 anos da nova Constituição Federal, nossos legisladores já criaram mais de 250 mil normas sobre tributos.
A máxima de que o operador do Direto deve fazer da atualização seu alimento diário é ainda mais perceptível na seara Tributária. Mas, registre-se, a vida dos Contadores, Analistas de Orçamento, Secretários de Finança, Tesoureiros etc. também não é das mais fáceis.
As consequências dessa profícua capacidade de gerar legislação tributária são desastrosas: em 2005 o Brasil recebeu o título de pior tributação no mundo, no Fórum Econômico Mundial, ficando em último lugar dentro de um ranking de 117 países pesquisados.
Tentando nos abster por algum momento do campo teórico e trazendo a proposta de um imposto único para a prática, fica a indagação: é uma ideia exequível? Para tentar enriquecer o debate sobre o tema é que escrevemos as ligeiras linhas a seguir.
A Federação como forma de estado e o Poder Constituinte Derivado Decorrente como garantidor de autonomia dos entes federativos.
Na organização política do país a forma de estado eleita foi a Federação, também chamada de Estado Unitário. Por ela, cada estado federado cedeu parcela de sua soberania a um “órgão” central.
Em linhas gerais, as características desta forma de estado são: a) descentralização política, com autonomia dos entes; b) Constituição Federal rígida e com total base jurídica, garantindo assim a distribuição de competências; c) proibição ao direito de secessão, sendo que a mera tentativa pode ensejar intervenção federal; d) organização representativa dos estados via Senado Federal; e) garantia de autonomia aos estados membros.
E é precisamente nesta última característica – garantia de autonomia aos estados membros – que repousa a primeira barreira à instituição de um imposto único no país.
É cediço que a autonomia constitucional dada aos estados é fruto do Poder Constituinte Derivado Decorrente: esta autonomia deriva da Constituição e decorre da estrutura federativa adotada.
Pois bem. A concretização da autonomia dos estados federados –– demonstrada pelo poder de 1°-Autoorganização, conferindo a estes a possibilidade de criar suas Constituições Estaduais; 2°-Autoadministração, com o estabelecimento de seus serviços públicos; 3°-Autolegislação, com edição de leis no âmbito de suas competências e 4°-Autogoverno, com cada estado determinando suas próprias políticas públicas –– apenas existe por causa da autonomia financeira.
A implementação de políticas públicas, assim como a verificação de demandas objetivando alocar serviços públicos efetivos, custa caro. O volume de capital financeiro que um estado federativo necessita para ver sua autonomia realmente funcionar é enorme. É inegável que a autonomia financeira é a base para as demais autonomias (jurídica e política). São os recursos financeiros que instrumentalizam os objetivos traçados por uma pessoa política. Sem o aporte monetário, o ente nada faz.
O estabelecimento de um imposto único vai de encontro à própria estrutura federativa. Quem será o credor? Os estados federativos, caso não fossem os credores desse imposto único, poderiam viver unicamente de repasses? Poderiam cumprir seus objetivos? Conseguiriam oferecer serviços públicos que atendessem efetivamente a demanda da população? A resposta parece ser negativa.
No estado federado brasileiro, União, Estados e Municípios[1] são dotadas do poder de tributar. Ao escolher uma pessoa política específica para gerenciar um imposto único, outras duas pessoas políticas subsistiriam essencialmente apenas com repasses. Parece que a proposta não apenas demandaria uma profunda e quase inexequível alteração da ordem constitucional e na repartição de competências[2], como também impossibilitaria o normal funcionamento dos entes federados.
A proposta de imposto único como violadora dos princípios da “Seletividade” e “Não Cumulatividade”.
Outro ponto que milita contrariamente ao imposto único no Brasil relaciona-se aos princípios tributários da "Seletividade" e da "Não Cumulatividade".
Em rápidas linhas, a Seletividade objetiva “graduar a carga tributária do imposto de acordo com a capacidade contributiva dos consumidores[...] As alíquotas deverão ser fixadas de acordo com a essencialidade do produto, sendo menores para os gêneros considerados essenciais e maiores para os supérfluos, de forma a gravar de maneira mais onerosa os bens consumidos principalmente pelas pessoas de maior capacidade contributiva, desonerando os bens essenciais, consumidos por integrantes de todas as classes sociais[3]”.
Ora, adotando-se um imposto único essa determinação constitucional, que visa assegurar preços mais baixos para produtos essenciais e preços mais elevados para os menos, não poderia subsistir. Qual seria a alíquota? Ainda que optássemos por uma alíquota extremamente baixa (o que, de plano, já impossibilitaria a arrecadação necessária para o funcionamento da máquina pública), produtos de rara necessidade seriam beneficiados. Invertendo-se, com a aplicação de uma alíquota única mais elevada, seriam os produtos mais necessários os afetados, pois teriam seus preços elevados. A seletividade tentar obstar a máxima “feijão mais caro, Ferrari mais barata”.
Já o primado da não cumulatividade “tem por objetivo limitar a incidência tributária nas cadeias de produção e circulação mais extensas, fazendo com que, a cada etapa da cadeia, o imposto somente incida sobre o valor adicionado nesta etapa. Assim, ao final da cadeia, o tributo cobrado jamais será maior que o valor da maior alíquota, multiplicado pelo valor final da mercadoria[4]”.
Mais uma vez, temos um princípio de ordem constitucional que perderia sua função com a instituição de um imposto único. Em todos os elos da cadeia produtiva teríamos a incidência, resultando em um sobre preço absurdo. Não haveria a incidência do imposto apenas sobre o valor de cada etapa, destacadamente. Ocorreria exatamente o oposto: a cumulatividade deste imposto.
A tributação como relação jurídica e os parâmetros escolhidos.
Com o advento da Magna Carta Inglesa, em 1215, tivemos pela primeira vez na história a diminuição do poder do Monarca. Este, retendo em si todas as atribuições do estado, determinava a seu bel prazer como a tributação funcionaria. Agora, o Monarca perdia essa atribuição, sendo a mesma transferida para os representantes do povo, ou seja, o Parlamento. Com isso, aplicava-se a máxima “No taxation without representation[5]”.
Assim, quem estabeleceria o tributo seria a lei. A tributação não mais ocorreria ao arbítrio de particulares ou dos soberanos, mas sim através de uma relação jurídica.
O problema era estabelecer como isso funcionaria na prática. Quais seriam os critérios e os parâmetros balizadores da tributação?
Surgiram então 05 possibilidades que são distribuídas em dois grupos principais: Tributação Direta e Tributação indireta.
Tributação Direta - 1° parâmetro: Indivíduo ou Classe; De cada indivíduo, exigia-se uma quantia igualitária.
Tributação Direta - 2° parâmetro: Patrimônio; Considerava-se a dimensão da terra e o que ela poderia ou não produzir.
A questão que se levantou após a instituição desses 2 primeiros parâmetros era a de que, quem verdadeiramente possuía condições de arcar com a tributação não era tributado.
Sobre o Clero e a Nobreza não incidiam essas determinações de cobrança direta. Uma das explicações históricas para isso era a de que a tributação era uma demonstração de desonra, de derrota ou de fracasso. E esses extratos sociais julgavam-se superiores aos demais.
Surge então um mecanismo para fazer incidir as cobranças sobre essas classes sociais sem que elas pudessem contrapor-se. Nasce a Tributação Indireta: incluíam-se os tributos já no preço dos produtos consumidos por todos.
Os parâmetros da Tributação Indireta são:
Tributação Indireta - 1° parâmetro: Despesa ou consumo; Era a tributação que atingia a renda gasta.
Tributação Indireta - 2° parâmetro: Produção; Parâmetro que surgiu com a Revolução Industrial. Aqui, a tributação desconsidera a despesa dessas produções, i.e., a diferença entre a lucratividade e os altos custos de produção.
Tributação Indireta - 3° parâmetro: Renda; Criada por Adam Smith. Através deste parâmetro, considerava-se “renda” todo o acréscimo de capital.
Mas fica a dúvida: qual parâmetro dos 05 acima listados seria o utilizado para a instituição de um imposto único? Críticas a cada um deles não faltam:
- Tributação sobre o INDIVÍDUO: haverá a concentração da carga tributária em apenas uma parcela da sociedade.
- Sobre o PATRIMÔNIO: As alíquotas hoje aplicadas nesse tipo de parâmetro são extremamente baixas. A máquina pública não se capitalizaria de forma suficiente ao cumprimento de seus objetivos.
- Sobre a DESPESA/CONSUMO: Mais uma vez, as classes mais baixas seriam as mais atingidas, sofrendo uma carga pesadíssima.
- Sobre a PRODUÇÃO: Um imposto focado unicamente na produção seria o “tiro de misericórdia” nas empresas, que comumente já operam com custos elevados.
- Sobre a RENDA: Apenas 7% dos contribuintes cadastrados na Receita Federal do Brasil ultrapassam a faixa de isenção. Renda é algo que muitos não tem no país.
Conclusão
Qualquer parâmetro adotado na implementação de um imposto único no país resultará em tributação de apenas uma parcela da sociedade. Haverá violação direta à capacidade contributiva, segundo a qual todos contribuem como podem para financiar o Estado.
As propostas apresentadas para unificação dos impostos trazem a problemática de que a arrecadação total deve ser mantida visando sustentar o grande Estado nacional. Estado esse que consome quase 40% da renda nacional apenas para cumprir objetivos próprios.
Uma saída, talvez, possa ser a substituição das dezenas de tributos por apenas 6 ou 7, com alíquotas baixas e com regulação simples. Se a isso adicionarmos o cancelamento de incentivos fiscais e isenções, e batalharmos para reduzir os enormes desperdícios e a corrupção na gestão pública, pode ser que consigamos sonhar com um sistema fiscal justo e gerador de desenvolvimento nacional.
Notas
[1] Não listamos o Distrito Federal, pois o mesmo guarda competências tanto municipais quanto estaduais em matéria tributária.
[2] Vale lembrar que aproximadamente 70 impostos diferentes, poderia ser considerado um volume razoável para um economia tão grande e complexa quanto a brasileira. Mas, trazendo à baila os impostos municipais ISS e ITBI, cada um com alíquota diferenciada, e presumindo que existam pelo menos duas alíquotas para cada um destes impostos, e sendo mais de 5.500 o número de municípios no território brasileiro, nota-se que a alteração das estruturas normativas seria quase que impossível.
[3] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 5. ed. São Paulo: Método, 2011.
[4] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 5. ed. São Paulo: Método, 2011.
[5] Em tradução livre: “Não haverá taxação sem a representação popular”.