Antes de mais nada, cumpre pôr em destaque a ressalva feita por André Mendes Moreira, ao “(...) alertar que o simples fato de um tributo ser intitulado ‘não- cumulativo’ não o torna, por si só, integrante desta categoria, ao menos com todas as notas características que vimos de ver.”[1] Neste sentido, mostra-se oportuno relembrar o disposto no art. 4º do Código Tributário Nacional, segundo o qual “a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la: I – a denominação e demais características formais adotadas pela lei”.
André Mendes Moreira segue afirmando que “será não-cumulativo o tributo que for ao mesmo tempo plurifásico (gravando, portanto, operações de circulação de bens e serviços) e que permitir ao contribuinte o abatimento da exação paga nas etapas anteriores.”[2]
Paulo de Barros Carvalho anota que, na redação original da CF/88, o princípio da não cumulatividade foi afetado apenas ao ICMS, ao IPI, aos impostos de competência residual e às contribuições sobre as novas fontes de custeio da seguridade social (arts. 153, § 3º, II, 155, § 2º, I, 154, I, e 195, § 4º). Somente com as alterações promovidas pela edição da Emenda Constitucional n. 42/2003, o primado da não cumulatividade passou a alcançar as contribuições para a seguridade social incidentes sobre a receita ou o faturamento, conforme § 12 do art. 195 da CF/88. E, assinala o autor, que “com fundamento nessa disposição constitucional, as Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003 instituíram a não cumulatividade para o PIS e a Cofins, respectivamente.”[3]
1. A NÃO CUMULATIVIDADE DO IPI
A Constituição Federal confere à União competência para instituir imposto sobre produtos industrializados, conforme o disposto no art. 153, IV.
O legislador constituinte originário, ao instituir o imposto sobre produtos industrializados (IPI), cuidou de consignar que este deve ser “não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.[4]
No mesmo sentido, dispõe o art. 49 do Código Tributário Nacional que “o imposto (IPI) é não-cumulativo, dispondo a lei de forma que o montante devido resulte da diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente aos produtos saídos do estabelecimento e o pago relativamente aos produtos nele entrados.”
O IPI é regulamentado no âmbito do ente político que detém competência para sua instituição (União) pelo Decreto n. 7.272/2010 (Regulamento do IPI), que dispõe em seu art. 225 que “a não cumulatividade do imposto é efetivada pelo sistema de crédito, atribuído ao contribuinte, do imposto relativo a produtos entrados no seu estabelecimento, para ser abatido do que for devido pelos produtos dele saídos, num mesmo período”.
André Mendes Moreira anota que o “(...) imposto devido pelas saídas tributas é abatido daquele suportado pelo contribuinte em suas aquisições. Noutro giro verbal, abate-se do IPI devido aquele que incidiu nas etapas anteriores do processo produtivo.”[5]
2. A NÃO CUMULATIVIDADE DO ICMS
Aos Estados e ao Distrito Federal é conferida competência para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações se iniciem no exterior” (art. 155, II, da CF/88).
Como já visto anteriormente, a obediência do ICMS à diretriz da não cumulatividade está alçada a nível constitucional. Nesta senda, cabe a transcrição do inciso I do § 2º do art. 155 da CF/88: “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.” A Lei Complementar n. 87/1996 reproduziu a diretriz constitucional em seu art. 19.
Geraldo Ataliba e Cléber Giardino, citados por José Eduardo Soares de Melo, assinalam que:
[a]s disposições constitucionais dos chamados “crédito de IPI e de ICM têm eficácia plena e aplicabilidade imediata, na classificação consagrada por José Afonso da Silva”, eficácia normativa plena significa aptidão incondicional para produzir imediatos efeitos jurídicos, quando cabível a incidência do preceito. De nenhuma lei depende a eficácia do sistema de abatimentos.[6]
Em que pese o posicionamento acima referido, a CF/88 estabelece que cabe à lei complementar disciplinar o regime de compensação do ICMS (art. 155, § 2º, XII, c).
2.1 Restrições constitucionais à utilização de crédito de ICMS
Impende observar que o legislador infraconstitucional deve exercer seu mister nos estritos limites jungidos na norma a ser regulamentada, no caso, à CF/88. Neste sentido, José Eduardo Soares de Melo anota que “[n]o ato de disciplinar, não pode o legislador complementar determinar ou especificar os bens, produtos, mercadorias e serviços permitem (ou não) o crédito do imposto, nem fracionar esse direito a período de tempo ou utilização.”[7]
Registre-se que, diferentemente do que se verifica com o IPI, a própria CF/88 encarta algumas restrições – leia-se, são hipóteses determinadas – ao crédito de ICMS. O inciso II do § 2º do art. 155 estabelece que “a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação: a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; b) acarretará a anulação do crédito relativo a operações anteriores”.
Ao cuidar das restrições constitucionais do direito ao crédito de ICMS, Paulo de Barros Carvalho esmiúça o que seriam as causas de não-incidência, as quais elenca por ordem crescente de abstração:
(i) ausência de fato jurídico tributário; (ii) inexistência da regra-matriz de incidência tributária, a qual, conquanto autorizada constitucionalmente, não foi produzida pelo legislador ordinário; (iii) falta de previsão constitucional que atribua competência para a tributação de determinado acontecimento; (iv) incompetência para a tributação de situações específicas, por expressa determinação da Carta Magna (imunidade tributária).[8]
Assim, estando-se diante de operação isenta de não-incidência “(...) salvo se a legislação infraconstitucional dispuser em sentido contrário, certificadas as situações acima, não nascerá, para o contribuinte, relação jurídica de direito ao crédito.”[9]
Tendo em conta que a CF/88 é taxativa quando trata das exceções ao surgimento do direito ao crédito de ICMS para o contribuinte, a matéria relegada à legislação infraconstitucional (lei complementar, nos termos do art. 155, § 2º, XII, c, da CF/88) não está autorizada a dilatar as hipóteses de negativa do direito ao crédito de ICMS.
José Soares de Melo é enfático ao assinala que Lei Complementar n. 87/1996, ao dispor acerca da não cumulatividade, em atenção à imposição constitucional insculpida no art. 155, § 2º, XII, c, da CF/88, inova – desautorizada que está para tanto – na ordem jurídica, e é enfático ao afirmar que “[o] legislador infraconstitucional não é dono do ICMS, pois deve obediência às diretrizes constitucionais e aos superiores princípios nela constantes, não podendo subverter a ordem jurídica e os postulados econômicos”.[10]
A crítica é digna de coro na medida em a Lei Complementar n. 87/1996 acaba por criar empecilhos à efetiva materialização do primado da não cumulatividade. Passa-se à análise de alguns exemplos dos obstáculos à utilização do crédito de ICMS.
O art. 23 da lei em comento condiciona o direito ao crédito por parte do adquirente de mercadoria ou do tomador do serviço à idoneidade da documentação fiscal emitida em razão daqueles eventos (fornecimento de mercadoria ou prestação de serviço). Sobre o assunto, Paulo de Barros Carvalho assenta que o contribuinte tem o direito (constitucional) de se valer do crédito relativo ao imposto incidente na operação anterior, cabendo a ele apenas o dever de “(...) conferir os documentos que acompanham os bens adquiridos, buscando identificar se atendem ou não ao que estabelecem os dispositivos legais que tratam da matéria. Nada mais.”[11]
Outro ponto merecedor de nota é o caso dos entraves postos à utilização dos créditos decorrentes da aquisição de bens alheios à atividade do estabelecimento (art. 20, § 1º). É injurídica referida vedação “(...) uma vez que a Constituição não cogita da utilização dos bens em atividades estranhas ao seu objeto social, além de ser difícil precisar a sua efetiva aplicação.”[12]
Como derradeiro exemplo, tem-se a questão dos entraves postos à utilização do crédito resultante da incidência do ICMS sobre a energia elétrica consumida pelo estabelecimento. A Lei Complementar n. 87/1996, em seu art. 33, II, com redação dada pela Lei Complementar n. 102/2000, admite o crédito nas seguintes situações:
a) quando for objeto de operação de saída de energia elétrica;
b) quando consumida no processo de industrialização;
c) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção destas sobre as saídas ou prestações totais;
d) a partir de 1º de janeiro de 2020, nas demais hipóteses (redação dada pela LC 138/2010).
As situações de entraves ao direito ao crédito de ICMS acima exemplificados retratam que a legislação infraconstitucional no campo da não cumulatividade do ICMS acaba por ofender o texto constitucional.
3. IMPOSTOS (ART. 154, I, DA CF/88) E CONTRIBUIÇÕES (ART. 195, § 4º, DA CF/88) DE COMPETÊNCIA RESIDUAL
Apenas a título de nota, cumpre deixar em evidência que a CF/88 estabelece em seu art. 154, I, que compete à União, quando do exercício de sua competência residual para instituir impostos, deverá o princípio da não cumulatividade.
Da mesma forma, o art. 195, § 4º, da CF/88 dispõe que “a lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.”
4. CONTRIBUIÇÃO AO PIS E COFINS
A CF/88 preceitua que “a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b, e IV do caput, serão não-cumulativas” (art. 195, § 12). Cuida-se de disposição inserida por ocasião da edição da Emenda Constitucional n. 42/2003.
Antes disso, as leis n. 10.637/2002 (Programa de integração Social - PIS) e n. 10.833/2003 (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS) já tratavam da questão da não cumulatividade da contribuição ao PIS e da COFINS. Essa inversão cronológica (antes a lei; depois a previsão constitucional) foi bem retratada por Paulo de Barros Carvalho:
(...) procurando conferir status constitucional à não-cumulatividade dessas contribuições, o constituinte derivado editou a Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003, acrescentando o § 12 ao art. 195 (...) Diante dessa Emenda, a não-cumulatividade da contribuição ao PIS e da COFINS, que havia sido instituída por liberalidade do legislador ordinário, com os permissivos e vedações pelos quais livremente optou, passou a apresentar conteúdo mínimo de significação.[13]
André Mendes Moreira afirma que “[a] não-cumulatividade do PIS/COFINS parte da mesma premissa (do IPI e do ICMS): os créditos das referidas contribuições são meramente escriturais (...)”.[14]
No intento de traçar um paralelo entre a não cumulatividade aplicada nos moldes do ICMS e do IPI e aquela verificada na contribuição ao PIS e na COFINS, sobretudo para salientar as diferenças entre os indigitados regimes, André Mendes Moreira preleciona que o regime da não-cumulatividade da contribuição PIS e da COFINS não é idêntico ao regime daqueles (IPI e ICMS), “afinal, não é possível a transferência jurídica para o consumidor final do ônus de tributos que não incidem sobre atos ou negócios jurídicos. Assim é que a não-cumulatividade do IPI/ICMS é análoga, porém não semelhante à do PIS/COFINS sobre receitas.”[15]
Ainda trabalhando a questão das distinções entre os regimes da não cumulatividade do IPI e do ICMS e daquele próprio da contribuição ao PIS e da COFINS, André Mendes Moreira propõe a seguinte classificação: (i) não cumulatividade stricto sensu (ICMS e IPI); e (ii) não cumulatividade lato sensu (PIS e COFINS). São do autor as seguintes palavras:
(...) desde o ano de 2003 (quando foi editada a Emenda Constitucional nº 42), existem duas espécies de não-cumulatividade no Direito Tributário brasileiro. A primeira, que intitulamos “em sentido estrito”, corresponde à concretização de todo o arcabouço teórico que vimos de ver. Trata-se da não-cumulatividade propriamente dita, stricto sensu, como forma de obtenção da neutralidade fiscal, aplicável aos tributos plurifásicos (que gravam o consumo de mercadorias e serviços). Já a outra forma é a não-cumulatividade em sentido amplo, que corresponde a uma forma de cálculo do quantum debeatur aplicada aos tributos que não atingem o consumo de bens e serviços (não sendo, por tal razão, plurifásicos). Nesses casos, dá-se o transporte da noção geral de não-cumulatividade (sistema de compensação de créditos e débitos) para tributos que não se prestam à consecução dos objetivos da tributação sobre o valor acrescido. Não obstante, por se tratar do mesmo instituto, as características da não-cumulatividade do IPI/ICMS deverão, sempre que possível, informar a não-cumulatividade do PIS/COFINS.[16]
De tudo quanto se expôs acerca da não cumulatividade, bem assim pela feição que referido princípio (detentor da qualidade de limite objetivo) adquire nos quadrantes da contribuição ao PIS e da COFINS, resta latente as distinções dos regimes jurídicos de sua (da não cumulatividade) aplicação no campo das indigitadas contribuições daqueles verificados no ICMS e no IPI.
5. CONCLUSÃO
O legislador constituinte originário encartou que o IPI (art. 153, IV, e § 3º, II), o ICMS (art. 155, II, e § 2º, I), os impostos (art. 154, I) e contribuições (art. 195, § 4º) de competência residual da União estariam sujeitos ao princípio da não cumulatividade. Somente em no ano de 2003, com a edição da Emenda Constitucional n. 42/2003, que inseriu os §§ 12 e 13 ao art. 195 da CF/88, é que a sistemática da não cumulatividade passou a alcançar a contribuição ao PIS e a COFINS.
Ao instituir a não cumulatividade do IPI, o constituinte originário o fez sem ressalva alguma, não cabendo à legislação infraconstitucional impor entraves à compensação dos créditos de IPI. Já com relação ao ICMS, o próprio constituinte originário, no inciso III do § 2º do art. 155, consignou que a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes. Desta forma, tem-se que, embora sejam tributos indiretos (sobre o consumo de bens e serviços), plurifásicos (que incidem em vários pontos da cadeia produtiva ou de comercialização), o regime jurídico da não cumulatividade verificado num (IPI) e noutro (ICMS) é distinto.
A contribuição ao PIS e a COFINS são contribuições que incidem sobre o faturamento, ou seja, não constituem tributos de natureza indireta, haja vista que não se vislumbra (como no IPI e no ICMS) a possibilidade de translação jurídica do ônus tributário para o adquirente final. Desta feita, em que pese haja a outorga constitucional no sentido de que referidas contribuições estariam afetas à sistemática da não cumulatividade, impende observar que o regime jurídico a ela aplicado diverso daqueles próprios do IPI e do ICMS.
[1] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. p. 70.
[2] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. p. 70.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 220.
[4] Art. 153. Compete à União instituir imposto sobre: (...) IV – produtos industrializados; (...) § 3º - o imposto previsto no inciso IV: (...) II – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.
[5] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. p. 169.
[6] ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. ICM e IPI – Direito de crédito, produção e mercadorias isentas ou sujeitas à alíquota zero. RDT 46/79 apud MELO, José Eduardo Soares de melo. Importação e exportação no direito tributário: impostos, taxas e contribuições. 2. ed. rev., atual. e reform. da obra “A importação no direito tributário”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 221.
[7] MELO, José Eduardo Soares de melo. Importação e exportação no direito tributário: impostos, taxas e contribuições. 2. ed. rev., atual. e reform. da obra “A importação no direito tributário”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 222.
[8] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses. 2009, p. 736.
[9] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses. 2009, p. 737.
[10] MELO, José Eduardo Soares de melo. Importação e exportação no direito tributário: impostos, taxas e contribuições. 2. ed. rev., atual. e reform. da obra “A importação no direito tributário”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 222.
[11] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses. 2009, p. 735.
[12] MELO, José Eduardo Soares de melo. Importação e exportação no direito tributário: impostos, taxas e contribuições. 2. ed. rev., atual. e reform. da obra “A importação no direito tributário”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 228.
[13] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses. 2009, p. 821-2.
[14] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. p. 269.
[15] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. p. 153.
[16] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. p. 70.