Como já evidenciado em artigo anterior – intitulado “Delegado de polícia pode apurar fato criminoso ocorrido em unidade da federação diversa de sua área de atribuição?” – o campo de atuação delegado de polícia transcende a área geográfica da circunscrição de sua atribuição, até porque inexiste a figura de delegado natural, não se submetendo, portanto, o delegado às regras da divisão de competência.
Desta feita, este singelo estudo tem o fim precípuo de aferir se há previsão legal de um crime cometido por brasileiro no exterior poder ser investigado por delegado de polícia civil.
Imagine se um brasileiro praticar um crime de homicídio numa cidade do Paraguai e logo depois fugir, ingressando imediatamente no Brasil. Indaga-se, então, se caberá às autoridades brasileiras investigá-lo e processá-lo pelo crime cometido em solo alienígena. Isso é o que se pretende trazer a lume doravante.
Convém, por outro giro, salientar que a situação acima não ocorre com frequência, mas podem, perfeitamente, os operadores do direito (Delegados de Polícia, Juízes de Direito, Promotores de Justiça, advogados criminais) se depararem com ela na sua labuta diária.
Pois bem.
Para responder ao questionamento supra, faz-se necessária uma análise em torno do princípio de inextraditabilidade de nacionais, e, também, do princípio da extraterritorialidade (condicionada). O primeiro veda extradição de investigados ou réus de nacionalidade brasileira, seja ela originária ou adquirida. Essa proibição se acha inserta no artigo 5º, inciso LI, da Constituição Federal. Eis então o seu enunciado: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. (negritei)
Não é demais salientar que o Estatuto do Estrangeiro (Lei n.º 6.815/80) também proíbe a extradição de brasileiro, conforme inteligência do art. 77. Eis o seu teor, ipsis litteris:
Art. 77. Não se concederá a extradição quando: (negritei)
I - se tratar de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido; (negritei)
II - o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente;
III - o Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando;
IV - a lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 (um) ano;
V - o extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido;
VI - estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente;
VII - o fato constituir crime político; e
VIII - o extraditando houver de responder, no Estado requerente, perante Tribunal ou Juízo de exceção.
§ 1° A exceção do item VII não impedirá a extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal.
§ 2º Caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação do caráter da infração.
§ 3° O Supremo Tribunal Federal poderá deixar de considerar crimes políticos os atentados contra Chefes de Estado ou quaisquer autoridades, bem assim os atos de anarquismo, terrorismo, sabotagem, sequestro de pessoa, ou que importem propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social.
Destarte, diante da análise dos dispositivos supra, percebe-se a impossibilidade de o cidadão brasileiro, na situação exposta, ser extraditado.
De outra banda, no tocante ao princípio da extraterritorialidade (condicionada), este consiste na possibilidade de a lei penal brasileira ser aplicada a um fato criminoso praticado noutro País. Tal fenômeno tem sua base legal no Código Penal Brasileiro, contudo, é preciso haver o concurso de alguns requisitos, como se vê no artigo inserto abaixo, ipsis litteris:
Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984) (negritei)
I - os crimes: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
II - os crimes: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (negritei)
a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
b) praticados por brasileiro; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984) (negritei)
c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
§ 1º - Nos casos do inciso I, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
§ 2º - Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
a) entrar o agente no território nacional; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
§ 3º - A lei brasileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condições previstas no parágrafo anterior: (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
a) não foi pedida ou foi negada a extradição; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
b) houve requisição do Ministro da Justiça. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984).
Ressalte-se que, no que diz respeito ao inciso II, alínea “b”, do supracitado artigo, trata-se especificamente do Princípio Nacionalidade (ativa), também denominado de Princípio da Personalidade (ativa), segundo o qual a nossa legislação é aplicada ao brasileiro que pratica crime noutro país, independentemente da nacionalidade da vítima.
Deflui-se da exegese das regras acima dispostas que o Delegado de Polícia Civil pode – legalmente – instaurar inquérito policial para investigar evento criminoso praticado por brasileiro no estrangeiro. Mas, não basta chegarmos, tão somente, a essa conclusão; é necessário saber qual o que tem atribuição para tanto.
Tudo gravita em torno da garantia de se fazer justiça, e que o autor do crime não permaneça impune ao ingressar no território brasileiro, haja vista que a inextraditabilidade do nacional não pode ser usada como mecanismo de impunidade, pois, o que se deve levar em conta é o critério de justiça penal universal, mormente em relação a crimes graves.
A guisa de aclarar o que se pretende definir a respeito do delegado de polícia que tem atribuição para presidir as investigações: imagine que o autor do crime residia, e ainda reside, com seus familiares em Viçosa-AL, e que, logo que praticou o delito citado linhas atrás, foi para aquela cidade.
Na situação acima tratada, caberá ao delegado de polícia civil titular da referida cidade, ao tomar conhecimento do crime, inclusive de que autor deste ali continua residindo, instaurar, ex-officio, inquérito policial para promover a sua cabal apuração, uma vez que se encontram ausentes condições para a lavratura de auto de prisão em flagrante (CPP, art. 302).
Merece registro, de outra banda, que não caberá ao Delegado de Polícia Federal apurá-lo, uma vez que o caso não deságua nas hipóteses previstas no art. 144, § 1º, inc. I, da Constituição Federal, inclusive ausente a repercussão internacional. Eis, então, o que reza tal artigo, ipsis litteris:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal; (negritei)
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; (negritei)
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;
III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
§ 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
§ 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)
I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)
II - compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)
Outro questionamento é: depois de concluídas as investigações policiais, para qual Juízo o inquérito policial deverá ser encaminhado? Para a Justiça Pública da Comarca de Viçosa-AL, ou para uma das Varas do Júri da Comarca de Maceió, Capital do Estado de Alagoas? De acordo com o que preceitua o art. 88 do Código Penal, o procedimento investigatório deverá ser remetido a uma das Varas do Júri de Maceió, detentora de competência para processar e julgar a futura ação penal. Vejamos:
Art. 88. No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República. (negritei)
Tal fixação de competência deu-se em razão de o autor do crime residir na cidade de Viçosa-AL antes e depois de ter praticado o crime.
A respeito, é merecedora de um close a decisão da 3ª Seção do STJ no Conflito de Competência 104.342/SP, publicada em 26/08/2009, ipsis litteris:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. CRIMES PERPETRADOS POR BRASILEIRO, JUNTAMENTE COM ESTRANGEIROS, NA CIDADE DE RIVERA – REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI. REGIÃO FRONTEIRIÇA. VÍTIMAS. POLICIAIS CIVIS BRASILEIROS. RESIDENTES EM SANTANA DO LIVRAMENTO/RS. EXTRATERRITORIALIDADE. AGENTE BRASILEIRO, QUE INGRESSOU NO PAÍS. ÚLTIMO DOMICÍLIO. CIDADE DE RIBEIRÃO PRETO/SP. O ITER CRIMINIS OCORREU NO ESTRANGEIRO. (negritei)
1. Os crimes em análise teriam sido cometidos por brasileiro, juntamente com uruguaios, na cidade de Rivera – República Oriental do Uruguai, que faz fronteira com o Brasil. 2. Aplica-se a extraterritorialidade prevista no art. 7.º, inciso II, alínea b, e § 2.º, alínea a, do Código Penal, se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. 3. Nos termos do art. 88 do Código de Processo Penal, sendo a cidade de Ribeirão Preto/SP o último domicílio do indiciado, é patente a competência do Juízo da Capital do Estado de São Paulo. 4. Afasta-se a competência da Justiça Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no art. 109 da Carta da Republica, principalmente, porque todo o iter criminis dos homicídios ocorreu no estrangeiro. 5. Conflito conhecido para declarar a competência de uma das Varas do Júri da Comarca de São Paulo/SP. (STJ, 3ª Seção. CC 104.342/SP, p. em 26/08/2009). (negritei)
Diante do que foi explanado, conclui-se que existe amparo legal no sentido de que o delegado de polícia civil pode apurar crime praticado por cidadão brasileiro em solo alienígena, nos termos do art. 7º, inc. II, alínea “b”, do Código Penal (STF, RT 474/382), e que compete à Justiça brasileira o processamento e julgamento da eventual ação penal.