Introdução
O Direito Urbanístico e sua relação com as políticas públicas têm por princípios, conforme dispostos na Constituição Federal/88 e demais dispositivos legais, “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado num determinado território” (DALLARI, apud VICHI, 2007, p.25); o interesse público sobre o privado e outros de ordem condizente às necessidades do pleno exercício da cidadania ativa e política nesse território.
Neste ínterim merece situar os conceitos de interesse público considerando que as áreas do Direito, da Educação e Comunicação também tratam dessa matéria, e aqui passa a ser abordado no âmbito da Cidade Educadora enquanto lugar das ações de interesse público.
(...) Como se revela o interesse público? Há apenas um interesse público? Como arbitrar entre interesses conflitantes? O direito administrativo elegeu a discricionariedade como categoria central e voltou-se à disciplina dos seus controles, ocupou-se muito da temática do interesse público e com isso adotou tacitamente a premissa de que haveria um interesse público universal, insuscetível de questionamento ou oposição. Como analisava José Eduardo Faria (p. 73-79 apud BUCCI, p. 14), o interesse público é um conceito “pragmaticamente vago e ambíguo”, um conceito quase “mítico cujo valor se assenta justamente na indefinição de seu sentido, de reduzido valor analítico, mas grande utilidade funcional, na medida de sua adaptabilidade a realidades sociais variáveis” (BUCCI, apud VICHI, 2007, p. 94).
No tocante à ideia de Habermas situada entre “facticidade” e “validade” (entre fatos e validade) no contexto da linguagem e da ação comunicativa, os dois termos: política e público coexistem sem atrito, enquanto vivenciado no “mundo da vida”; ou seja, enquanto relações sociais e comunicativas que caracterizam nossa vivência cotidiana não forem problematizadas (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 191).
As diferentes implicações sociológicas, jurídicas e políticas que um e outro conceito pode ter, somente vêm à tona, quando os atores descrevem o interesse que manifesta em cada um dos termos. No campo do Direito, Celso Antônio Bandeira de Mello (apud VICHI, 2007, p.95) descreve o interesse público como: “o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelos simples fato de o serem”. Prossegue o autor:
O interesse público, o interesse de todo, do conjunto social nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intemporal destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais. (MELLO apud VICHI, 2007, p. 95) (grifos do autor).
Nesse contexto, trata-se dos argumentos necessários para defesa de uma cidade sustentável, educadora e voltada aos interesses da população; nesta linha de pensamento, por vias discursivas, isto é, a base do diálogo que deva atingir a cidade e sua população vem empenhada no restabelecimento que pretende suas validações reafirmadas e revalidadas nos discursos sejam dos gestores públicos, sejam de seus habitantes em prol da gestão de interesse público. Por seus termos e fundamentos acerca do conceito de política e público como postos são vistos nos princípios ora defendidos à Cidade Educadora, ou seja, a forma convincente de dizer: “cidade e políticas públicas direcionadas ao bem da coletividade”.
E o que é Cidade Educadora?
As Cidades Educadoras tiveram início, como movimento, em 1990, quando do I Congresso Internacional de Cidades Educadoras, celebrado em Barcelona, onde um grupo de cidades representadas pelos respectivos órgãos de poder concluíram ser útil trabalhar em conjunto projetos e atividades para melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. Posteriormente, em 1994, este movimento formalizou-se como Associação Internacional das Cidades Educadoras - AICE, oficialmente criada no 3° Congresso das Cidades Educadoras, o qual decorreu em Bolonha, Itália (GADOTTI, PADILHA, CABEZUDO, 2004, p.7-9).
Foram instituídos como objetivos da AICE:
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Promover o cumprimento dos princípios da Carta das Cidades Educadoras;
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Impulsionar colaborações e ações concretas entre as cidades;
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Participar e cooperar ativamente em projetos e intercâmbios de experiências com grupos e instituições com interesses comuns;
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Aprofundar o discurso das Cidades Educadoras e promover a sua concretização;
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Influenciar no processo de tomada de decisões dos governos e das instituições internacionais em questões de interesse para as Cidades Educadoras;
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Dialogar e colaborar com diferentes organismos nacionais e internacionais
Assim, se entende o Conceito de Cidade Educadora: Integração da oferta de atividades sociais e culturais para potencializar sua capacidade educativa formal e informalmente; potencialização dos espaços e acessibilidade; compartilhamento de experiências entre as cidades; educação cidadã voltada aos interesses dos cidadãos; lugar da política deliberativa, dentre outros. A expressão Cidade Educadora tomou corpo e passou a ser popularizada a partir do Relatório de Edgard Faure (1977) cuja proposta consta uma pluralidade de sentidos e de usos.
Cidade, facticidade e o interesse público
Maria Sylvia Di Pietro revela a dificuldade da ciência jurídica em trazer o conceito uníssono de interesse público, citando desde Carl J. Friedrich, passando por Dalmo de Abreu Dallari, até Ernest S. Griffith (DI PIETRO apud VICHI, 2007, p. 95). No final indica a autora: “a ideia de interesse público coincide com a ideia de bem comum (...), incorporada pelo chamado Estado Social de Direito, como reação à concepção utilitarista própria do individualismo que caracterizou o período do Estado Liberal” (DI PIETRO, p. 95-96).
Nesse sentido, Dalmo de Abreu Dallari ( apud VICHI, 2007, p. 96) se refere:
O gênero que compreende várias modalidades (de interesses): o interesse geral ,afeto a toda a sociedade; o interesse difuso, pertinente a um grupo de pessoas caracterizadas pela indeterminação e indivisibilidade; e o interesse coletivo, que diz respeito a um grupo de pessoas determinadas ou determináveis. (grifos do autor)
Até aqui não saímos do âmbito da ciência jurídica, mas percebemos que a dificuldade sobre o assunto não é passível de superação. Segundo Vichi (2007, p. 96), qual a razão de tanta dificuldade para conceituar e/ou significar política e interesse público? Para o autor se dá, simplesmente, porque no ordenamento jurídico não se oferece à ciência jurídica (dogmática) uma definição positivada de interesse público – o que convenhamos é indiscutivelmente compreensível, segundo ele, dada a amplitude deste instituto – e, portanto, tem de se socorrer da interpretação sistemática do ordenamento jurídico.
Em outra parte Vichi menciona que a “discussão sobre a relação entre direito e política e sua localização no direito urbanístico não estaria completa se não dedicássemos mais algumas laudas sobre o exercício” (2007, p.100-101). No entanto, frisa que esse exercício de “competência discricionária no direito administrativo, ao qual o direito urbanístico deve a sua maior referência, dado a intrínseca relação com o exercício de função política indireta”, é, principalmente no tocante ao interesse público, uma rotina administrativa.
A isso se completa a leitura realizada sobre a Cidade Educadora. Para que a legitimidade das ações inerentes a esse modelo de cidade seja uma sequência natural no âmbito administrativo é necessário que o exercício político do gestor público, na competência discricionária que dele advém por via do direito administrativo, “enseja o exercício de uma prática política, ainda que de forma reflexa” (DI PIETRO apud VICHI, 2007, p.102).
Segundo Habermas isso significa a complicada dialética entre “facticidade” e “validade” que subverte a relação entre “legitimidade” e “legalidade” de uma ordem social “fornecendo o fundamento indispensável para a “legalidade”” (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 192); nesse caso de transformar as ações voltadas às cidades em prol da expectativa de torná-la educadora, como se prevê nos moldes exigidos pela sociedade moderna.
A facticidade de uma ordem social como as ações direcionadas ao interesse público no âmbito urbano (o exemplo da Cidade Educadora) pode significar simultaneamente que esta ordem seja “legítima”, por se tratar da adesão “afetiva e efetiva” e de “pertencimento” da maioria da população ao modelo proposto, e por sua vez, a participação incondicional dos seus habitantes ao modelo de gestão democrática participativa que esse modelo confere. “Mas facticidade também significa, nesse caso, “legalidade da ordem social estabelecida” (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 192) porque o modelo de cidade e de educação para a cidade propõe reformular os sentidos advindos dos formatos urbanísticos que a sociedade vivencia atualmente.
Neste caso, tomando Habermas, a ordem urbanística pode mesmo ser legal e legítima e pode ainda ser validada pelos gestores públicos na medida em que passa a ser da ordem social e de interesse público, “cujas normas e leis foram elaboradas democraticamente, envolvendo todos os “atingidos” e interessados no processo” (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 192). Além disso, Habermas considera que a ordem a ser estabelecida nesse caso deve se dar por vias argumentativas, criando uma nova normalidade baseada na razão comunicativa.
Para assegurar a “validade” de uma ordem social, tais critérios discursivos precisam ser atendidos, respeitados. Em suma, a “facticidade” refere-se a uma realidade social, oriunda simultaneamente de duas fontes: (a) de processos históricos e sociais “espontâneos”, cuja normatividade pode ser atribuída ao sentimento comunitarista e à tradição; e, (b) de práticas normativas, deduzidas da legislação vigente. Tal facticidade somente teria “validade ética jurídica”, se as normas e leis que a regem tivessem sido elaboradas discursivamente, conforme os critérios acima relacionados. (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 193)
Embora Habermas assegure que ainda hoje não haja uma ordem social devidamente complementada, factual, que pudesse ter “Geltung”, isto é, validade no sentido discursivo, que ele defende, os princípios assegurados no formato da Cidade Educadora podem ser admitidos no sentido discursivo que atribui o teórico; afinal, conforme se podem observar os projetos de cunho democráticos e participativos como são propostos no âmbito desse modelo de cidade tem, sem dúvida, facticidade, mesmo que não atendam a todas as urbes indistintamente.
Esta ordem normativa alimenta-se, contudo, de elementos históricos e empíricos, na medida em que, por um lado, origina-se do “mundo vivido” do qual deduz seus elementos normativos jurídicos. Por isso Habermas é, até certo ponto, otimista: acredita que as sociedades ocidentais (europeias e americanas do norte) já se aproximam bastante da norma ideal. (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 194)
Barbara Freitag, citando Habermas, menciona que “graças a uma institucionalização crescente dos direitos humanos, de leis igualitárias (...) implementadas graças à luta cotidiana, a realidade factual da equiparação está presente em todos os campos e arenas sociais” (FREITAG, 2005, p. 194).
Produz-se, desta forma, uma facticidade nova que corrige as distorções históricas e sociológicas seculares anteriores. (...) O mesmo estaria valendo para os negros, os latino-americanos, gays e outros grupos sociais, outrora discriminados e desprivilegiados. Em todos esses casos, a legalidade discursiva estaria tornando possível a legitimidade das reivindicações das antigas minorias.
Neste aparato o modelo da Cidade Educadora trata de uma força conjunta para fazer das cidades fragmentadas e distantes dos seus cidadãos uma reconstrução por meio de uma teoria discursiva do direito, porque o “direito é a própria categoria do “direito” (Recht). Trata-se de uma força integradora que reunifica e harmoniza o “mundo vivido” com o “sistema político e econômico” (mundo sistêmico), ameaçados de dissociação e de colonização indesejada do primeiro pelos dois últimos.
O direito, nessa função integradora, regulamenta ainda os excessos da economia e do poder, instrumentalizando-se para ordenar o que os mecanismos de integração sistêmica já não conseguem mais regulamentar e controlar: a motivação e disposição interna dos atores em contextos políticos, sociais e cotidianos.
Assim como o direito atua de forma ordenada nos subsistemas do poder e da economia das modernas sociedades, ele também regulamenta, equilibra e ordena as emoções e expectativas dos atores em contextos cotidianos do “mundo vivido”. As expectativas de ação e interação entre os atores passam a ser internalizadas de sistemas normativos e legais, introduzidos por vias argumentativas, aos quais aos atores aderem por convicção e convencimento. (HABERMAS apud FREITAG, 2005, p. 194)
Por meio da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e do Direito Público e de seus princípios e regras, a Cidade Educadora apesar de pertencer à esfera política educacional e comunicacional guarda, em si, princípios de profunda intimidade com o Direito, porque na sua função social e a supremacia do interesse público que dela emerge, assim como as formas de intervenção urbana que mantêm distintos os enfoques de gestão democrática participativa, enquanto procedimentos discursivos para adquirem validade no espaço e/ou território devem, podem e fazem relegadas ao campo do “mundo vivido” de seus cidadãos e dos seus subsistemas culturais, sociais e econômicos.
2. O Estatuto da Cidade como materialização jurídica do conceito de política urbana e instrumento para a implementação da Cidade Educadora
O Estatuto da Cidade apresenta diversas normas determinativas de convocações da participação cidadã na elaboração das políticas públicas para o efetivo direito à cidade, nos moldes também ressaltados no projeto de Cidade Cidadã e Educadora e nas teorias tomadas para os embasamentos sobre o assunto.
Neste momento cabe trazer ao debate o processo histórico dessa regulamentação conforme determina nas seções X e XII, do Capítulo II, do referido Estatuto, acrescido o capítulo IV, que trazem no bojo proposições inovadoras e de ordem pública dos seus preceitos jurídicos.
Antes dessa orientação queda-se que o direito à cidade nasceu como um marco teórico a partir da década de noventa do século XX, orientada pela “Conferência Habitat II de Istambul (1996), em superação ao esgotado modelo tradicional de direitos humanos pautado nos direitos individuais, como também de bem-estar social de forte conotação individual” (REDIN, 2011, p.57).
Aliás, este esquema de direitos individuais onde se insere a cidade como espaço institucional, encontra respaldo no desenho de Foucault (2008, p. 23) sobre as cidades: “é nesse espaço que se dá “a constituição de um espaço vazio e fechado, no interior do qual são construídas multiplicidades artificiais organizadas” (FOUCAULT apud REDIN, 2011, p.57).
Lá é que se estabelece o “tríplice princípio da hierarquização, da comunicação exata das relações de poder e dos efeitos funcionais específicos desta distribuição”, como, por exemplo, assegurar o comércio, a moradia, etc. A “construção arquitetada da cidade”, como um “espaço de segurança”, é um exemplo da ação biopolítica[1] do Estado, neste caso pensada sobre um espaço territorial de circulação da população: lugar onde se manifestam e se impõem os mecanismos de disciplina, de individualização e de administração das multiplicidades dos sujeitos, os quais não são compreendidos como sujeitos, mas objetos de um processo mecânico onde se estrutura um corpo funcional (repartição espacial) (FOUCAULT apud REDIN, 2008, p.29).
De acordo com Vichi, podemos notar aqui, que o télos pode estar ajustado a uma dada ação governamental para um dado setor da sociedade ou espaço geográfico. Ou, “em sentido contrário, quando uma determinada política pública encontra amparo legal em regras ou princípios está apta a ser concretizada por intermédio do direito.” (VICHI, 2007, p. 86-87)
Pelo que se pode observar, a política pública a ser aplicada é aquela escorada no espírito da lei. Tanto atos administrativos vinculados como atos expedidos no exercício de competência discricionária comportam, em última análise, o exercício de uma ação jurídico-política.
Nesse caso, como propomos, tem-se o Estatuto da Cidade que estabelece normas de ordem pública e de interesse social, como dita o parágrafo único: “para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar social dos cidadãos”.
Por esta razão, considerou-se por bem o legislador brasileiro, seguindo orientação constitucional, expressa nos Arts. 182 e 183 da CF/88, no Art 1°, Capítulo I das Diretrizes Gerais do Estatuto da Cidade, tratar da execução da política urbana presente nos referidos artigos, e que será aplicado ao previsto na Lei, com o objetivo de garantir o direito às cidades sustentáveis, tais como previstas no projeto da “Cidade Educadora”, entendida como modelo direcionado à utilização adequada do espaço urbano em prol da adoção de políticas públicas ofertadas para o pleno desenvolvimento das cidades (Art. 2° - IV), da distribuição correta espacial da população (Art. 2°- IV) e das atividades planejadas a fim de integrar e complementar a justa distribuição dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais (Art. 2°- X), gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (Art. 2°- II), entre outras.
Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: – Art. 4° Capítulo II, dos Instrumentos da Política Urbana – Seção I, dos instrumentos em geral, o que aqui se apregoa, no item (f): gestão orçamentária participativa; - Capítulo III – do Plano Diretor – I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; - Capítulo IV – da Gestão Democrática da Cidade – art. 43, constantes nos itens I; II; III; IV; V (vetado); - Arts. 44 e 45 que cumprem em todos esses dispositivos de contemplar os direitos humanos, a partir de um direito individual, mas consubstanciado no vínculo de cidadania, de uma igualdade formal e na esteira do conceito de justiça social.
É nesse sentido que a dimensão do espaço público da Cidade Educadora se manifesta. Nos termos de Arendt (2009) é o vínculo da condição humana à possibilidade de ação, com liberdade, a partir da diversidade, “no âmbito adequado de cuidar das necessidades vitais”, que é sempre marcante na presente esfera da vida social e comunitária.
Esse processo objetiva ressignificar os espaços das cidades de modo condizente às reais necessidades da qualidade de vida local, ou seja, espaço de interesse público. O exemplo vê-se nos projetos desencadeados em algumas cidades com a classificação de Cidades Educadoras como apresentadas anteriormente. A lógica dessas cidades é alicerçada nas estruturas físicas, mas também simbólicas, haja vista o espaço urbano ser cerceado de signos os mais diversos que compõem os modos de vida do seu público. Por isso, não é possível pensar a ressignificação das cidades sem considerar os seus espaços sob os prismas jurídicos, arquitetônicos, culturais, econômicos, sociais, educacionais etc.
No que se refere ao conceito da cidade, propriamente dito, foi abordado em um primeiro momento os aspectos da produção capitalista do espaço, tal como proposto por Milton Santos, Ângelo Serpa, Nabul Bonduki, Henry Lefebvre e outros. Por sua parte vale ainda mencionar a cidade sob os aspectos funcionais, ou no melhor dos termos – o das funções sociais das cidades por ser um lugar para o estabelecimento do que seja essencial à qualidade de vida. Grande parte dos esforços se engendra no sentido de trazer dentre os objetivos das políticas de desenvolvimento urbano, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, perpassando pelas políticas pública e educacional que o tema sugere.
Em seu artigo 182 da Constituição Federal de 1988, o ordenamento das plenas funções sociais das cidades e a garantia do bem-estar de seus habitantes assevera que nelas devam transparecer a convocação da sociedade a refletir e colocar em prática a redução das desigualdades e a busca pela equidade social a todos os cidadãos. Por ser um dos princípios basilares aos direitos sociais, o direito à cidade ganha destaque especial, principalmente, porque trata de uma ampla dimensão.
3.As funções sociais das cidades no exercício da Lei 10.257/2001
Segundo Nelson Saule Júnior (1997, p.61) as funções sociais das cidades somente poderão ser plenamente desenvolvidas quando houver redução das desigualdades sociais, promoção de justiça social e melhoria da qualidade de vida urbana.
Letícia Marques Osório (apud ALFONSIN, FERNANDES, 2006, p. 196) salienta que o direito à cidade é interdependente de todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Para a autora não há como tratar de desenvolvimento pleno das funções sociais das cidades, tão somente na dimensão constitucional desse princípio, pois, não se devem orientar as políticas de desenvolvimento urbano sem perpassar pelo rol de direitos que são amplamente garantidos às gerações presentes e futuras como pretendidos na lei. Nesta linha de pensamento é que procuramos correlacionar as funções sociais das cidades e o direito à cidade nos moldes da Cidade Educadora, porque aqui não se dissocia o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades de todos os outros direitos e regulamentações reconhecidos. Assim, é possível afirmar que a proposta constante nesse modelo de cidade pode assegurar o direito pleno ao espaço urbano, uma vez que visa, sobretudo, o exercício da cidadania ativa, a vivência do cotidiano dos cidadãos na urbe, a política de respeito à historicidade que dela emerge, como caminho essencial para a realização do Estado Democrático de Direito.
Gabriel Merheb Petrus citado em Teixeira (2011, p. 809) destaca:
(...) o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dialética que abre, ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conecta com o passado, na medida em que constitui, como preceitua a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um “direito de caráter coletivo que permite à sociedade ter acesso à informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos”. Mas também rompe com o passado, medida que possibilitaria às instituições do estado que se envolveram na repressão converterem-se de fato à democracia (...).
Assim, não há dúvida que os espaços públicos não podem ser ressignificados sem a participação efetiva daqueles que neles residem.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo ao comentar o Capítulo IV – Da Gestão Democrática da Cidade diz que esse capítulo rompe com a superada visão administrativista de disciplinar as cidades a partir de regramentos impostos tão somente pelo Poder Público.
Baseada nos fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CF), bem como da cidadania (art. 1°, II, da CF), e fixada através de diretriz contida na Lei 10.257/2001 (art. 2°, ii), a gestão democrática da cidade (arts. 43 e 45) permite dar efetividade à tutela do meio ambiente artificial através da participação direta de brasileiros e estrangeiros residentes em nosso País, o que será feito não só no âmbito institucional (art. 43, I), como através de iniciativa popular de projeto de lei (art. 43, IV) (FIORILLO, 2010, p. 168-169).
Por isso, segundo Fiorillo não há que se desconsiderarem outros instrumentos de controle socioambiental, a exemplo das ações coletivas visando à tutela jurisdicional em defesa do meio ambiente artificial ecologicamente equilibrado. Diz ainda:
Que poderão ser manejadas pela população (...). Os debates, audiências e consultas públicas (art. 43, II), inclusive como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal (art. 44), atestam, sob o ponto de vista jurídico, a vontade do legislador de submeter ao próprio povo – livre de intermediários institucionais – a gestão democrática da cidade (grifo do autor). (FIORILLO, 2010, p.169).
No que se referem às demais questões relacionadas à cidade no âmbito jurídico existente entre a Lei 10.257/2001 (Lei do Meio Ambiente Artificial) e a Lei 8.429/1992 (Lei da Improbidade Administrativa), de acordo com Fiorillo, aplica-se o procedimento administrativo bem como o processo judicial direcionado pela Lei 8.429/1992 (arts. 14 a 18) ao Estatuto da Cidade, particularmente em decorrência da necessidade de se utilizar o erário em proveito específico dos territórios urbanizados por forças das regras de meio ambiente artificial criadas pelo legislador.
Art. 53. O art. 1° da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar acrescido de novo inciso III, renumerando o atual inciso III e os subsequentes:
“Art. 1° (...) III – à ordem urbanística; (...)” *
Artigo com eficácia suspensa por força da MP 2.180-35/2001. (FIORILLO, 2010, p.178).
Para Fiorillo:
Os artigos 53 e 54 do Estatuto da Cidade são os mais importantes dispositivos da lei que organiza o meio ambiente artificial em nosso País, na medida em que demonstram a natureza jurídica dos bens tutelados pela Lei 10.257/2001 como preponderantemente de direito material constitucional coletivo e, no plano dos subsistemas jurídicos que se harmonizam com o comando constitucional, de direitos materiais metaindividuais. (FIORILLO, 2010, p.17).
Complementa o comentário acerca dos artigos mencionados que a tutela material e processual dos direitos apontados no Estatuto da Cidade,
[...] não se esgota em face dos direitos materiais individuais; ao contrário, é na verificação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos que se estabelece a importante contribuição de um estatuto normativo do século XXI (FIORILLO, 2010, p.169).
Segundo o autor, a inclusão do meio ambiente artificial como novo inciso vinculado ao caput do art. 1° da Lei 7.347/1985, através de nova estrutura jurídica denominada de “ordem urbanística”, revela a clara opção do legislador de situar o Estatuto da Cidade como diploma vinculado aos denominados “direitos difusos e coletivos”, expressão criada pela Constituição Federal de 1988, no art. 129, III (FIORILLO, 2010, p.169). Desse comentário e relacionado à temática ora proposta, Fiorillo (2010, p. 179-180) é categórico e afirma:
Sempre que houver lesão ou ameaça à ordem urbanística caberá à utilização de ações coletivas em face de danos patrimoniais, morais ou à imagem que possam ocorrer. Por se tratar o meio ambiente artificial de bem essencial à sadia qualidade de vida.
Fica claro que o posicionamento que tomamos nesse diapasão é a possibilidade de se ajuizar a gestão democrática da cidade objetivando, dentre as ações, a efetiva participação dos habitantes nas decisões políticas, econômica e administrativa da cidade. Nessa linha, assegura Fiorillo que o meio ambiente artificial figura como destaque em decorrência do que informa o artigo 54 da Lei 10.257/2001, porque aqui se aplicam ao Estatuto da Cidade não somente as normas descritas na Lei 7.347/1985, como também os dispositivos previstos na esfera material e instrumental da Lei 8.078/1990, especificamente cita o autor, nos artigos 81 a 90.
A efetivação do direito à cidade depende da observância do princípio pleno da jurisdição e de suas funções sociais, sendo que estas, por sua vez, também podem ser efetivadas em conjunto com a população que reconhece a sua história e que nela reside. É desse modo que o desenvolvimento da democracia em face dos efeitos de produção e de ressignificação dos espaços depende da historicidade, da cultura, dos fatores e fatos econômicos etc., que possam ser também exaltados no direito à cidade, porque o desenvolvimento urbano depende da jurisdição, mas deve ser pensado correlacionado ao cumprimento das funções sociais da cidade e ao exercício que a urbe exerce sobre seus cidadãos.
Nos dizeres de Rogério Gesta Leal (2011, p. 22-23) o Estatuto da Cidade, enquanto referencial normativo à ordenação do espaço urbano apresenta-se também como vetor político que informa os objetivos e finalidades da própria cidade, já determinados em certo sentido pelos termos constitucionais vigentes.
Para Bonizatto, “em um primeiro exame constitucional, parece clara a intencionalidade do legislador em aproximar Estados, Distrito Federal e União a competência para legislar sobre Direito Urbanístico” (BONIZATTO, 2005, p. 118). É o que se depreende do art. 24, inciso I da CF/88. No entanto, necessário se faz também identificar que o citado no referido artigo não exime o município de editar normas que concernem à matéria pertinente, como previsto no art. 30, inciso II, da Carta Magna.
Todavia, cumpre relembrar que na CF/88 e no Estatuto da Cidade é conclamado o regime democrático, com o objetivo de que a própria sociedade busque meios de melhor agir no seu meio e faça valer os seus direitos básicos fundamentais.
E não é difícil perceber que, quando se vê legalmente amparada, esta mesma sociedade adquire imenso poder, pois sua participação em políticas e decisões públicas não se dará somente calcada em princípios de cidadania participativa e em possibilidades constitucionais de atuação. Ao revés, tendo o Poder Público, por meio de seu órgão produtor de leis, garantido e exigido a participação da sociedade em políticas públicas urbanas, a atuação da sociedade civil eleva-se a uma categoria até então não imaginada, vale dizer, imprescindível para Administração Pública, a qual, apenas depois de posicionamento da comunidade, poderá conduzir o desenvolvimento urbano da cidade. (BONIZATTO, 2005, p. 118)
Viu-se com tais estudos que é notório e indiscutível o papel dos cidadãos na melhoria da realidade social em que vive. Aqui se visa, fundamentalmente, a ideia de uma democracia “onde a sociedade de forma direta, exerce o seu direito não somente ao voto para escolha de representantes, mas também, nas afirmações dos negócios políticos do Estado” (BONIZATTO, 2005, p. 118), do município, do bairro.
Esta democracia participativa não poderia jamais prescindir de uma política de conscientização efetiva da população, a qual remontaria à produção de leis comprometidas com a participação social, a investimentos sociais significativos e a remodelagem do poder político e seus principais objetivos, que não pode, de forma alguma, desviar-se da finalidade precípua de manutenção e persecução do interesse público. (BONIZATTO, 2005, p. 159)
Ao retornar à pontuação que fazemos sobre a cidadania ativa desde o início desse trabalho, fincamos na nota de que a participação da sociedade, em tempos atuais, vem tomando “corpo” de modo gradual, mas é de suma importância para o aprimoramento do Estado Democrático de Direito e da concretização das políticas públicas relevantes para a remodelagem das cidades modernas. Para Bonizzato “por isso, vem-se sustentando que o cidadão nacional, ao batalhar por um bairro melhor e com maior qualidade de vida, estará, automaticamente, favorecendo o desabrochar de uma melhor cidade, região, até mesmo, país” (BONIZATTO, 2005, p. 162).
Nesse sentido, a “Cidade Educadora” ‘tenta’ reafirmar o papel do cidadão na operacionalização das ações do espaço público da cidade, ou seja, ‘conclama’ os sujeitos envolvidos no processo educacional e social a fim de definir o modelo de educação pretendido para a dita “Cidade Educadora”, cujo objetivo é sintetizado pelo termo “educação com qualidade social”, meta que só é possível a partir do momento em que a educação passa a ser concebida em função dos “reais” interesses da comunidade local.
Logo, passa-se a descentralização do poder na figura do gestor, isto é, busca-se o discurso articulado, que não parece possível sem o domínio da sensibilidade e da descentralização do poder, porque, segundo Paulo Freire (1980, p.109), alcançada a descentralização há o início de um processo estimulador e viabilizador das parcerias. Ao impregnar-se da perspectiva freireana, os idealizadores dessa cidade pretendem alcançar o projeto democrático de educação para a cidade e de cidade para a educação, pois, para Freire (1997, p.75) somente com a gestão democrática é coerente a natureza de uma organização educacional e uma reestruturação da cidade.
Em consonância com esse entendimento Habermas assevera que as forças sociais as quais pretendem influenciar as decisões do poder configuram um público que faz uso do debate racional e da argumentação política para legitimar publicamente suas posições. A esfera pública é constituída pelo conjunto político dos sujeitos que, baseados numa relação social privada e de troca de informações, debate, num espaço público o desenvolvimento do conjunto de dispositivos de cidadania. No entanto, esse conjunto de dispositivos passa a ser significativos na medida em que estabelecem mecanismos institucionais que possam vir a organizar efetivamente as relações, por um lado, entre os sujeitos e os grupos sociais e, por outro, entre estes e as instituições políticas e sociais. Conforme o discurso dos idealizadores do projeto “Cidade Educadora”, essa arena se constituiria nos espaços sociais instituídos por projetos públicos, que cumpririam assim uma função de mediação (entre outras).
De acordo com Habermas, o uso da razão preenche importantes funções sociopolíticas, sobretudo, a de um aquietador substituto da ação, porque se por um lado a esfera privada parte da concepção mais realista uma vez que supõe a separação entre uma sociedade formada por sujeitos que trocam mercadorias de modo privado, em um sistema de livre competição e, com respeito a um Estado que deve garantias e condições jurídicas a fim de se alcançar plenamente o desenvolvimento dos interesses privados dos cidadãos, por outro a ideia aqui parte do modelo de participação ativa do cidadão que constitui a comunidade de comunicação como uma organização política, porque possibilita a autocompreensão de si mesma.
A hipótese que move o ideário de Cidade Educadora é fincada nesta linha, pois, crê-se que para obter êxito ou nexo interno entre razão e vontade, como advém nos procedimentos discursivos deve-se pautar nos discursos racionais, cuja razão prática surge das regras do discurso e das formas de comunicação que provém da própria ação comunicativa dos cidadãos no espaço – cidade, como trazido ao debate desde o início deste trabalho. Pois, com o intento da propositura da Cidade Educadora, a partir da compreensão normativa da gestão democrática participativa, pode-se mostrar como é possível que a comunicação da comunidade presente na intersubjetividade da ação comunicativa se afirma no âmbito da cidade complexa e se transforma no poder administrativo da política pública.
Por essa perspectiva, o discurso da gestão pública, constante nos documentos formais do Estatuto da Cidade, dá mostras da intencionalidade do poder público de procurar criar espaços públicos para a participação da comunidade, com o objetivo de que ela venha administrar a “coisa” pública ao lado do poder público.
Em Freire, as questões que se apresentam nos parágrafos acima são marcadas pelo pensamento de que a escola não é o único espaço da veiculação do conhecimento; desse modo considera outros espaços sociais como propícios à interação de práticas pedagógicas diferenciadas de maneira a possibilitar as experiências do cotidiano dos sujeitos no seu aprendizado. Não resta dúvida de que a noção de “politicidade” da educação que Freire menciona se volta ao oferecimento de uma política educacional crítica, superando os obstáculos de um sujeito disperso e/ou desvinculado do seu mundo vivido; por isso intentado no espaço público da cidade. Freire chama a atenção para uma educação como lugar da ação política e de expressão do sujeito. Importante neste contexto destacar que o mundo vivido, tal qual concebido por Jürgen Habermas dialoga com Paulo Freire, porque é no mundo vivido que se permite a ação comunicativa, onde deve dominar a ação dos sujeitos no ambiente, logo, um espaço social – lugar por excelência do agir comunicacional, cujo domínio é historicamente constituído de modo democrático e do uso livre e público da razão do sujeito.
Sob esta perspectiva o espaço social de educação tratado à Cidade Educadora tenderia a ser o espaço onde os sujeitos poderiam construir a comunidade de comunicação, onde se praticassem os ensinamentos necessários, consubstanciados a um processo político-pedagógico e comunicativo-dialógico.
Portanto, ao investir na gestão democrática participativa, o governo municipal tenta promover e fazer ‘visível’ pelos modos de educação prevista aqui, a centralização dos fatos educacionais nos atos comunicativos da comunidade – na cidade, uma construção discursivo-verbal que se encontra presente no projeto “Cidade Educadora”; cuja evidência é um conjunto contínuo de ações a fim de ser “seguido” por todos os sujeitos envolvidos: construção discursivo-verbal apoiada nas diretrizes institucionais e de Direito; e o governo municipal como condutor desse “modo de fazer discursivo” se compromete a elaborá-lo.
Considerações finais
Para apresentar o projeto de Cidade Educadora fez-se necessária a abordagem desse modelo de cidade pautada no Direito e no Estatuto da Cidade, como também nos princípios da Sociologia, Filosofia, Comunicação e Educação. Buscou-se, a partir desse arcabouço teórico, descortinar como a legislação colabora para entender o modo de fazer educação na cidade e para a cidade, pelo viés da gestão democrática participativa.
Em seguida pautou-se na ideia da Cidade Educadora como modelo de espaços sociais, isto é, de mediação: lugares propícios para a comunicação dos seus habitantes, como lugares de identificação de práticas culturais e de respeito às diversidades dos sujeitos envolvidos no processo educacional, com a finalidade de alcançar o modelo de gestão democrática participativa.
Prosseguindo, impuseram-se algumas reflexões sobre o Estatuto da Cidade e como esse instrumento direciona os gestores públicos para o exercício da prática da gestão democrática participativa, ao mesmo tempo em que conclama os cidadãos a participarem efetivamente e de modo compromissado com as ações políticas da cidade.
Nesse sentido, o plano dos discursos sociais presentes no proposto pela Cidade Educadora convertem os sentidos do espaço disponível na cidade - o lugar de (con)vivência dos indivíduos para a construção das próprias práticas de convivência e de política. Porque, quando o fluxo das ações socioculturais do lugar enunciado se rompe, surge a passividade política e o concomitante interesse restritivo pelo privado que permite o surgimento de partidos políticos e candidatos a cargos públicos, explorando projetos de políticas públicas em benefício da própria visibilidade. Nesse contexto, traduzimos a ação dos sujeitos de comunicação a partir da execução das experiências de Cidade Educadora, porque a “educação” como afirmação da liberdade, consiste em uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida da participação crítica e livre dos sujeitos, – matriz do idealismo de Paulo Freire. Isto significa que nas ações governamentais onde essa estratégia surge em seus resultados e objetivo existe a estruturação da democratização da cidade pelos sujeitos; afinal, a ideia de liberdade só adquire plena significação quando se relaciona com a luta concreta dos sujeitos por libertar-se, e não na prática da sloganização resguardada em práticas individualistas visando o próprio benefício.
Em síntese, experiências educacionais e urbanas visadas ou configuradas como estratégias políticas de cunho participativo dão condições para a concretização das relações dialógicas da comunidade, ao mesmo tempo em que possibilitam o respeito à cultura do outro e a valorização dos conhecimentos dos sujeitos na constituição do círculo de aprendizagem.
Sem o cerne que constitui a cidade como lugar da prática do diálogo (comunicação)-, é coisa óbvia que haja carência de indivíduos com competências e habilidades para gerir seu campo de atuação política; mas é óbvio também que, tendo a falta de participação, a manipulação se sobressai à prática da comunicação, e passa a ser o espaço para a convicção elevada e disputada de sujeitos passivos. Logo, um antagonismo de interesses estruturalmente neutralizador do poder social e da racionalização de dominação política no seio da discussão pública, nos dizeres de Habermas (2003, p. 272). Quanto a isso é preciso levar em conta que os gestores públicos encontram entre eles mesmos, um parceiro de mesma medida: o controle do aparelho burocrático do Estado só é possível, hoje, através da burocracia sociopolítica dos partidos e das associações de interesses (HABERMAS, 2003, p. 271).
Nessa ordem, o sujeito pode alcançar a liberdade que lhe possibilita querer-ter uma cidade com qualidade social a partir da própria “busca”, que o levará ao querer-ser – ele mesmo em busca da sua identidade no lugar onde reside. Portanto, a essa cultura seria a de uma cidade voltada para os reais interesses dos seus cidadãos em prol do efetivo exercício da cidadania, aquela que começa, antes de tudo, com o sentimento de pertença comunitária, de identidade, num espaço democrático e de consolidação do diálogo que possibilita ampliar a atuação do indivíduo no espaço social.
Nessa perspectiva, uma nova ampliação da problemática do Direito, da Comunicação e da Educação já deve ser prevista, em direção a uma prática discursiva que abarcaria, além da esfera dos discursos propriamente ditos, o conjunto das práticas significantes que se manifestam na diversidade dos espaços e nas situações de interação micro ou macrossocial que ocorrem no âmbito das cidades.
Essa observação é feita no sentido de apontar a necessidade fundamental da explicitação das intencionalidades presentes nos discursos políticos para as cidades. Daí nossa defesa de que não podemos separar a caracterização política de uma determinada tendência política (a teoria e a prática) de seu projeto histórico, pedagógico, comunicacional.
Sem um projeto político e de educação que objetive desestruturar o poder massificador, é historicamente impossível, a busca da superação desse poder; eis uma utopia (ou plano político?) a “perseguir”, porque não há práticas educativas, comunicativas ou jurídicas, como de resto nenhuma prática, que escape a limites. Limites ideológicos, epistemológicos, políticos, econômicos, culturais e de direito. As cidades se inserem nesta lógica.
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[1] Por biopolítica pode-se compreender a inclusão da vida, do humano, na ação política, ou seja, onde a pessoa humana é um elemento econômico-político. Ibidem.