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Teoria Pura do Direito e Sociologia compreensiva

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Agenda 01/05/2003 às 00:00

3. Kelsen e Weber

3.1. Metodologia da sociologia compreensiva

Uma primeira característica do pensamento sociológico weberiano que cabe ressaltar aqui é a "neutralidade axiológica". No entender de Max Weber o campo do cientista e o do político eram distintos e o valor que o cientista assume, o valor "verdade" fica prejudicado sempre que o mesmo se deixa guiar por considerações valorativas.

um exame atento dos trabalhos históricos mostra com facilidade que o estabelecimento conseqüente da cadeia causal empírico-histórica costuma quebrar-se quase sem exceção, com prejuízo para os resultados científicos, quando o historiador começa a "emitir juízos de valor". (Weber, 2001: 386).

É certo que Weber é bastante conhecido por "denunciar" o desencantamento do mundo e mostrar que nos prendemos em uma "jaula de ferro". Entretanto a postura do autor não é a de uma postura "crítica" no sentido de elaborar uma " teoria" que revele as "patologias" ou os males da modernidade, mas sim a postura de compreender a sociedade, estabelecendo as conexões de sentido nas quais se pautaram as ações sociais dos indivíduos no decorrer da história.

Weber dedica grande atenção e esforço a debater com opositores que "não querem abster-se do direito de emitir juízos de valor sobre questões políticas, culturais, éticas e estéticas, e que [afirmam] nem teriam condições de desenvolver seu trabalho sem estes juízos de valor" (Weber, 2001: 386).

Weber entende que houve, de fato, um processo de racionalização, o que não implica em um processo de alguma maneira intrinsecamente bom ou necessário. Segundo ele, "um progresso na racionalização subjetiva da ação não implica, portanto, necessariamente, também objetivamente, um ‘progresso’ em direção a uma ação racionalmente ‘correta’". (Weber, 2001: 387).

O autor, assim como Kelsen, rejeita a "transposição do ser para o dever ser" (cf. Weber, 2001: 389) e que o problema está na ausência de um fim ou valor absoluto dado.

O problema consiste na possibilidade de uma univocidade absoluta da caracterização da aspiração. Se esta condição é dada, trata-se de uma simples inversão de proposições causais Y, portanto, de um problema puramente ‘técnico’. Precisamente por causa disso, a ciência, em todos os casos, não é obrigada a conceber estas proposições teológicas de um outro modo do que como simples proposições causais, e, portanto, da seguinte forma: de Y segue sempre o resultado X, ou sob as condições B 1, B 2, B 3, X é a seqüência de Y 1, Y 2, Y 3. Pois isso significa, na realidade, a mesma coisa, e o "prático" pode daí extrair suas receitas. (Weber, 2001: 396).

Assim, a única ocasião em que a ciência pode responder a uma questão "prática" é aquela em que o fim é dado e a discussão gira apenas em torno da adequação técnica de meios a fins.

Isto posto, partimos para uma abordagem do pensamento weberiano.

No entender de Max Weber a sociologia tem uma especificidade frente às demais ciências: é um ciência compreensiva. Esta especificidade lhe confere uma explicação dos fenômenos que são seu objeto de estudo qualitativamente diferente da explicação das ciências naturais. "Deve entender-se por sociologia (...) uma ciência que pretende entender pela interpretação a ação social para desta maneira explica-lo causalmente no seu desenvolvimento." (Weber, 2001: 400).

3.1.1. Ação

Eis o objeto de estudo da sociologia compreensiva: a ação social. Weber não define a sociedade ou a história como o objeto desta ciência. A pretensão de Weber não é compreender, interpretar e explicar a história como um todo, mas, pura e simplesmente, a ação social.

Por ‘ação’ deve entender-se um comportamento humano (...) sempre quando o sujeito ou os sujeitos da ação ligam a ela um sentido subjetivo. A "ação social", portanto, é uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos refere-se ao comportamento de outros e se orienta nela no que diz respeito ao seu desenvolvimento. (Weber, 2001: 400).

A ação social é, em primeiro lugar, uma ação, e tal só pode ser praticada por um indivíduo, apesar de admitir-se a construção de tipos ideais, como se verá. Além disso à ação liga-se um sentido subjetivo. A ação é dita social quando este sentido subjetivo refere-se à conduta de outros.

3.1.2. Compreensão

Enquanto dotada de sentido, a ação humana é passível de compreensão. Compreender é distinto de explicar.

Bem semelhante a todos os fenômenos o comportamento humano ("interior" ou "exterior") revela, no seu decurso, conexões e regularidades. Entretanto, algo há que é próprio do comportamento humano, pelo menos no seu sentido pleno: o decurso das conexões e regularidades pode ser interpretado pela compreensão. (Weber, 2001: 313).

Compreender um comportamento dado significa apreender as conexões de sentido deste comportamento, ou melhor, interpretar tais conexões de sentido de modo a entender o por que dessa ação.

A compreensão de uma ação pode ser empática ou puramente intelectual. A compreensão empática é aquela que se dá quando o observador é capaz de transpor-se ao "lugar" do observado, como, por exemplo, quando compartilha dos mesmos valores. Assim, ao observar que um determinado indivíduo tenha um acesso de raiva e expulse de casa sua mulher, compreendemos empaticamente a ação se conhecermos que, digamos, ele tenha acabado de descobrir que sua mulher cometera adultério. Por outro lado a compreensão intelectual se dá quando, dadas as circunstâncias em que uma determinada ação se deu, concebe-se esta ação como racional e estabelecem-se as conexões de sentido que orientaram a mesma.

Temos de nos contentar com a sua interpretação exclusivamente intelectual, ou, em determinadas circunstâncias, aceitar aqueles valores ou aqueles fins sinceramente como dados para tratar de fazer compreensíveis o desenvolvimento de uma ação que foi motivada por eles para a melhor interpretação intelectual possível ou para reviver os pontos de interpretação o mais fielmente possível.(Weber, 2001: 401).

3.1.3. Ação racional

Max Weber admite que a ação humana não é, em geral, puramente racional, que há fatores irracionais que podem orientar a ação. No entanto a racionalidade da ação orientada por um fim ou valor é componente importante na apreensão das conexões de sentido. Pode-se dizer que toda ação é orientada por um fim, mas a racionalidade dos meios é apenas uma construção ideal, e o grau de consciência do próprio fim, de suas conseqüências, e de outros fins disponíveis, são variáveis que também interferem na ação.

Assim, em um primeiro passo, a sociologia compreensiva concebe a ação como puramente racional com relação aos fins e como se daria seu desenrolar em tal situação. Como, porém, o procedimento da sociologia compreensiva "nada nos diz acerca da questão se as ações reais estão ou não determinadas por considerações racionais no que diz respeito a fins" (Weber, 2001: 402), ela busca explicar os demais fatores condicionantes da ação como "desvios" do desenvolvimento da ação racional.

O método científico que consiste na construção de tipos investiga e expõe todas as conexões de sentido irracionais e afetivas sentimentalmente condicionadas do comportamento que tem influência sobre a ação como "desvios" de um desenvolvimento dessa mesma ação que foi construída como sendo racional em relação aos fins. (...) A construção de uma ação rigorosamente racional com relação a fins serve nestes casos para a sociologia – por causa de sua evidente inteligibilidade e do seu caráter de racionalidade e de univocidade – como tipo ("tipo ideal") mediante o qual é possível compreender a ação real que é influenciada por irracionalidades de todo tipo e de toda espécie (afetos, sentimentos) como um desvio do desenvolvimento esperado de uma ação racional. (Weber, 2001: 402).

3.1.4. Determinação causal do comportamento humano.

Quando Weber aponta para a especificidade do comportamento humano ser dotado de sentido, não rejeita a possibilidade de este mesmo comportamento ser causalmente determinado.

Segundo o autor: "ficam sem sentido todos os processos ou estados humanos (...) nos quais não se sugere um sentido, e, portanto, não se enquadram numa relação entre ‘meio’ e ‘fim’". (Weber, 2001: 402). Note-se que isto não implica em que os objetos e processos naturais ficam sem sentido, mas apenas aqueles objetos, processos naturais ou mesmo ações humanas a que não se atribuem qualquer sentido. Um exemplo seria: "o ciclo da morte e o ciclo orgânico da vida desde o desamparo da criança até o do ancião –, tem obrigatoriamente alcance sociológico de primeira importância pelas diversas maneiras como a ação humana se orienta e se orientou a esse respeito. (Weber, 2001: 403).

Assim, o sentido de uma ação ou objeto não é, de forma alguma, algo imanente ao mesmo, mas antes, algo que é "atribuído" ou "imputado", numa linguagem kelseniana, a ele.

O sentido é, tanto Weber como em Kelsen, algo qualitativamente distinto da natureza. Tanto assim que Weber afirma que mesmo que futuramente a ciência encontrasse regularidades, leis causais, que determinassem o comportamento humano restaria compreende-lo.

Existe sem dúvida a possibilidade de que a investigação futura talvez encontre regularidades não sujeitas à compreensão de determinados comportamentos com sentido, por mais rara que tenha sido até agora tal coisa. (...) e o reconhecimento de sua significação causal [da liderança biológica] em nada alteraria a tarefa da sociologia (e das ciências da ação de maneira geral), ou seja, compreender pela interpretação as ações orientadas num sentido. (Weber, 2001: 403).

A explicação da ação que a sociologia compreensiva oferece é qualitativamente distinta da explicação causal.

Todas estas compreensões representam conexões de sentido compreensíveis, cuja compreensão entendemos como sendo uma explicação do desenvolvimento real da ação. "Explicar", portanto, significa, dessa maneira, para a ciência que se ocupa com o sentido da ação, algo que pode ser formulado do seguinte modo: apreensão da conexão de sentidos em que está incluída uma ação que já é compreendido de maneira atual, no que se refere ao seu sentido "subjetivamente imaginado". (Weber, 2001: 404).

3.1.5. A apreensão da conexão de sentido.

Nem sempre, ou melhor, dificilmente a sociologia será capaz de apreender o sentido de fato mentado pelo ator na circunstância concreta de uma ação. Diante desta impossibilidade, ainda mais quando se trata de um número deveras elevado de atores, a sociologia recorre a técnicas para estabelecer conexões de sentido de maneira mais abstrata.

Em todos estes casos, compreensão significa: apreensão interpretativa de sentido ou conexão de sentido: a) pensada realmente na ação particular (...) b) pensada como uma média ou de modo aproximativo (...) c) construída cientificamente (pelo procedimento "típico ideal"). (Weber, 2001: 404).

Aqui se insere, no pensamento weberiano, a construção ideal típica. Esta é, de fato, um complexo de sentidos abstratamente concebidos aliado à suposição de que o indivíduo de cuja ação se trata, se fosse orientada unicamente por este complexo de sentidos subjetivos se comportaria tal e qual o tipo ideal. É bastante ilustrativo o exemplo que Weber oferece:

"Tais construções típico-ideais são, por exemplo, os conceitos e as leis da teoria econômica pura. Elas explicam como se desenvolveria uma forma especial do comportamento humano se fosse orientada com todo o rigor tendo em mente o fim, sem a presença de perturbações alguma por parte de erros e afetos, e se fosse unicamente orientada e de modo unívoco num único fim. (Weber, 2001: 404).

Esta construção ideal típica toma como assente que o homem busca racionalmente seus fins, e estabelece um fim como padrão de conduta, tornando rigorosamente previsível o comportamento deste indivíduo abstratamente construído.

Podemos traçar aqui um paralelo com a teoria Pura do Direito de Kelsen. Para este autor, uma ordem normativa é, exatamente, um complexo de sentidos subjetivos. A diferença reside em que Kelsen não tem em mente explicar o comportamento orientado por este complexo de sentidos, mas o próprio complexo.

Weber afirma uma certa distinção entre a "conexão de sentido" e a "causalidade natural". Segundo escreveu Maurício Tragtenberg na "Introdução à edição Brasileira" da obra Metodologia das Ciências Sociais de Weber, este autor "deduz uma visão de processo histórico, na medida em que o processo da natureza e da história são em si mesmos destituídos de significação" (Weber, 2001: XVIII), ou melhor, explicar o comportamento humano amparando-se apenas em uma causalidade natural de um processo histórico não é o mesmo que encontrar suas "conexões de sentido", uma vez que tal processo histórico não tem "sentido".

Processos e regularidades que, por incompreensíveis no sentido aqui entendido, não podem ser qualificados de fatos ou de leis sociológicas, nem por isso são menos importantes. Tampouco para a sociologia, de acordo com a definição dada aqui (que implica uma certa limitação da sociologia para ser apenas ‘sociologia compreensiva’, sentido que, entretanto, não se impõe forçosamente a ninguém). Eles somente pertencem a um lugar diferente, o que, metodologicamente falando, é inevitável na ação compreensível, ou seja, a ação condicionada por ‘condições’ ou situações, ‘ocasiões’, ‘estímulos’ e obstáculos da mesma. (Weber, 2001: 407)

Por outro lado o comportamento humano não é precisamente descrito apenas como um complexo de sentidos. Uma crença não determina absolutamente o comportamento da forma da causalidade natural.

Mas, nenhuma interpretação de sentido, por mais evidente que seja, pode pretender, por causa deste seu mérito, ser também a interpretação causal válida [porque] 1) Com freqüência, ‘motivos’ transferidos, pressupostos e ‘repressões’ (quer dizer, motivos não admitidos) encobrem (...) a conexão real de uma trama de ação (...) 2) manifestações externas da ação, tidos por nós como sendo ‘iguais’ ou ‘semelhantes’ podem apoiar-se em conexões de sentido muito diversas. (...) 3) em situações dadas, os homens são submetidos em sua ação a uma situação de oposição a partir de impulsos contrários que são todos ‘compreensíveis’. Seja qual for a intensidade relativa com que se manifestem na ação as diferentes referências significativas subjacentes nesta ‘luta de motivos’, que são para nós também compreensíveis, mas tudo isso, conforme a experiência, é coisa que não se pode apreciar com toda segurança e, na maior parte, nem sequer de maneira aproximativa. (Weber, 2001: 405).

A explicação da ação social, ou melhor, a interpretação causal da ação humana não é constituída apenas por interpretações de sentido. Há fatores não intencionais que influenciam na ação. Assim também, isso a que na passagem citada o autor alude como "luta de motivos" deve ser levado em conta na explicação da ação social. Uma única ação pode orientar-se por "impulsos contrários que são todos ‘compreensíveis’". Assim também em Kelsen. Para ele o fato de um ordenamento estipular uma conduta como devida não implica em que a ação se adequará à este sentido normativo.

A sociologia compreensiva não descreve o comportamento humano como determinado por uma causalidade natural, à maneira da física, nem tampouco como um complexo de conteúdos de sentidos, como Kelsen descreve o Direito. A sociologia compreensiva vale-se de ambos em apenas uma descrição, ou melhor, a sociologia compreensiva explica o comportamento humano em termos de uma "causalidade social".

Segundo Calliot Théliène, comentando a obra weberiana:

Pois a compreensão da ação não era para ele uma alternativa à sua explicação nem mesmo um momento desta, interpolada numa argumentação que, em suas grandes linhas, ficasse sujeita aos objetivos e procedimentos dos saberes que ele qualificava de "nomológicos", e que em uma linguagem mais moderna chamaríamos de empírico-analíticos. (...) é manifesto que a compreensão e a explicação não são apresentadas como dois aspectos similares do conhecimento, mas como uma única e mesma démarche cognitiva.

- A compreensão da ação social, longe de constituir um simples elo da explicação causal, é o método explicativo específico da sociologia, que daí extrais, por essa razão, uma denominação. (Calliot-Thélène, 1995: 100).

A explicação weberiana da ação social é interpretativa e causal, e ambas são uma só coisa: interpretação causal. De fato a conexão de sentido é causa da ação social. Assim fala Tragtenberg: "para Weber, as ciências humanas utilizam a categoria da causalidade plenamente. Procuram, através da abstração, descobrir nas relações causais regras de causalidade, como explicar as relações causais concretas por meio de regras" (in: Weber, 2001: XXI).

Se concebermos o tipo ideal, tal como aqui mencionado, porém sem a consideração da ação individual, a construção da teoria "pura" econômica nada mais seria do que uma ordem normativa, cujo fundamento de validade seria "deve-se obedecer às leis do mercado" ou "do lucro".

A sociologia compreensiva de Weber é bastante mais ambiciosa do que a teoria kelseniana, de forma que ele não se contenta em estabelecer as conexões de sentido, mas busca oferecer uma explicação o mais precisa possível da ação humana. Weber então distingue, por um lado, a interpretação de sentido, e por outro, a explicação causal, para, enfim, apontar para uma "interpretação causal da conduta humana".

Chamamos de "motivo" a conexão de sentido que, para o agente e para o observador, se apresenta como o "fundamento" com sentido do seu comportamento. Dissemos que um comportamento que se desenvolve como um todo coerente é "adequado com referência ao seu sentido" na medida em que podemos afirmar que a relação entre seus elementos é uma "conexão de sentido" típica (ou, como costumamos dizer, "mais correta") no que diz respeito aos hábitos mentais e afetivos médios. (...) A explicação causal, portanto, significa a seguinte afirmação: que, de acordo com uma determinada regra de probabilidade – qualquer que seja o modo de calcular, que somente em casos raros e ideais pode ser demonstrado como sendo correto conforme os dados empíricos –, a um determinado processo (interno ou externo) efetivamente observado, segue-se um outro processo determinado (ou surge juntamente com ele). (...) uma interpretação causal correta de uma ação concreta significa que o desenvolvimento externo e o respectivo motivo foram conhecidos na sua conexão significativa. Uma interpretação causal correta de uma ação típica (tipo de ação compreensível) significa que o suceder considerado típico se apresenta como adequado no que se refere ao sentido (num determinado grau) e também pode ser comprovado empiricamente como causalmente adequado (num determinado grau). (Weber, 2001: 406).

Uma simples descrição de fatos relacionados à conduta humana sem qualquer conteúdo de sentido seria útil à explicação do comportamento, fatos como a fecundação humana, o movimento dos astros, fenômenos meteorológicos em geral, etc. Mas não constituiriam uma explicação desta conduta. Da mesma forma me parece que seria útil a descrição de puros conteúdos de sentido, em um estremo oposto, como faz Kelsen. Ou seja, uma descrição de conteúdos de sentido como crenças e normas em sua sistemática interna, uma descrição alheia ao comportamento humano. Seria esta também distinta da explicação da sociologia compreensiva e evidentemente incompleta, mas, assim penso, ainda seria útil.

Se falta a adequação de sentido, nós simplesmente nos encontramos em face de uma probabilidade estatística que não é susceptível de compreensão (ou, apenas compreensível de maneira incompleta). Por outro lado, a mais evidente adequação de sentido só pode ser considerada como sendo uma proposição causal correta para o conhecimento sociológico, na medida em que se prova a existência de uma probabilidade (determinável de certa maneira) de que a ação concreta tomará de fato, com determinada freqüência ou determinada aproximação (uma "média" concernente ao caso puro) a forma que foi considerada adequada com relação ao sentido. (Weber, 2001: 406).

A sociologia compreensiva de Weber não se restringe a uma explicação conforme uma causalidade natural (como seria, por exemplo, uma sociobiologia) mas ousa penetrar naquilo que é próprio à conduta humana, as conexões de sentido. Faz isto sem perder o caráter de ciência causal. De fato, oferece esta sociologia uma interpretação causal da conduta humana.

3.1.6 .O objeto de estudo da sociologia.

A sociologia weberiana, enquanto teoria da ação, tem o indivíduo como elemento principal de seu objetivo de estudo. "Ação como orientação significativamente compreensível do próprio comportamento só existe para nós enquanto comportamento de uma ou várias pessoas individuais" (Weber, 2001, 407). Neste sentido, instituições sociais e "corporações" não são personificados, mas vistos como "entrelaçamento de ações": "para a interpretação compreensiva da sociologia, pelo contrário, estas formações não são outras coisas que desenvolvimento e entrelaçamentos de ações específicas de pessoas individuais, já que somente estas podem ser sujeitos de uma ação orientada num sentido." (Weber, 2001: 407). Kelsen e Weber, por caminhos opostos, chegam a resultados semelhantes quanto a este ponto.

O objeto de estudo da sociologia, enquanto definido como a ação orientada por conexões de sentido, é distinto do objeto da psicologia.

Segundo Weber:

Sem dúvida, o sentido de um cálculo aritmético, pensado por alguém, não é, decerto, coisa "psíquica". A reflexão racional de um homem sobre si mesmo e sobre o fato se em função de determinados interesses exige-se ou não uma certa ação por causa das conseqüências que se espera dela, e a decisão que se toma em função desses raciocínios, são coisas cuja compreensão de maneira alguma nos facilitam as considerações "psicológicas". (...) Pelo contrário, a psicologia compreensiva pode prestar indubitavelmente serviços decisivos para a explicação sociológica no que se refere aos aspectos irracionais. Mas isso não altera em nada a situação básica metodológica. (Weber, 2001: 413).

O conteúdo de sentido e a ação por ele orientada são, portanto, objetos de uma ciência social, com método e explicação próprios. Tal ciência, diferentemente das demais, não apenas explica, mas também compreende seu objeto de estudo. (42) Esta ciência, enfim, é útil na medida em que auxilia o estudo e compreensão da história.

3.2. Kelsen e Weber

Apresentada, assim, sumariamente, o que Weber entende ser a sociologia, pretendo ressaltar alguns aspectos de aproximação entre a teoria weberiana e a kelseniana. Todo o texto que segue deve ser interpretado como uma hipótese. A aproximação das teorias de Kelsen e Weber aqui aventada não é precisa e não constituiu o objeto sobre o qual com mais vagar me debrucei. Especialmente no que concerne à obra weberiana se notará uma falta de profundidade e mesmo imprecisão que por ora apenas posso lamentar. No entanto espero ser capaz de mostrar, ao menos que: a) o objetivo de estudo de Kelsen e o de Weber são distintos, um sistema de conteúdos de sentido para aquele e a ação social para este; b) que a teoria weberiana é mais ampla que a de Kelsen e, por fim; c) que em alguma medida a teoria kelseniana pode ser aplicada à sociedade resultando em um corpo de conhecimento útil à sociologia compreensiva.

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Ambos os autores entendem que de um ponto de vista científico ou no campo daquilo que se pode falar baseado em fatos empíricos ou na lógica, é impossível decidir racionalmente entre valores opostos.

Ambos concordam que apenas o indivíduo humano age orientado por sentidos, e que estes sentidos constituem algo de qualitativamente diverso da natureza enquanto conjunto de elementos ligados por leis causais.

Pode-se traçar um paralelo entre o tipo ideal weberiano e a conduta conforme uma ordem normativa, em Kelsen, além do que, segundo Weber:

Chamamos de conteúdo de sentido de uma relação social: a) uma "ordem" apenas no caso em que a ação se orienta (de maneira média ou aproximativamente) em máximas que podem ser claramente dadas (...). De fato, a orientação da ação por uma ordem se dá entre os que participam desta ação por muitos motivos diferentes. Mas a circunstância de que, ao lado de outros motivos, pelo menos para uma parte dos que participam da ação, esta ordem é tida como obrigatória, ou como modelo, ou seja, algo que deve ser, aumenta a possibilidade de que a ação se oriente por ela e isso, num grau considerável. (Weber, 2001: 423).

Assim, uma teoria acerca destas ordens ou dos conteúdos de sentido que formam um tipo ideal abstratamente falando seria, pelo menos, útil.

Da mesma forma, em Kelsen, a norma é posta por uma ação dotada de sentido orientado à conduta de outrem, ou seja, por uma ação social no sentido weberiano do termo. Assim, a explicação da gênese de uma determinada ordem não se pode dar senão por uma sociologia compreensiva. Ainda, como o conhecimento formado a partir da teoria pura do Direito volta-se para as normas, não explica qualquer ação que por elas se orientem. Assim, a ação empírica, jurídica ou não, também fica a cargo da sociologia compreensiva explicar.

Segundo Kelsen:

A partir do ponto de vista da jurisprudência normativa, a ordem de pagar impostos difere da ameaça do bandido e do pedido do amigo pelo fato apenas de a ordem fiscal ter sido emitida por um indivíduo autorizado por uma ordem jurídica pressuposta como válida. A partir do ponto de vista da jurisprudência sociológica de Max Weber, a diferença é que o indivíduo que recebe a notificação interpreta esse aviso desse modo. Ele paga o imposto considerando o comando de pagar o imposto como um ato emitido por um indivíduo autorizado por uma ordem que o contribuinte considera válida. (Kelsen, 2000b: 254).

Enfim, enquanto Kelsen volta-se para explicar as normas, Weber volta-se para a explicação da ação.

Assim, penso que não só uma aproximação entre as teorias é possível como que seria algo de bastante útil ao conhecimento sociológico. Há aqui uma inversão das pretensões da sociologia do Direito. Enquanto esta busca explicar o Direito com base em elementos explicativos e teorias sociológicas, aqui buscar-se-á trazer elementos de uma teoria específica do Direito para colaborar com a explicação sociológica.

Não pretendo, é claro, que Kelsen ou Weber teriam efetivamente concebido um pensamento em tudo compatível ou que aproximando ambas teorias teríamos um todo coeso que explicasse a sociedade. Afirmo simplesmente que a teoria de Kelsen é uma teoria das ordens normativas e, portanto, de uma dimensão chave da sociedade, que se volta única e exclusivamente para a compreensão de conteúdos de sentido postos por ações humanas e, portanto, apesar de útil, carece de uma explicação acerca da ação social que cria os mesmos conteúdos de sentido e por eles se orientam. Afirmo ainda que Weber ao explicar a ação recorrendo a tipos ideais e ao pressuposto da racionalidade, ao que junta os desvios da ação racional, oferece uma teoria da ação que é demasiado complicada enquanto metodologia, uma vez que a construção ideal típica requer um profundo conhecimento histórico do objeto pesquisado. Assim, a assunção da teoria kelseniana por parte da sociologia compreensiva e a utilização da descrição das ordens normativas feita pela teoria pura do direito como tipos ideais facilitaria o trabalho daquele que analisa o comportamento humano baseado na sociologia compreensiva.

Segue-se um esboço desta aproximação de teorias no intuito de demostrar a compatibilidade do pensamento dos autores e de oferecer, dentro de evidentes limitações, uma sugestão de uma abordagem rigorosamente racional da sociedade e da ação social, que sustente uma neutralidade axiológica e ambicione uma explicação o mais completa e precisa possível.

Este esboço se dividirá em três partes, onde a primeira corresponde a uma abordagem da problemática acerca da fundamentação das ordens normativas, a segunda a uma teoria que busca a descrição e explicação lógico-sistemática destes conteúdos de sentido postos por ações sociais e, por fim, a terceira àquilo que entendo ser uma explicação compreensiva da ação social orientada pela ordem normativa de que se falou.

3.2.1. A legitimação da ordem

O conceito de ordem aqui referido é bastante semelhante em Kelsen e Weber. Esta ordem poderia ser definida como um complexo de conteúdos de sentido normativos ressaltando-se que uma norma pode prescrever não apenas um comportamento como também uma crença.

Assim, uma ordem válida é uma ordem eficaz em certa medida e considerada legítima. Weber afirma que "a validade de uma ordem significa para nós algo mais do que a mera regularidade do desenvolvimento de uma ação social, que é simplesmente determinada pelo hábito ou por uma situação de interesses" (Weber, 2001: 423). A validade de uma ordem é a idéia que considera a ordem "um mandamento cuja transgressão não somente traz prejuízos, mas que (normalmente) é rejeitada devido ao "sentimento do dever" (Weber, 2001: 423). No entanto, Weber afirma que "para a sociologia, a validade de uma norma consiste unicamente naquela possibilidade e probabilidade de poder orientar-se por esta idéia". (Weber, 2001: 425).

Nota-se aqui alguma semelhança com o conceito kelseniano que vê a ordem válida como uma ordem em conformidade com uma norma suposta como objetiva e que seja eficaz. Penso que se pode aproximar esta "probabilidade e possibilidade" às "condições de validade" que Kelsen apresenta, ou melhor: a eficácia. Desta forma, esta probabilidade é condição sine que non e, também, é um condição de relevância, uma vez que pouco sentido poderia haver em analisar de que forma uma ordem que não tem qualquer probabilidade de servir de orientação à conduta se legitima.

Weber encontra a legitimação de uma ordem em crença, que, aliás, é uma crença normativa, ou melhor, a crença em uma validade, o que, por fim, é o mesmo que o pressuposto kelseniano. No entanto Weber detalha de forma mais precisa e preocupada com a ação concreta as questões atinentes a esta validade.

Neste sentido, afirma o autor:

Os que agem socialmente podem atribuir uma validade legítima a uma determinada ordem: a) por causa da validade daquilo que sempre existiu b) por causa de uma crença afetiva (emotiva especialmente): validade do recente revelado ou do exemplar. c) Por causa de uma fé racionalizada com relação a fins: validade do revelado de forma absoluta e definitiva. d) Por causa de um estatuto positivo, em cuja legalidade se crê. Esta legalidade pode ter validade legítima: a) por causa de um entendimento entre os interessados b) Por causa do outorgamento por parte de uma autoridade que é considerada legítima e da respectiva submissão e obediência a ela. (Weber, 2001: 428).

Aquilo que sempre existiu é considerado válido. Algo válido é algo que não apenas é, mas que deve ser. A crença da validade da tradição assemelha-se ao que Kelsen chama de Constituição. Poderíamos, talvez, entender a idéia de que aquilo que é tradicional é válido como uma norma mais ou menos nestes termos: "Deve-se agir conforme à tradição", e, portanto qualquer comportamento tradicional passaria a ser descrito na forma de uma norma. Neste sentido, a crença na validade de uma norma seria algo semelhante ao fundamento de validade kelseniano.

É, portanto, a crença na validade de uma forma de pôr as normas o fundamento de validade de uma ordem normativa. No primeiro caso, por exemplo, a forma referida é a de que a norma deve estar concorde com princípios há muito observados. Ou melhor, uma norma é válida se posta há muito e observada desde então. O modo de pôr normas, ou melhor, as regras ou normas que regulam a produção normativa são chamadas, em Kelsen, de constituição, em sentido jurídico-positivo e material.

Se aceitássemos este paralelo, teríamos na passagem citada, quatro "constituições": a) "Deve-se agir conforme a tradição"; b) "deve-se seguir o recente revelado ou o exemplar"; c) "Deve-se orientar-se por determinado valor absoluto"; d) "Deve-se obedecer à legalidade". Haveria assim um certo paralelismo nos conceitos de norma fundamental de Kelsen e de crença na validade em Weber. Uma "dominação", segundo Weber (Weber, 1997: 170) requer tanto um "quadro administrativo" para executar as ordens, como a obediência dos dominados: "Debe entenderse por ‘dominación’, de acuerdo con le definición ya dada, la probabilidad de encontrar obediencia dentro de un grupo determinado para mandatos específicos (o para toda classe de mandatos)". (Weber, 1997: 170) e "’obediencia’ significa que la acción del que obedece transcurre como si el contenido del mandato se hubiera convertido, por si mismo, em máximo de conducta; y eso unicamente en mérito de la relación formal de obediencia, sin tener en cuuenta la propria opinión sobre el valor o desvalor del mandato como tal" (Weber, 1997: 172).

A primeira forma de legitimação seria a crença na validade da tradição:

A validade de uma ordem por causa do caráter sagrado da tradição é a forma mais universal e mais primitiva. O medo de determinados prejuízos mágicos fortalece a resistência psíquica a qualquer tipo de mudança de formas habituais e inveterados de comportamento, e os vários interesses que costumam ser vinculados à manutenção da submissão à ordem existente cooperam no sentido de sua conservação. (Weber, 2001: 428).

Weber afirma que a forma mais primitiva de dominação é a tradicional, ancorada em sanções mágicas, ou melhor, no princípio retributivo. O autor explicita, com maior detalhe, ou de maneira nítida, tanto o fundamento de sua validade quanto aspectos gerais de sua constituição. O fundamento de validade de uma ordem normativa deste tipo "descansa en la santidad de ordenaciones y poderes de mando heredados de tiempos lejanos, ‘desde tiempo inmemorial’, creyéndose en ella en méritos de esa santidad" (Weber, 1997: 180). Os princípios e normas já "longe no tempo" são supostos como válidos.

Uma ordem normativa que assim estabelecida impõe, por seu próprio fundamento de validade, que a produção ou legitimação das normas se dará tanto por um princípio estático como por um dinâmico. Isto porque se é que seja possível alguma produção normativa, esta se dará por três vias: interpretação de normas postas "desde tempos imemoriais", revelação de normas recuperadas de "tempos imemoriais" e exercício de autoridade legislativa conferida por normas imemoriais. Estas seriam "normas constitucionais" dessa ordem:

No se obedece a disposiciones estatuidas, sino a la persona llamada por la tradición o por el soberano tradicionalmente determinado (...) El señor o los señores están determinados en virtud de reglas tradicionalmente recebidas (...) Los mandatos de esta persona són legítimos de dos maneras: a) en parte por la fuerza de la tradición que señala inequivocamente el contenido de los ordenamientos, así como su amplitud y sentido, tal como son creídos (...); b) en parte por el arbitrio libre del señor, al cual la tradición le demarca el ámbito correspondiente (...) Es impossible la "creación" deliberada, por declaración, de nuevos princípios jurídicos o administrativos. Nuevas creaciones efectivas sólo puedem ser legitimadas por considerarse válidas de antaño y ser reconocidos por la "sabiduría" tradicional. (Weber, 1997: 180/ 181).

Um outro tipo de dominação ou de legitimação de uma ordem normativa seria o "carismático".

Neste tipo de dominação é bastante fácil confundir-se a eficácia e a legitimidade, uma vez que quando o líder carismático perde o êxito em fazer seus prodígios ou fazer cumprir sua vontade, cai a validade da ordem.

Si le falta ade modo permanente la corroboración, si el agraciado carismático parece abandonado por su dios o de su fuerza mágica o heróica, le falla el éxito de modo duradero (...) entonces hay la probabilidad de que su autotidad se dissipe. (Weber, 1997: 194).

No entanto, mesmo aqui a validade da ordem não se assenta no fato da eficácia. Destaca-o o próprio Weber, fazendo notar que apesar de depender do reconhecimento, por parte de seus súditos, de seus poderes, o líder carismático não tem neste reconhecimento o fundamento de sua dominação.

Sobre la validez del carisma decide el reconocimiento (...) por parte de los dominados; reconocimiento que se mantiene por ‘corroboración’ de las supuestas cualidades carismáticas – siempre originariamente por medio del prodigio. Ahora bien, el reconocimiento (en el carisma genuino) no es el fundamento de la legitimidad, sino un deber de los llamados, en méritos de vocación y de la corroboración, a reconocer esa cualidad. (Weber, 1997: 194).

De fato o fundamental de validade é uma norma fundamental segundo a qual se deve obedecer àquele que é "exemplar", "prodigioso" ou que possui dotes sobrenaturais.

Debe entenderse por "carisma" la cualidad, que pasa por extraordinária (...), de una personalidad, por cuya virtud se le considera en posesión de fuerzas sobrenaturales o sobrehumanos – o por lo menos específicamente extracotidianas y no asequibles a cualquier otro –, o como enviados del dios, o como ejemplar y, en consecuencia, como jefe, caudilho, guía o líder. (Weber, 1997: 193).

Eis o fundamento de validade: deve-se obedecer àquele que demonstra dotes sobrenaturais. No silogismo normativo esta seria a premissa maior. A premissa menor seria a de que determinado indivíduo possui tais dotes sobrenaturais, donde a conclusão seria a de que se deve obedecer a este indivíduo.

Este tipo de dominação também é bem propenso a ser entendido como desprovido de constituição, ou melhor, desprovido de um conjunto de normas que regulamentem a produção legislativa.

Assim:

No existe reglamento alguno, preceptos jurídicos abstratos, ni aplicación racional del derecho orientada por ellos, mas tampoco se dan arbitrios y sentencias orientados por precedentes tradicionales, sino que solamente son lo decisivo las creaciones de derecho de caso en caso, originariamente sólo juicios de Dios y revelaciones. (Weber, 1997: 195).

No entanto o que precede não implica na ausência de uma constituição, em sentido kelseniano. De fato, Weber mostra regras, por exemplo, de formação do quadro administrativo que é órgão aplicador, e como toda aplicação de norma – salvo a aplicação de um ato coercitivo – é também produtor de normas, estas regras são constitucionais. "No hay ninguna ‘colocación’ ni ‘destituición’, ninguna ‘carrera’ ni ‘ascenso’, sino sólo llamamiento por el señor según su propria inspiración fundada en la calificación carismática de vocado" (Weber, 1997: 194).

Dizer que o líder carismático pode chamar qualquer um para seu séquito é enunciar um dever, uma autorização. Ao mesmo tempo não se pode pertencer ao séquito de outra forma, donde dizemos que há, também, uma proibição. Não se deve, ainda segundo a ordem carismática, haver hierarquia entre os vocacionados. Devem estes, porém, permanecer subordinados ao líder.

O processo de produção legislativa também é constituído por normas, ou melhor, pela norma segundo a qual deve-se obedecer à decisão do líder carismático para o caso específico em questão, seja esta decisão qual for. "Sin embargo, en su aspecto material rige en esta dominación carismática genuina la frase: ‘estaba escrito, pero yo en verdad os digo" (Weber, 1997: 195).

O fundamento de validade da ordem normativa carismática é, então: "deve-se obedecer a um determinado indivíduo que possui dotes extra-cotidianos" e sua constituição prescreve pelo menos: "o líder pode por qualquer norma seja geral ou individual, de acordo com o procedimento que considerar conveniente. O corpo administrativo será formado por pessoas chamadas diretamente pelo líder carismático."

Weber apresenta um outro tipo de dominação que geralmente é deixado de lado, a saber, a dominação fundada na crença na racionalidade de certos valores, ou melhor, no caráter absoluto dos mesmos. Esta forma de dominação difere da forma chamada de racional legal porque na primeira se crê na racionalidade de um valor, e, na segunda, na racionalidade de uma forma da ordem normativa.

Segundo Weber:

O tipo mais puro de uma validade com relação a fins é o "direito natural". Qualquer que tenha sido a sua limitação frente a suas pretensões ideais, não pode negar-se entretanto, a influência efetiva e não insignificante dos seus preceitos logicamente deduzidos sobre o comportamento, os quais temos de separar dos preceitos revelados, dos estatuídos e dos direitos tradicionais (Weber, 2001: 429).

Esta forma de fundamentação normativa aceita, única e exclusivamente, o princípio estático para a dedução de normas válidas a partir da norma fundamental. Talvez seja isto que praticamente inviabilize sua efetivação como uma ordem jurídica. Seu fundamento de validade é simples: deve-se obedecer a determinado preceito. E sua constituição: pode-se deduzir logicamente, como do geral para o particular, novas normas a partir do preceito entendido como racional.

De fato, a validade aqui se funda na crença (ou fundamento de validade) de que se obedecer à razão e de que a razão pôs determinada norma. No entanto, como a razão não é volição, a não ser que se entenda haver uma autoridade competente para dizer qual é a vontade da razão, ou melhor, um corpo de "sábios" ou "cientistas" que fossem capazes de deduzir, com base na razão, as normas gerais e individuais deste ordenamento. Isto porque a razão não pode ser erigida em autoridade legislativa, o que implicaria em que houvesse um órgão que arroga-se para si a tarefa de legislar em nome da razão, o que redundaria na aceitação de um princípio dinâmico de produção normativa.

A moral dos indivíduos é, parece-me, em grande parte baseada em uma fundamentação deste tipo. Assim, se não encontra expresso em um ordenamento social mais amplo, esta dominação de "direito natural" ainda é muito útil para a compreensão da ação. Por exemplo, o princípio segundo o qual a vida humana deve ser preservada serve, para muitos, como uma norma pressuposta da qual se derivam muitas outras, como: não se deve aceitar a guerra de conquista; a eutanásia; o aborto; etc. Uma sociologia compreensiva, já por isso, não abriria mão desta forma de fundamentação. Isto sem mencionar que muitos dos movimentos sociais contemporâneos se baseiam em fundamentos do mesmo tipo, como os movimentos ecologistas (deve-se proteger a natureza) e feminista (não deve haver supremacia de gênero).

Por fim, a última forma de estabelecer a validade de um ordenamento normativo apresentada por Weber é a crença na legalidade de uma ordem posta arbitrariamente, ou melhor, deliberadamente. "A forma de legitimidade mais corrente é a crença na legalidade: a obediência a preceitos jurídicos estatuídos segundo o procedimento usual e formalmente corretos." (Weber, 2001: 429).

Esta forma de legitimidade, assim como as demais, assenta-se na crença em uma validade, ou uma norma, e tem estabelecido o processo de produção normativa. As normas, nesta forma, são sabidamente arbitrárias e mutáveis, o processo de sua formação é claro e evidencia que os produtores de normas são indivíduos. Portanto, enquanto princípio de validação prevalece com relação a esta forma de legitimidade, o princípio dinâmico.

Weber indica algumas idéias que estariam na base desta forma de dominação, chamada de dominação racional-legal, ou, simplesmente, legal:

1.- Que todo derecho, "pactado" u "otorgado", puede ser estatuido de modo racional – racional con arreglo a fines o racional con arreglo a valores (o ambas cosas) –, con la pretensión de ser respetado, po lo menos, por los miembros de la associación (...) 2- Que todo derecho según su essencia es un cosmo de reglas abstratas (...), que la judicatura implica la aplicación de esas reglas al caso concreto; y que la administración supone el cuidado racional de los intereses previstos por las ordenaciones de la asociación (...) 3- Que el soberano (...), en tanto que ordena y manda, obedece a su parte al orden impersonal (...) 4- Que el que obedece solo lo hace en cuanto miembro de la asociación y solo obedece "al derecho"(...) 5- (...) Que los miembros de la asociación, en tanto que obedecen al soberano, no lo hacen por atención a su persona, sino que obedecen a aquel orden impersonal; y la competencia limitada, racional y objetiva, a él otorgada por dicha orden. (Weber, 1997: 174).

Nesta passagem encontramos mesclados o fundamento de validade e normas constitucionais – lembro que uso o termo no sentido kelseniano. É quando Weber analisa a forma de dominação do direito moderno que percebemos sua abordagem ultrapassar a de Kelsen no que tange ao fundamento de validade. Este autor afirma ser o fundamento de validade de uma ordem jurídica o pressuposto de que sua constituição é válida, mas, apesar de definir a constituição como as normas que definem a produção normativa, Kelsen deixa a impressão de que tais normas seriam aquelas postas pela constituinte, pelo legislador e pelo costume apenas. Seu intento é não recorrer a nada extra-jurídico. Por dar-se a liberdade de fazê-lo, Weber pode encontrar outras normas que são também pressupostas válidas e, por isso, podem ser entendidas como normas constitucionais.

É certo que de fatos não decorrem normas, mas na medida em que aceitamos o conceito Kelseniano de sociedade como uma ordem normativa, é perfeitamente possível que a ordem jurídica encontre fundamentação em normas da ordem social. Note-se que quando Kelsen fala do fundamento de validade, afirma que este é uma norma pressuposta segundo a qual se deve obedecer à constituição. Esta é um conjunto de normas acerca da produção e aplicação de normas. Portanto o fundamento de validade é a crença (ou pressuposição) de que um determinado conjunto de normas é válido. Weber afirma, e é plausível, que a dominação racional legal assenta-se na crença nos seguintes elementos: a) racionalidade da forma jurídica; b) limitação dos poderes do soberano; c) limitação da submissão do súdito. Estas crenças seriam já partes da constituição, bastando que, sabendo que são crenças normativas, sejam expressas no imperativo: a) a forma jurídica deve ser racional; b) o poder do soberano deve ser limitado e c) a submissão deve ser limitada. Quando se diz que a forma jurídica deve ser racional estão contidas duas idéias básicas: 1- deve ser objetiva, claramente expressa, de modo compreensível e 2- deve ser relativamente estável, transformando-se de uma maneira claramente posta anteriormente.

Se expressarmos estas crenças normativas em sentenças negativas teremos que: a) Não se deve obedecer a uma ordem jurídica pessoal, imprevisível ou incompreensível; b) não se deve obedecer a um soberano absoluto e c) não se deve obedecer de maneira absoluta e incondicional.

Estas são três normas básicas da constituição do Direito moderno e o fundamento de validade é uma norma pressuposta que afirma ser esta constituição devida. No entanto não são normas jurídicas, mas fazem parte de outros ordenamentos normativos. Assim, a ética protestante não admite a submissão incondicional senão a Deus e o ordenamento do chamado "mercado" exige estabilidade. Não afirmo que são estes ordenamentos que fundamentam o Direito, mas que o Direito, enquanto um ordenamento social, se entrelaça com outros.

Assim, diríamos que se deve obedecer a uma norma individual porque posta de acordo com a lei geral, deve-se obedecer à constituição porque ela é racional e "não-absoluta" e deve-se obedecer a ordens formalmente racionais e não absolutas.

Cumpre observar, por fim, que a crença (normativa) que constitui a norma fundamental pode ser encontrada em diferentes etapas de uma ordem normativa. O filho que perguntara por que devia ir à escola poderia obter como resposta a de que seu pai havia ordenado e, ao questionar a razão de obedecer ao pai, poderia já ouvir a resposta de que não cabe indagar a validade desta ordem. Assim, a delimitação de uma ordem normativa pode ser arbitrária, ou melhor, a definição de ordem normativa como um sistema de normas vinculadas por um mesmo fundamento de validade comporta também qualquer subsistema, bastando que se pressuponha uma outra norma como norma fundamental.

Enfim, a norma fundamental pressuposta é a crença na validade de uma ordem. Tal crença é conteúdo de sentido das ações humanas, e, enquanto tal, objeto de estudo de uma sociologia histórica e compreensiva.

3.2.2. A "teoria Pura da Sociedade"

A sociedade é algo distinto dos indivíduos, mas criado por eles. A sociedade não é um dado, mas um artefato que de alguma forma é elaborado pelos indivíduos humanos.

Constitui um fato fundamental o de que, quando os homens vivem em comum num grupo, surge na sua consciência a idéia de que uma determinada conduta é justa ou boa e uma outra é injusta ou má, ou seja, de que os membros do grupo, sob determinados condições, se devem conduzir por determinada maneira, e isto num sentido objetivo, por tal forma que o indivíduo singular que num caso concreto deseje uma conduta oposta e de fato se conduza conforme seu desejo tem consciência de não se ter conduzido como se deve conduzir. Isto significa que, na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a representação de normas que regulam a conduta entre eles e vinculam os indivíduos. (Kelsen, 2000: 92).

Uma teoria "pura" da sociedade seria, conforme a analogia que pretendo realizar, uma teoria que não estaria voltada para a descrição e explicação do funcionamento da mente humana, nem do mecanismo que criou a sociedade, nem tampouco com o comportamento humano concreto. A forma como se criam os conteúdos de sentido não é seu objetivo, mas sim os próprios conteúdos de sentido. A forma como os homens se orientam pelos sentidos também não o é. Apenas os próprios conteúdos de sentido figurariam como objeto de estudo de uma tal teoria.

Assim é que Kelsen, ao analisar que chama de "ordens normativas" não faz, necessariamente, referência à conduta efetiva de homens, mas sim aos conteúdos de sentido, descrevendo-o segundo os princípios lógicos. Kelsen formulou sua teoria, ao menos em grande parte, de maneira suficientemente abstrata, de modo que muito daquilo que o autor fala acerca do Direito se aplicaria à sociedade enquanto uma ordem normativa. Buscarei apresentar as idéias que julgo ser úteis para a descrição e explicação da sociedade, enquanto ordem normativa.

3.2.3. Dinâmica "social"

É importante que, antes de mais, se defina o conceito de sociedade:

A sociedade, como objeto de uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros. Estas pertencem à sociedade na medida em que a sua conduta é regulada por uma tal ordem, é prescrita, é autorizada, ou é positivamente permitida por essa ordem. Quando autorizada, ou é positivamente permitida por essa ordem. Quando dizemos que uma sociedade determinada é constituída através de uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de uma pluralidade de indivíduos, devemos ter consciência de que ordem e sociedade não são coisas diferentes uma da outra, mas uma e mesma coisa, de que a sociedade não consiste senão nesta ordem e de que, quando a sociedade é designada como comunidade, a ordem que regula a conduta recíproca dos indivíduos é, no essencial, o que há de comum entre esses indivíduos. (Kelsen, 2000: 96).

Assim como o Direito, a sociedade é uma ordem normativa. Enquanto tal é o entrelaçamento de elementos (crenças e fatos) segundo o princípio da imputação (43). Uma ciência desta sociedade visa descrevê-la de forma clara e não contraditória e, portanto, assume-se o princípio da não-contradição.

Como aqui se trata de trazer idéias formuladas sobre o Direito para um objeto mais amplo, exporei tais idéias de forma mais breve, apenas apontando pontos que penso ser de mais difícil aplicação daquelas idéias.

Diferentemente do Direito, a sociedade não é redutível a apenas uma ordem normativa ou um fundamento de validade. É, antes, um complexo não apenas de normas, mas de ordens normativas. Portanto, não cabe buscar uma "norma fundamental da sociedade".

Aquele que tem como objetivo descrever este complexo de ordens normativas, de forma clara e precisa as ordens normativas que considere necessárias. Para tanto, uma vez que uma ordem normativa é um conjunto de normas que compartilham o mesmo fundamento de validade, basta que se identifique as diferentes normas, e tal se faz pondo em questão a validade das normas.

A norma fundamental é a crença na validade de uma ordem. Esta crença torna a norma que é seu objeto o ponto inicial numa série de imputação. Este ponto, no entanto, é arbitrário, uma vez que não há qualquer razão para não se indagar a validade das ordens de Deus ou da Constituição. Assim sendo, ao "cientista social normativo" caberia identificar critérios a partir dos quais tomar uma crença normativa como norma fundamental. Em geral, me parece, as "constituições" são de identificação mais clara. Assim, as regras acerca de quem é, como deve agir e o que e como pode legislar o chefe de família, de uma religião, de um grupo de amigos, de uma ONG ou de um Estado indicam que se crê na validade das normas postas em sua conformidade.

Se tomarmos, por exemplo, ema determinada escola, pode ser que o aluno deva obedecer às ordens da professora, da orientada e dos funcionários; e estes devam obedecer à coordenadora, assim como a professora e a orientadora; a professora pode dever obedecer também a orientadora. Isto segundo o princípio dinâmico, e de forma bem simples. Mas nenhum dos que podem comandar estão autorizados a, por exemplo, ferir um aluno, além de estar limitados a comandar acerca de determinado tema, ou limitados a um espaço ou tempo. Pode ser que a professora ordene que não se diga determinadas palavras tidas por insultos. Pode bem ser que também a mão de um determinado aluno tenha ordenado a mesma norma, bem como o padre, o personagem de desenhos animados (herói), etc. Ainda que diante do comportamento correspondente dos alunos, há de se levar em consideração que de um dever não decorre um ser, e que a correspondência não se aplica pela ordem.

Se voltarmos a atenção para o indivíduo teremos a situação de "obrigatoriedade" da norma. No entanto, enquanto "pura" teoria da sociedade, o estudo volta-se para as próprias normas, e as normas postas pela mãe e pela professora não são entendidas como idênticas. Não se deve falar determinada palavra porque a professora ordenou, não é equivalente a não se deve falar determinada palavra porque a mãe mandou. O conteúdo da norma inferior é o mesmo, mas não a fundamentação da mesma. Segundo Kelsen uma revolução pode revogar apenas a Constituição sem revogar as leis inferiores, no entanto, a recepção de tais leis, ainda assim, constitui criação normativa.

Em regra, por ocasião de uma revolução destas, somente são anuladas a antiga constituição e certas leis politicamente essenciais. Uma grande parte das leis promulgadas sob a antiga constituição permanece, como costuma dizer-se, em vigor. No entanto, esta expressão não é acentuada. Se estas leis devem ser consideradas como estando em vigor sob a nova constituição, isto somente é possível porque foram postos em vigor, expressa ou implicitamente, pelo governo revolucionário. O que existe, não é uma criação de Direito inteiramente nova, mas recepção de normas de uma ordem jurídica por uma outra; tal como, e.g., a recepção do Direito romano pelo Direito Alemão. Mas também essa recepção é produção de Direito. (Kelsen, 2000: 233).

Assim, quando se vale da identificação de normas fundamentais para distinguir diversas ordens normativas, deve-se ter em conta que não se trata de separar as normas em ordens normativas, mas de identificar as normas que são derivadas de cada norma fundamental.

Um segundo ponto que creio ser valer a pena destacar é que o princípio estático parece desempenhar papel muito importante nas ordens sociais. Há muitas normas que são sustentadas pela crença na validade de seu conteúdo, e delas se derivam outras mais. Talvez sejam exemplos as normas segundo as quais deve-se agir com os outros como se espera que ajam consigo; deve-se respeitar a vida humana; não se deve demonstrar medo; etc. Estas normas ainda que outrora fundamentadas, por exemplo, pela norma segundo a qual se deve obedecer a Deus parecem ser, hoje, pontos iniciais de séries de imputação.

Acerca da estrutura escalonada das normas fica o mesmo que foi dito acerca do Direito.

3.2.4. Estática "Social"

De fato a norma "você deve ir à escola ou será posto de castigo", é o mesmo que "você será posto de castigo se não for à escola". A norma põe como dever ser uma sanção, condicionada a certo ato ou omissão.

Uma norma jurídica põe como sanções, penas ou recompensas, mas predominantemente penas. Tais penas são, em geral, privação de bens, da vida, da liberdade ou da saúde. As normas sociais põe como sanções outras penas, já que a ordem jurídica veda que se ponham as penas mencionadas, que ela reserva para si. (a exceção das ordens "ilícitas", que põe mesmo as sanções vedadas pela ordem jurídica).

É por isso duvidoso que seja sequer possível uma distinção entre ordens sociais sancionadas e ordens sociais não sancionadas. A única distinção de ordens sociais a ter em conta não reside em que umas estatuem sanções e outras não, mas nas diferentes espécies de sanções que estatuem. (...) As sanções estabelecidas numa ordem social têm ora um caráter transcendente, ora um caráter socialmente imanente. Sanções transcendentes são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana (...) [sanções imanentes] são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade (...) tais sanções podem consistir na simples aprovação ou desaprovação, expressa de qualquer maneira, por parte dos nossos semelhantes, ou em atos específicos, determinados mais rigorosamente pelo ordenamento social, o qual designa os indivíduos por quem esses atos são realizados ou postos num processo pelo mesmo ordenamento regulado. Nesta última hipótese podemos falar de sanções socialmente organizadas. (Kelsen, 2000: 31).

A fim de descrever uma determinada ordem normativa, é necessário que se descreva sob que pressupostos entende-se que qual indivíduo realizará de que forma que ato coercitivo. Assim, também acerca das ordens sociais cabe o conceito de "norma não-autônoma", referindo-se àquela que depende de uma outra que estatua uma sanção.

Como conceitos auxiliares da ordem jurídica tem-se o conceito de direitos subjetivos (ou reflexos), deveres jurídicos e pessoa jurídica – que em Kelsen não se distingue da pessoa física. Tais conceitos, se tomados para o âmbito da sociedade seriam próximos ao que se costuma chamar "papel social". A diferença é que este último em geral se refere ao desempenho de uma "função social" que de alguma forma é necessária à sociedade. Entendida como uma ordem normativa uma sociedade não tem "necessidade". Ela não vive, e sequer se mantém. Não passa de um imenso complexo de conteúdos de sentido, não morre e não vive, e, se deixa de ser "válida", ainda pode ressurgir.

O papel social é um conjunto de funções ou atribuições de um indivíduo frente a uma determinada instituição. O linguajar de Kelsen é bastante mais preciso e claro quando define a pessoa (jurídica) como o conjunto de direitos subjetivos (reflexos) e deveres (jurídicos) que têm como ponto terminal da série imputativa a conduta de um indivíduo ou corporação (o que redundaria no mesmo a não ser porque a determinação do indivíduo sujeito de cada dever ou direito é delegada à corporação). E define o direito subjetivo como o reflexo de um dever jurídico e este como nada mais do que a descrição de uma norma individual.

Um determinado indivíduo classificado por um ordenamento normativo como "Padre", por exemplo, tem o dever de manter-se celibatário, de participar de certas reuniões, de atender os fiéis, e tem o direito de, por exemplo, por exemplo, receber um salário ao fim do mês, de um repouso semanal às segundas-feiras, de fazer o sermão nas missas ou de celebrar a mesma missa.

No entanto, como a sociedade não é apenas uma mas várias ordens normativas, a conduta de um mesmo indivíduo corresponde a inúmeras "pessoas" (no sentido jurídico), uma para cada ordenamento que incida sobre a mesma conduta. Assim, tem determinados direitos e deveres segundo um ordenamento, como, digamos, a família, tem outros direitos e deveres segundo sua profissão, segundo seu grupo de amigos, segundo os costumes da vizinhança, segundo o Estado, a Igreja, etc.

Cumpre agora notar que por "relação social", assim como "relação jurídica" seria entendia a relação entre normas sociais e entre ordens normativas. Não seria propriamente uma relação entre indivíduos que se orientam por um conteúdo de sentido (crenças e normas) mas sim relações entre os próprios conteúdos de sentido. Isto, é claro, do ponto de vista de uma "Teoria Pura da Sociedade".

Do ponto de vista de uma ciência do Direito que descreva o ordenamento jurídico em proposições jurídicas, a função daquele ordenamento consiste em ligar a certos pressupostos, por ele determinados, um ato de coerção, por ele igualmente fixado, como conseqüência (...) A relação matrimonial, por exemplo, não é um complexo de relações sexuais e econômicas entre dois indivíduos de sexo diferente que, através do Direito, apenas recebem uma forma específica. Sem uma ordem jurídica não existe algo como um casamento. O casamento como relação jurídica é um instituto jurídico, o que quer dizer? um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos no sentido técnico específico, que, por sua vez, significa: um complexo de normas jurídicas. (Kelsen, 2000: 162, 187).

Da mesma forma, aquele que se volta para a descrição da sociedade como ordem normativa descreveria uma relação social como um conjunto de normas relacionadas, "determinando" a conduta de um ou mais homens, sento tais normas pertencentes ou não a um mesmo ordenamento jurídico. Para a descrição dos conteúdos de sentido não é necessária uma referência direta à ação dos indivíduos. Pode-se ainda descrever relações entre tais conteúdos sem esta referência, de modo que o estudo da sociedade e o estudo do comportamento dos homens em relação uns com os outros são duas coisas distintas.

Quanto à interação entre normas de ordenamentos diferentes cabe dizer que não há contradição possível entre elas. A afirmação segundo a qual "A" deve fazer "a" segundo o ordenamento "" não é contraditória com uma outra segundo a qual "A" não deve fazer "a" segundo "". O dever ser de uma norma é válido pela aceitação de uma norma que a fundamente, em última instância esta norma é pressuposta. Podem-se pressupor várias normas. Assim, a validade de uma norma é relativa ao ordenamento de que se trata, ou ainda, o "dever ser" é sempre "dever ser segundo uma ordem". Portanto, não há contradição possível entre normas de ordenamentos diferentes (tais ordenamentos são não-contraditórios apenas internamente), há apenas conflitos entre normas que, apesar de ser um problema interessante para a compreensão da ação, do comportamento e do pensamento humanos, não o é para um conhecimento dirigido ao sentido das ordens sociais, uma vez que a impossibilidade de contradição inviabiliza o estudo lógico destes conflitos no plano de seus conteúdos. Uma teoria pura da sociedade enquanto complexo de ordens normativas é absolutamente incapaz de solucionar conflitos entre normas de ordenamentos diferentes, mas é perfeitamente capaz de identificar sua existência.

Kelsen, ao diferenciar a ciência social normativa da sociologia, estabelece que aquela é a ciência que estuda os conteúdos de sentido criados pela mente humana e que servem para orientação da mesma. Já a psicologia teria por objeto de estudo a própria mente humana, seus mecanismos e processos, causalmente determinados. Uma teoria pura da sociedade, portanto, analisa o conteúdo de sentido criado pela mente humana, não a ação humana e nem tampouco a própria mente humana. Em analogia com a teoria pura do direito, a da sociedade tem por objetivo descrever e explicar as diferentes ordens sociais enquanto sistemas de conteúdos de sentido não-contraditórios (internamente) (44) que interferem uns nos outros, seja por um conflito de normas, seja por normas que se reforçam.

Esta postura, no entanto, é alheia ao estudo do indivíduo. Volta-se apenas para os conteúdos de sentido. É, para uma ciência que estuda o comportamento humano, algo semelhante a uma gramática para uma que estude a linguagem. sua precisão e objetividade (buscadas) implicam na limitação do objeto e, portanto, da capacidade explicativa.

Porém, um conhecimento assim construído pode ser de alguma valia para uma teoria da ação social, na medida em que a descrição de uma relação social enquanto relação de conteúdos de sentido normativos sirva para esta teoria como "tipos ideais" que auxiliam a compreensão.

3.2.5. Uma teoria da ação - A ação social.

A sociologia weberiana é uma ciência da ação, não tanto uma ciência da "sociedade". Pretendo aqui mostrar que na visão de Weber a ação social supõe um sentido, e que este sentido seja dirigido a outrem. Esta ação social se "orienta" por "ordens sociais", que, a meu ver, nada mais são do que sistemas de conteúdos de sentido, conforme o conceito kelseniano. Afirmar isto não é, para Weber, explicar a ação social, uma vez que resta explicar a influência dos fatores irracionais da ação e de certos interesses individuais que entram no "cálculo" racional.

O que segue no trabalho é uma tentativa de exposição do pensamento weberiano acerca da explicação da ação, durante a qual tentarei mostrar que a teoria pura da Kelsen poderia oferecer uma valiosa ajuda à empreitada da sociologia compreensiva. A idéia é, basicamente, a seguinte: Kelsen trata apenas dos conteúdos de sentido, como sistemas logicamente compreensíveis, enquanto que Weber trata da ação social, que se orienta por conteúdos de sentido. Penso que a teoria pura de Kelsen é abarcada pela sociologia compreensiva.

A respeito do conceito de "ação social" em Weber, há duas características essenciais: em primeiro lugar, ela se dirige ou se orienta à ação ou comportamento de outrem, e, em segundo lugar, é dotada de sentido.

Eis como se expressa o autor:

A ação social (incluindo tolerância ou omissão) orienta-se pelas ações dos outros, as quais podem ser ações passadas, presentes ou esperadas como sendo futuras (por exemplo: vingança por ataques anteriores, réplica a ataques presentes, medidas de defesa diante de ataques futuros). (Weber, 2001: 415).

A primeira condição para que se identifique um determinado comportamento humano como uma ação social é ser ele orientado pela conduta de outrem. Não tem, porém, de ser relacionado de alguma maneira física necessariamente. Pode um indivíduo armar-se por esperar que outro planeje contra ele um ataque sendo que este outro sequer o conheça. Esta ação, no entanto, mesmo não sendo fisicamente relacionada à outra conduta, tem um sentido que o é. E esta é a segunda condição para afirmar que um comportamento humano é uma ação social: ter um sentido. Assim, o choque entre dois ciclistas distraídos, por não ter qualquer sentido, não é ação social. Pode, no entanto ganhar sentido após o fato, como quando um dos indivíduos atribui ao outro uma responsabilidade pelo acontecido (cf. Weber, 2001: 415).

Assim definida, uma "ação social não é idêntica a) nem a uma ação homogênea de muitos, b) nem a toda ação de alguém influenciada pelo comportamento dos outros." (Weber, 2001: 416). Os exemplos dados pelo autor são bastante ilustrativos: se numa rua vários indivíduos abrem o guarda-chuva ao mesmo tempo, isto não quer dizer que haja aí uma ação social (Weber, 2001: 416), uma vez que, mesmo juntos, o sentido da ação de um não se orienta em função do outro. Seria diferente, por exemplo, se um homem, por entender-se na obrigação cavalheiresca de oferecer ajuda a uma dama, abrisse e oferecesse a ela o guarda-chuvas. O segundo caso que Weber afirma não tratar-se de ação social é o comportamento imitativo, e que muitas vezes se dá no comportamento de massas (Weber, 2001: 416).

Escreve o autor:

O simples fato, porém, de que alguém aceite para si uma determinada atividade, apreendida em outros e que parece conveniente para seus fins, não é uma ação social na nossa acepção. Pois neste caso, a ação não se orientou pela ação dos outros, mas, pela observação, alguém se deu conta de certas probabilidades objetivas que, em seguida, orientaram seu comportamento. A sua ação, portanto, foi determinada causalmente pela ação alheia, mas [não] pelo sentido desta ação alheia. Quando, ao contrário, se imita um comportamento alheio porque está em "moda" ou porque é tido como "distinto" enquanto estamental, tradicional, exemplar ou quaisquer motivos semelhantes, então sim, temos uma relação de sentido no que se refere ã pessoa imitada, a terceiras pessoas ou a ambas. (Weber, 2001: 416).

Portanto, a ação social é uma ação com sentido orientada à conduta de outrem. Weber apresenta, então, o que chama de "razões que definem a ação social", ou seja, como o comportamento humano se orienta pelos conteúdos de sentido (se não houver conteúdos de sentido, não é ação social).

3.2.6. Tipos de ação social – tipos de racionalidade.

Há, para Weber, quatro tipos de ação social.

A ação social, como toda ação, pode ser: 1) racional com relação a fins; determinada por expectativas no comportamento tanto de objetos do mundo exterior como de outros homens, e, utilizando essas expectativas como "condições" ou "meio" para o alcance de fins próprios racionalmente avaliados e perseguidos. 2) racional com relação a valores: determinada pela crença consciente no valor – interpretável como ético, estético, religioso ou de qualquer outra forma – próprio e absoluto de um determinado comportamento, considerado como tal, sem levar em consideração as possibilidades de êxito. 3) afetiva, especialmente emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais atuais; e 4) tradicional: determinada por costumes arraigados.

Os dois últimos tipos, a saber, a ação emotiva e a tradicional estão no limite daquilo que se pode chamar de ação "com sentido". Uma ação emotiva tem em geral como fundo da emoção ou afeto em questão um conteúdo de sentido, como o valor da fidelidade está por traz de um ato movido por ciúmes. No entanto, o conteúdo de sentido não é o principal motor da ação. Assim também o comportamento tradicional e o cotidiano encerram conteúdos de sentido mas que são, por assim dizer, automatizados de modo que o hábito mova a ação antes que seu sentido.

A ação racional com relação a valores é claramente orientada por conteúdos de sentido. Determinados valores são entendidos como absolutos e a ação se orienta por ela, valendo-se do princípio estático de dedução de normas. Este tipo de ação social leva em conta o sentido normativo como algo absoluto, bom por si, de modo que não importam as conseqüências da ação, mas a própria ação.

Age de modo estritamente racional com relação a valores que, sem considerar as conseqüências previsíveis, se comporta segundo as suas convicções sobre ou referente ao que é dever, a dignidade, a beleza, a sabedoria religiosa, a piedade ou a importância de uma "causa", qualquer que seja o seu gênero. (Weber, 2001: 418).

Já a ação racional com relação a fins é aquela que, a partir de um determinado objetivo, fim, dado, busca os meios mais adequados para atingi-lo. É, em suma, a adequação técnica dos meios para o fim que se busca.

Age racionalmente com relação a fins aquele que orienta a sua ação conforme o fim, meios e conseqüências implicadas nela e nisso avalia racionalmente os meios relativamente aos fins, os fins com relação às conseqüências implicadas e os diferentes fins possíveis entre si. Em qualquer caso, pois, é aquele que não age nem afetivamente (sobretudo emotivamente) nem com relação à tradição. Por outro lado, a decisão entre os diferentes fins e conseqüências concorrentes e conflitantes pode ser racional com relação a valores. (Weber, 2001: 418).

Cada tipo de racionalidade, com relação a fins ou valores, além do comportamento tradicional e afetivo, são, de fato, tipos diferentes de conexões de sentido. Quando o "sociólogo compreensivo" consegue perceber as conexões de sentido de uma certa ação, sejam elas racionais com relação a fins ou valores, ou ainda afetivas ou tradicionais, realiza a interpretação causal, ressaltando que também são tornados em linha de conta as irracionalidade da ação e os fenômenos destituídos de sentido.

3.2.7. Relação social

O sentido da ação social, ou melhor, da ação com sentido de um indivíduo orientada para a ação de um outro indivíduo ou indivíduos não é, necessariamente recíproca. Assim, uma ação mutuamente referida não tem, necessariamente, um sentido unívoco.

Não afirmamos de modo algum que num caso concreto os participantes da ação mutuamente referida ponham o mesmo sentido nessa ação, ou que adotam em sua intimidade a atitude da outra parte, vale dizer, que exista "reciprocidade" nessa acepção do termo. O que num é "amizade", "amor", "piedade", "fidelidade contratual", "sentimento da comunidade racional", pode encontrar-se noutro com atitudes completamente diferentes. Os participantes associam então à sua conduta um sentido diferente: a relação social é assim, para ambos os lados, objetivamente "unilateral". (Weber, 2001: 419).

De fato, podemos entender uma relação social de duas maneiras: como uma relação entre duas condutas de indivíduos orientadas por um complexo de conteúdos de sentido, o que implica em que, neste caso, haveriam duas relações sociais "unilaterais", uma vez que a conduta de cada indivíduo não está relacionada à do outro mas orientadas por complexos de conteúdos de sentido diferentes. Uma relação social "unilateral" seria, a rigor, uma ação social. Se, no entanto, tomarmos o conceito kelseniano de "relação social", haveria aí uma autêntica relação entre normas, passível ou não, conforme as normas sejam ou não pertencentes à mesma ordem normativa, de descrição sistemática.

A explicação da ação orientada por complexos de conteúdos de sentido supõe a descrição deste complexo. Weber então, busca teorizar sobre tal complexo identificando o que chama de "ordens" e, também, formulando tipos ideais.

3.2.8. O costume e as ordens sociais

O comportamento, ou melhor, a ação social encontra de fato regularidades. Os mesmos indivíduos repetem uma mesma ação ou muitos indivíduos diferentes perfazem ações idênticas ou com conteúdos de sentido idênticos. Weber denomina a probabilidade desse comportamento como "costume".

Pelo termo "costume" deve entender-se a probabilidade de uma regularidade do comportamento, de um grupo de homens, quando e em que medida esta probabilidade é dada por seu exercício de fato. O costume deve chamar-se hábito quando o exercício de fato se baseia num enraizamento duradouro. Diferentemente, deve ser denominado como "condicionado" por "situações de interesses" ("condicionado por interesses") quando e em que medida a possibilidade de sua real existência empírica se baseie unicamente no fato de que os indivíduos orientam racionalmente a sua ação em relação a fins por expectativas similares. (Weber, 2001: 421).

A ação humana não é, portanto, rigorosamente individualizada. Também o próprio sentido desta ação encontra certas regularidades. Costume é, então, um termo genérico, que pode ser subdividido em "hábito" e "condicionamento por interesses". O costume, enquanto "probabilidade de uma regularidade" é, por certo, um elemento da ordem do ser e, como o hábito e o condicionamento por interesses são, nesta terminologia, espécies de costumes, também o são. Enquanto probabilidade, a descrição do costume supõe uma observação empírica que formula regularidades de acordo com o princípio da causalidade: se A é, B é, ou se A é, B, em uma proporção de x/y, é.

Um costume é a probabilidade de uma regularidade social e subdivide-se em "hábito" e "situação de interesse".

O hábito é semelhante à convenção e ao direito, que são espécies de "ordens", a não ser por não estar garantido por sanções externas.

Em oposição à "convenção" e ao "direito", por hábito entendemos uma norma não garantida exteriormente e a qual é observada pelas pessoas "voluntariamente", ou simplesmente "sem reflexão alguma", por "comodidade" ou por outros motivos quaisquer, e cujo provável cumprimento por causa de tais motivos pode ser esperado por parte dos outros homens que pertencem ao mesmo círculo ou grupo. (Weber, 2001: 421).

Por enquanto temos que o costume é a probabilidade de regularidade de um comportamento. Como espécies de costume temos o hábito e a "situação de interesses". O hábito é uma norma que se difere da "ordem" pela ausência de garantia externa. Uma ordem é, assim, um hábito garantido "exteriormente" ou, na linguagem weberiana, um hábito válido. O autor dá um exemplo de situação de interesse, um de hábito e um de ordem:

Quando as sociedades ou as firmas encarregadas com o transporte de móveis fazem regularmente publicidade nos jornais referente ao tempo e condições do transporte, estas regularidades são determinadas por situações de interesses. Quando um comerciante-viajante visita os seus clientes de maneira regular em determinados dias do mês ou da semana, isto se deve a um hábito arraigado, ou a uma situação de interesses (rotação de sua zona comercial). Mas quando um funcionário chega diariamente ao seu escritório na mesma hora, isto não ocorre apenas por causa de um costume (ou por causa de um hábito) arraigado, e nem tampouco por causa de uma situação de interesses – que seria possível entender – mas também (pelo menos via de regra) por causa da "validade" de uma ordem (regulamento do serviço), que é considerada como um mandamento cuja transgressão não somente traz prejuízos, mas que (normalmente) é rejeitada devido ao "sentimento de dever" pelo próprio funcionário (dos mais diversos graus possíveis e imagináveis, obviamente). (Weber, 2001: 423).

Validade é, segundo Weber, a probabilidade de que um comportamento se oriente na "representação da existência de uma ordem legítima" (cf. Weber, 2001: 423). Esta legitimidade é a garantia "exterior" (ao indivíduo) do cumprimento da ordem.

Há duas espécies de "ordens legítimas": a convenção e o direito. Estas espécies de ordens se distinguem pela existência ou não de um "quadro" coercitivo:

Uma ordem deve chamar-se: a) convenção: quando a sua validade é garantida externamente pela possibilidade de que, dentro de um determinado círculo de homens, um comportamento discordante deverá encontrar uma (relativa) reprovação geral e praticamente sensível. b) Direito: quando a validade é garantida externamente pela possibilidade da coação (física ou psíquica) que é exercida por um conjunto de indivíduos instituídos com a emissão de obrigar a observância desta ordem ou de castigar e punir a sua transgressão. (Weber, 2001: 426).

A convenção assim definida fica muito pouco diferenciada do "hábito". Esta diferença reside na garantia externa da convenção, alheia ao hábito. Porém, o próprio Weber admite que também o hábito tem uma certa garantia externa (45), de modo que a diferença seja apenas de grau, referente à intensidade da garantia externa.

É significativo que a definição da convenção deixe claro ser ela um hábito, e a definição de "direito" apenas acrescente o quadro coercitivo.

"Convenção" deve chamar-se ao "hábito" que, dentro de um círculo de homens, se considera como válido e que está garantido pela reprovação do comportamento discordante. Em oposição ao Direito (no sentido em que usamos esse termo) falta o quadro de pessoas que está especialmente dedicado a garantir esse cumprimento (...) Para nós, o decisivo no conceito de "direito" é a existência de um quadro coercitivo. (Weber, 2001: 426).

É característica da ordem legítima o caráter coercitivo, embora os "meios de coação" sejam "irrelevantes". Portanto a ordem legítima diferencia-se do hábito pela coação externa, e diferenciam-se direito e convenção pela existência ou ausência de um quadro de funcionários dedicados à coerção (não é, portanto, a violência física o caráter decisivo aqui (46)).

Desta forma temos que: o costume pode ser um hábito ou uma "situação de interesses"; um hábito pode ser um hábito propriamente dito ou uma ordem legítima. E uma ordem legítima pode ser um direito ou uma convenção.

Estas definições diferem em larga medida dos conceitos kelsenianos, que definem o direito como ordem normativa, que são "conteúdos de sentido". Po outro lado, Weber afirma que a "ação social se orienta unicamente em ‘ordens’ " (Weber, 2001: 424).

Segundo Weber, pode-se entender uma "regra" de dois modos diversos, como lei da natureza ou como juízo de valor:

Por "regra" podem ser entendidas, em primeiro lugar: 1) afirmações gerais sobre conexões causais, "leis da natureza" portanto. (...) Por "regra", podemos entender também uma "norma" (2) na qual serão medidos acontecimentos atuais, passados e futuros no sentido da "emissão de um juízo de valor". (...) No segundo caso, a "vigência" de uma regra significa um postulado imperativo geral, cujo conteúdo é a própria norma. No primeiro caso, a "vigência" de uma regra significa apenas a pretensão à "validade" da afirmação de que a respectiva regularidade fática está "dada" e presente efetivamente na realidade empírica ou que seja deduzível via generalização. (Weber, 2001: 233,234).

Em uma discussão com Stammler, que afirmava que o comportamento de Robinson Crusoe em seu isolamento, na medida em que buscava poupar recursos e agia conforme padrões econômicos de conduta, se tratava de uma mera técnica e não da observação de normas, Weber faz uma nítida distinção entre uma ação que se orienta em normas e uma ação que se oriente em uma percepção de reações causalmente determinadas, ainda que acerca da conduta de outros indivíduos humanos. (cf. Weber, 2001: 233 ss.). Assim, o comportamento das máquinas em uma indústria se dá em conformidade com regras em um sentido diferente daquele do comportamento dos operários.

Neste último caso talvez seja a "coerção psíquica que faz com que o operário obedeça a ordem do mecanismo global, ou seja a "idéia" de que seja expulso da fábrica no caso em que ele não obedeça "regras estabelecidas para o trabalho", ou imaginar a carteira vazia frente à família que passa fome, etc. é, ainda eventualmente, talvez provocada por outras "imaginações" e idéias, de natureza ética, por exemplo, ou pelo simples costume. (Weber, 2001: 235).

Weber não admite uma explicação da ação humana que não leve em conta suas conexões de sentido. Mesmo o comportamento de Robinson Crusoe não pode ser explicado sem qualquer referência a sentidos orientados à conduta de outrem, uma vez que ele se orienta em uma ordem, no caso, uma ordem de conduta econômica que é constituída também por um conjunto de conteúdos de sentido.

A compreensão de uma ação social é a apreensão de suas conexões de sentido, e "conteúdos de sentido" de uma relação social podem ser "a) uma ‘ordem’ apenas no caso em que a ação se orientar em máximas claramente dadas. b) "validade" desta ordem quando (...) sejam vistas como obrigatórias ou como modelos do comportamento" (Weber, 2001: 423).

Portanto, com o intuito de estabelecer as "conexões de sentido" de uma ação, cumpre conhecer os "conteúdos de sentido" envolvidos, que constituem "ordens" e estabelecem, como dito anteriormente, uma "luta de motivos" da ação.

A metodologia da sociologia compreensiva consiste, basicamente, na construção de tipos ideais que servem de parâmetro para apreciação da ação concreta de modo a encontrar, nesta, outros determinantes da ação que a "desvia" do tipo idealmente criado.

Se tomarmos a teoria kelseniana como uma teoria das ordens normativas, que são sistemas de conteúdos de sentido, talvez fosse viável que ela servisse ao pensamento weberiano precisamente enquanto um tipo ideal, ou uma forma de construção de tipos ideais. Kelsen fornece uma teoria capaz de descrever, de forma "pura", ordens normativas e, se supormos uma conduta em perfeita harmonia com tal ordem, teríamos um tipo ideal.

Uma ordem normativa, no sentido kelseniano (que está bastante próximo ao weberiano, a não ser pela vinculação que este autor faz com a regularidade probabilística do comportamento fático), pode ser utilizada proveitosamente por uma tal sociologia como uma construção ideal típica, ou como um instrumento para tal construção.

Que Robinson e o capitalista, dos quais falamos, apresentem um certo comportamento concernente aos bens materiais e às reservas em dinheiro, da maneira que este comportamento se nos apresenta, aparentemente, como um comportamento "que se baseia em regras", pode ser para alguém o motivo para formular teoricamente aquela "regra" que, na nossa opinião, pelo menos parcialmente, possui influência determinante sobre aquele comportamento: como o "princípio do uso máximo possível de racionalidade", por exemplo. Esta regra ideal, neste caso, contém uma afirmação doutrinal teórica sobre aquilo que é o conteúdo da "norma", conforme a qual Robinson "deveria" proceder se ele pretende, como tal, observar o ideal de um "agir racionalmente orientado pelo fim". Ao lado disso, podemos tratá-la como um "padrão de avaliação". Obviamente não se trata de uma avaliação no sentido "ético", mas "teleológico" que pressupõe como um "ideal" a ação "racionalmente orientada por um fim". Mas, por outro lado, e de maneira destacada, ela funciona também como um princípio heurístico, para que se consiga perceber na ação empírica de Robinson o efetivo condicionamento causal – se pressupomos ad hoc a existência real de semelhante indivíduo. Neste último caso, ela serve como construção "ideal-típica", e nós, a usamos como hipótese cuja comprovação deveria ser "verificada" nos "fatos". Desse modo, ajudar-nos-ia apreender a causalidade efetiva do seu agir e o grau de aproximação ao "tipo ideal". (Weber, 2001: 238) (47)

Neste sentido, a Teoria Pura do Direito, ou das Ordens Normativas, serviria à sociologia compreensiva na medida em que separa as diferentes ordens normativas de maneira lógica e sistemática, por meio da norma fundamental, e descreve, também de maneira rigorosamente lógica as diferentes ordens, através da estrutura escalonada das normas, dos princípios estático e dinâmico e dos conceitos da "Estática Jurídica" que permitem mesmo chegar à relação jurídica como uma relação entre normas. A pureza lógica destas construções poderia ser fértil fonte de construtos ideal-típicos de conexões de sentido a ser utilizados por aquele que busca explicar a ação.

Assim, por exemplo, a teoria poderia ajudar a descrever uma ordem normativa ancorada na idéia de que se deve obedecer a Deus, que instituiu determinados mandamentos, distinguindo-a da ordem normativa ancorada na idéia de que se deve obedecer ao Patriarca. Distinguiria, assim, com uma pureza não encontrada na realidade, o Catolicismo e o Patriarcalismo, por exemplo, ou poderia ajudar a notar, talvez, quais são precisamente os pontos de entrelaçamento entre ambas ordens sociais. Acerca dos conceitos de "pessoa jurídica" ou de "relação jurídica" penso que talvez também sirvam para a construção de tipos ideais.

Por certo que a descrição e explicação lógica de uma ordem não é sinônimo de explicação da ação, uma vez que o indivíduo pode orientar-se por uma ordem seja para agir em conformidade, seja para agir em desconformidade com ela; pode orientar-se de maneira racional com relação a valores, de modo a tomar como absolutas as normas de uma ordem; pode orientar-se de maneira racional com relação a fins, de modo a tomar certos objetivos (conteúdos de sentido) estipulados em uma ordem e buscá-los em conformidade com a racionalidade instrumental; pode, enfim, o indivíduo, ter sua ação determinada por uma multiplicidade de fatores de determinações causais que a ordem, por certo, não contempla.

Há, por fim, uma diferença de perspectiva entre Kelsen e Weber. Kelsen volta seu estudo para as normas, para o dever ser, desvinculando-o do plano empírico e abstendo-se de prescrever um ideal, ou melhor, abstendo-se de especulações metafísicas, como ele afirma, acerca de como deveria ser o dever ser. Weber volta-se para o estudo da ação social, que é orientada por (e criadora de) conteúdos de sentido. Assim como não há contradição possível entre ser e dever ser, não há contradição possível entre a descrição de um e a de outro e, portanto, não há contradição possível entre Kelsen e Weber.

Resta, por fim, a dificuldade de encontrar a origem dos conteúdos normativos de sentido que, de fato, existem de alguma forma nas mentes humanas. A este respeito, penso ser adequado pensar, valendo-se de uma breve sugestão de Kelsen, em um "fato fundamental", análogo à "norma fundamental". Este "fato fundamental" seria o "fato pressuposto" de que, "quando os homens vivem em comum num grupo, surge na sua consciência a idéia de que (...) se devem conduzir por determinada maneira, e isto num sentido objetivo". (Kelsen, 2000: 92).

Tem-se, portanto, em Kelsen uma teoria da sociedade, entendida como um complexo de conteúdos de sentido e, em Weber, uma teoria da ação social, enquanto ação empírica orientada por um sentido. Tratam-se de objetos diferentes e, por isso, não são incompatíveis e, na medida em que a teoria weberiana é mais ampla, é capaz de absorver a contribuição da teoria pura de Kelsen e dela valer-se para a construção de seus tipos ideais. (48)

Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Teoria Pura do Direito e Sociologia compreensiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -62, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4014. Acesso em: 23 dez. 2024.

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