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A interligação entre as bacias hidrográficas como pressuposto para a proteção do equilíbrio ambiental e da qualidade de vida

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Agenda 24/09/2017 às 10:40

Apresenta-se a interligação entre as bacias hidrográficas nacionais como instrumento de concretização dos preceitos constitucionais ambientais e a necessidade de uma Lei de Responsabilidade Ambiental.

RESUMO:A tímida atuação do Poder Público em cumprir com o dever assegurado na Constituição Federal para com a defesa e proteção do meio ambiente equilibrado e sadio atenta não apenas contra direitos fundamentais das presentes, mas também das futuras gerações. Os recursos hídricos, embora presentes em grande quantidade no Brasil, não recebem o tratamento que deveria ser conferido a bens de tamanha relevância para o progresso e desenvolvimento, porque essenciais à vida. A deficiência do saneamento básico, a ausência de uma rede de esgotos ampla e do adequado tratamento desses efluentes, e a precariedade na distribuição de água potável, são atualmente agravadas pelos efeitos da mudança do clima, causada principalmente pelo aquecimento global; não bastasse, há a sazonal exabundância na vazão de cursos d’água, que penetram em áreas urbanas e resultam em inegável prejuízo à qualidade de vida de toda a sociedade. Entretanto, se o excesso ocasional de água dos rios fosse recolhido antes de invadidas as áreas urbanas e armazenado, poderia ser adequadamente aproveitado, com a devida integração da malha hidrográfica, para manter um fluxo mínimo nas bacias nacionais.

PALAVRAS- CHAVE: interligação entre bacias hidrográficas; bacia hidrográfica; meio ambiente; direito ambiental; direitos fundamentais.

SUMÁRIO:1- Introdução; 2- A garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado; 2.1- Da eficácia do direito fundamental social de tutela ambiental; 2.1.1- Da Lei de Responsabilidade Ambiental; 2.2- Dos princípios aplicáveis em matéria ambiental; 2.2.1- Princípio do desenvolvimento sustentável; 2.2.2- Princípio da prevenção; 2.2.3- Princípio da precaução; 2.2.4- Princípio do poluidor-pagador; 3- Dos recursos hídricos; 3.1- A quem pertencem os recursos hídricos; 3.2- Da transposição do Rio São Francisco; 3.3- Da interligação das bacias hidrográficas para a transferência do excedente; 4- Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

A desídia do Poder Público na adoção de políticas que tratem os recursos hídricos com o grau de grandeza de um direito fundamental resulta em clara violação aos preceitos estabelecidos pelos constituintes de 1988 no art. 225 da Carta Magna. Não há, por exemplo, uma Lei de Responsabilidade Ambiental que estabeleça objetivos a serem alcançados e gastos que devem ser observados pela Administração Pública, com sanções aos gestores. Disso resulta o agravamento das dificuldades com as modificações climáticas previstas e aguardadas para os próximos anos.

Um meio ambiente equilibrado, que propicie qualidade de vida às gerações presentes e futuras, reclama a adoção de políticas públicas efetivas, que verdadeiramente corroborem na solução do problema de escassez de água sazonal em algumas regiões e crônico no semiárido. Mas não só, pois é necessário, também, amainar os dissabores e transtornos causados pelo transbordamento de alguns rios, que provocam enchentes e inundações. Essas necessidades prementes não ilidem, evidente, a indispensável universalização da água potável, da rede de esgotos e total tratamento desses resíduos antes de lançá-los no ambiente.

Com relação à superabundância sazonal na vazão de alguns cursos d’água, que invadem regiões urbanas e inundam e encharcam áreas regularmente secas, há um inegável passivo hídrico ambiental. Todavia, há também um ativo, que hodiernamente é inutilizado. Enfrentada a questão sob o prisma de um direito humano fundamental, que é o direito ao meio ambiente equilibrado, e considerando a relevância dos valores envolvidos, notadamente a qualidade de vida, o ativo hídrico propiciado pelo excesso de vazão deve ser aproveitado para, consequentemente, reduzir o passivo a níveis aceitáveis, minimizando os efeitos hodiernamente percebidos.

Isso porque a água presente no excesso da vazão, se coletada antes do transbordamento, diminuiria o passivo, podendo até mesmo anulá-lo. E, por outro lado, essa água coletada não seria simplesmente retirada de um curso d’água em sua vazão média, prejudicando o equilíbrio do ecossistema do doador; pelo contrário, pois seria uma água que não traria qualquer benefício àquele ecossistema e, ao final, seria destinada ao mar.

O ativo hídrico, assim, seria constituído pelo aproveitamento da água descartável de cursos d’água que, ocasionalmente, experimentam excessiva elevação na vazão e provocam inundações e enchentes em áreas comumente secas, causando danos e prejuízos imensuráveis. Esse aproveitamento, se por um lado revela capacidade de reduzir os malefícios decorrentes de fortes chuvas e de evitar o nefasto efeito das cheias de rios, por outro constituirá em fonte idônea, sob o aspecto de impactos ambientais, na constituição de depósitos hábeis a suprir a necessidade de outras bacias, como a do semiárido, e daquelas que, sazonalmente, padecem pela estiagem.

Daí porque a integração das bacias hidrográficas, com a consequente captação do excesso de vazão dos cursos d’água e sua armazenagem, constitui pressuposto relevante para assegurar melhoria na qualidade de vida em tempos de aquecimento global.   


2. A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

Meio ambiente, nos termos do art. 3º, I, da Lei nº 6.938/81, é definido como “o conjunto de condições, leis influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.  Esse conceito foi recepcionado pela atual Constituição porque, como lembra Fiorillo (2005, p. 19), “a Carta Magna de 1988 buscou tutelar não só o meio ambiente natural, mas também o artificial, o cultural e o do trabalho”.

Destaca Abraão (2013, p. 1107) que, antes de 1988, nunca uma Constituição nacional havia estabelecido um “capítulo sobre o meio ambiente”, e que essa inserção na Carta Política revela “a importância da questão que, já há algum tempo, preocupa a população do planeta”, concluindo “a questão ambiental é de complexidade mundial, obrigando que as nações optem por um sistema normativo e fiscalizatório eficiente”[2].

Na verdade, são acentuadas as críticas doutrinárias sobre a “expressão meio ambiente, afirmando que ambos os termos seriam sinônimos e, portanto, haveria uma redundância”, como aponta Fernandes (2013, p. 1230-1231), assentando que, entretanto, “há quem atribua à expressão sentido mais amplo, mais rico devido à conexão de valores”[3]. Para o autor, o signo de meio ambiente

Engloba, portanto, o meio ambiente natural (ou físico), formado pelo solo, água, ar atmosférico, energia, flora, fauna (art. 225, da CR/88); o meio ambiente cultural (art. 215 e 216, da CR/88), que se liga à história e cultura de um povo, revelando suas raízes e identidades (na forma do patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico); o meio ambiente artificial (ou humano), que é o espaço urbano construído pelo homem (edificações, ruas, parques, áreas verdes, praças etc); e o meio ambiente do trabalho, como espécie de meio ambiente artificial, mas que se destaca pela autonomia, sendo o local no qual o trabalhador exerce sua atividade (art. 196 e ss., da CR/88). (FERNANDES, 2013, p. 1230-1231) (destaques no original)   

Embora sintetizado num único artigo na Constituição Federal, no Capítulo VI, denominado “Do Meio Ambiente”, inserido no Título VIII, “Da Ordem Social”, sua redação levou Silva (2012, p. 436) assentar que a qualidade ambiental “se transformara num bem, num patrimônio, num valor comum, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornaram num imperativo para o Poder Público, para assegurar a saúde, o bem estar do homem e as condições de seu desenvolvimento”, ou seja, “para assegurar o direito fundamental à vida”.

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CAPÍTULO VI

DO MEIO AMBIENTE

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; 

[...]

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

[...]

V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;   

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. 

[...]

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

[...]. (destacamos)

O termo utilizado pelos constituintes de 1988 para identificar, no caput do art. 225, qual o meio ambiente tutelado, qualificando-o como aquele “essencial à sadia qualidade de vida”, revela dois objetos de proteção ambiental, como destaca José Afonso da Silva (1994, p. 54), “um imediato, que é a qualidade do meio ambiente, e outro mediato, que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população, que se vêm sintetizando na expressão da qualidade de vida”.  O escopo dessa interação, para Cunha Júnior (2013, p. 1266), é propiciar “uma visão unitária do meio ambiente compreensiva dos elementos naturais e culturais”, ressaltando que “esse conceito de meio ambiente não se reduz a ar, água, terra, mas deve ser definido como o conjunto de condições de existência humana, que integra e influencia o relacionamento entre os homens, sua saúde e seu desenvolvimento”[4].

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, reconhecido na Constituição Federal em capítulo situado no título da ordem social, é um direito fundamental, na categoria direito social, qualificado pela doutrina como direito de terceira geração. Nem por isso se lhe negue o caráter, também, individual. Cuida-se, pois, de um direito simultaneamente considerado direito social e individual, uma vez que a realização individual deste direito fundamental está intrinsecamente ligada à sua realização social, por isso mesmo considerada transindividual. (CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 1266) (destaque no original)

O equilíbrio ambiental, “do ponto de vista ecológico, consubstancia-se na conservação das propriedades e das funções naturais desse meio”, adverte Machado (2013, p. 65-66), de sorte a permitir não apenas a existência, mas também a evolução e o desenvolvimento de todos os seres vivos. Para o professor, “Ter direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado equivale a afirmar que há um direito a que não se desequilibre significativamente o meio ambiente”, lembrando que “esse estado de equilíbrio não visa à obtenção de uma situação de estabilidade absoluta, em que nada se altere”, mas sim “um desafio científico, social e político permanente”, no qual sempre haja a possibilidade de “aferir e decidir se as mudanças ou inovações são positivas ou negativas” (MACHADO, 2013, p. 66).

Desse equilíbrio decorre o direito à qualidade de vida sadia, que não se revela apenas “numa contraposição a não ter doenças diagnosticadas no presente” (MACHADO, 2013, p. 70), sendo imprescindível levar “em conta o estado dos elementos da Natureza- águas, solo, ar, flora, fauna e paisagem- para aquilatar se esses elementos estão em estado de sanidade e de seu uso advenham saúde ou doenças e incômodos para os seres humanos”.  Aliás, o Pleno do STF já deliberou, com relatoria do Ministro Menezes de Direito, que “O meio ambiente não é incompatível com projetos de desenvolvimento econômico e social que cuidem de preservá-lo como patrimônio da humanidade. Com isso, pode-se afirmar que o meio ambiente pode ser palco para a promoção do homem todo e de todos os homens”.

2.1 DA EFICÁCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL DE TUTELA AMBIENTAL

Os direitos fundamentais, como salienta Gilmar Ferreira Mendes (2011, p. 667), possuem, “além de uma proibição de intervenção, um postulado de intervenção”, significando “não apenas uma proibição de excesso, mas uma proibição de proteção insuficiente”. O autor arremata:

Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades individuais, impliquem tanto direitos a prestações em sentido estrito (positivos) quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandem o emprego de recursos públicos para a sua garantia, é a dimensão prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal argumento contrário à sua judicialização. A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornar exigíveis. Nessa perspectiva, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação de poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível. (MENDES, 2011, p. 667-668)

De outro turno, ao discorrer sobre a eficácia dos direitos fundamentais, Silva (2013, p. 469- 470) assenta que “a garantia das garantias consiste na eficácia e aplicabilidade imediata das normas constitucionais”, porque os direitos, as liberdades e as prerrogativas caracterizadas como direitos fundamentais “só cumprem sua finalidade se as normas que as expressem tiverem efetividade”, ressalvadas as excepcionais situações de impossibilidade absoluta:

Sua incidência só por si, contudo, estabelece uma ordem aos aplicadores da Constituição no sentido de que o princípio é o da eficácia plena e a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos, de tal sorte que só em situações de absoluta impossibilidade se há de decidir pela necessidade de normatividade ulterior de aplicação.

Por isso, revela-se, por seu alto sentido político, como eminente garantia política de defesa da eficácia jurídica e social da Constituição. (SILVA, 2013, p. 469- 470)

Todavia, o Direito não é estanque, e a jurisprudência nacional, acompanhando a melhor doutrina, entende que o alcance dos direitos fundamentais não deve ser menor do que aquele adequado para atender as necessidades da sociedade em um determinado momento. Sem essa interpretação consentânea da Carta Política, os conflitos imanentes da própria evolução social não seriam enfrentados com justiça; mais que isso, os fundamentos pretendidos pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, como a dignidade da pessoa humana e a promoção do bem comum, seriam lançados meramente à condição de normas programáticas (POLÍZIO JÚNIOR, 2014², p. 98-99). Oportuno escólio de Barroso (2013, p. 334-335):

A nova interpretação constitucional surge para atender às demandas de uma sociedade que se tornou bem mais complexa e plural. Ela não derrota a interpretação tradicional, mas vem para atender às necessidades deficientemente supridas pelas fórmulas clássicas. Tome-se como exemplo o conceito constitucional de família. Até a Constituição de 1988, havia uma única forma de se constituir família legítima, que era pelo casamento. A partir da nova Carta, três modalidades de família são expressamente previstas no texto constitucional: a família que resulta do casamento, a que advém das uniões estáveis e as famílias monoparentais. Contudo, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passou a existir uma nova espécie de família: a que decorre de uniões homoafetivas. Veja-se, então, que onde havia unidade passou a existir uma pluralidade.

A nova interpretação incorpora um conjunto de novas categorias, destinadas a lidar com as situações mais complexas e plurais [...]. Dentre elas, a normatividade dos princípios (como dignidade da pessoa humana, solidariedade, segurança jurídica), as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação jurídica. Nesse novo ambiente, mudam o papel da norma, dos fatos e do intérprete. A norma, muitas vezes, traz apenas um início de solução, inscrito em um conceito indeterminado ou em um princípio. Os fatos, por sua vez, passam a fazer parte da normatividade, na medida em que só é possível construir a solução constitucionalmente adequada a partir dos elementos do caso concreto. E o intérprete, que se encontra na contingência de construir adequadamente a solução, torna-se coparticipante do processo de criação do Direito.

Essa evolução na exegese do Direito é essencial para que se possa adequar a vida em sociedade com o ordenamento jurídico. As normas devem adequar-se à sociedade, e não esta àquelas. Evidente que são dos legisladores, em um Estado Democrático de Direito, a atribuição republicana de criar, revisar e revogar leis; todavia, na hipótese de inércia do Poder Legislativo no cumprimento de suas atribuições, cabe ao Poder Judiciário, no exercício de suas também republicanas atribuições, extrair da norma um sentido que atenda aos anseios da sociedade, notadamente quando busca fundamento em princípios constitucionais ou, mesmo, compelir a Administração Pública a adotar medidas necessárias atender direitos estabelecidos na Carta Maior. Daí porque se diz que “a disposição do artigo 225 da Carta Regente constitui exemplo de direito humano fundamental, fazendo jus, à sua proteção, de todos os instrumentos e mecanismos disponíveis para conferir-lhe a eficácia necessária na consecução de seus objetivos” (POLÍZIO JÚNIOR, 2014¹, p. 99). Nesse sentido tem deliberado o STF, como no RE nº 577.996 AgR/SP, entendendo que “O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes”.

2.1.1 Da Lei de Responsabilidade Ambiental

À míngua de um diploma normativo que imponha aos entes da Federação metas a serem atingidas e valores que devam ser investidos em matéria ambiental, à semelhança da Lei Complementar nº 101 em matéria de responsabilidade na gestão fiscal, a eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais sociais é imediata. E em situações onde o objeto tutelado constitui essencialidade à vida e é finito, como a água, não é razoável que a ausência de políticas públicas, ou mesmo de recursos econômicos, obste do Poder Judiciário a imposição de medidas que assegurem o adequado e racional aproveitamento desse recurso natural.   

2.2 DOS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS EM MATÉRIA AMBIENTAL

Leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 958-959) que princípio constitui “mandamento nuclear de um sistema”, funcionando como “verdadeiro alicerce”, que alcança as diversas normas “compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. O autor é categórico:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Isso porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada. (MELLO, 2010, p. 959)

Com relação ao meio ambiente, inúmeros são os princípios reconhecidos pelos estudiosos, tamanha a proeminência da temática envolvida. Desse rol, destacamos os seguintes: i. Princípio do desenvolvimento sustentável; ii. Princípio da prevenção; iii. Princípio da Precaução; iv) Princípio do poluidor- pagador.

2.2.1 Princípio do desenvolvimento sustentável

Utilizada inicialmente na Conferência Mundial de Meio Ambiente de 1972, em Estocolmo, foi adotada pelas demais conferências ambientais desde então; na Constituição Federal de 1988, a idéia de desenvolvimento sustentável está presente quando, na parte final do caput do art. 225, está dito que, ao direito de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto o Poder Público quanto a coletividade possuem o dever de defender e preservar, para as gerações atuais e as que vierem a existir (FIORILLO, 2005, p. 27). De fato, na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, no seu Princípio 3º ficou assentado que “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras” (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE).

A característica principal do princípio, aponta Machado (2013, p. 68), “é a de que o desequilíbrio ecológico não é indiferente ao Direito, pois o Direito Ambiental realiza-se somente numa sociedade equilibrada ecologicamente”, de modo que “Cada ser humano só fruirá plenamente de um estado de bem-estar e de equidade se lhe for assegurado o direito fundamental de viver num ambiente ecologicamente equilibrado”.

2.2.2 Princípio da prevenção

O escopo do princípio da prevenção é prevenir danos de uma ação cujas conseqüências são conhecidas, daí Machado (2013, p. 122) afirmar que a informação organizada e a pesquisa lhe são essenciais. O princípio “deve levar à criação e à prática de política pública ambiental, através de planos obrigatórios” (MACHADO, 2013, p. 123).

Isso porque a prevenção é preferível à posterior responsabilização pelo dano causado ao meio ambiente (BENJAMIN, 1993, p. 227). A restauração de um ambiente equilibrado e sadio, quando possível, demanda tempo e elevados recursos, prejudicando as presentes e as futuras gerações da fruição desse direito fundamental, de sorte que evitar o surgimento do dano é melhor do que, embora previsível, deixá-lo ocorrer, para somente depois adotar as medidas necessárias para o restituição do status quo ante. A reparação do dano, a indenização pelo prejuízo e a punição pela conduta lesiva ao ambiente devem constituir a ultima ratio do Direito Ambiental (NOGUEIRA, 2004, p. 198).

2.2.3 Princípio da precaução

A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, fez referência expressa à precaução na redação do seu Princípio 15:

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE) (destacamos)

Em que pese a divergência doutrinária, pois para alguns estudiosos o princípio da precaução constitui espécie ou gênero do princípio da prevenção, como ensinam Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2005, p. 39-40) e Edis Milaré (2004, p. 143- 144), outros, como Machado (2013, p. 108- 109), entendem que a incerteza do dano ambiental, ou seja, a existência de “dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção”, daí porque o princípio da precaução deve ser aplicado “ainda quando existe a incerteza, não se aguardando que esta se torne certeza”.

Dessarte, o princípio da precaução é adotado quando não há o exato conhecimento sobre as conseqüências de determinado ato ou quando ausente a absoluta certeza científica; nessas hipóteses, inexiste justificativa para obstar a adoção das medidas necessárias para impedir a degradação, ainda que esta só exista no campo da possibilidade.

Para Machado (2013, p. 109-110), qualquer “risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” não constituem temas que possam ser relegados pelo Poder Público, porque “A Constituição Federal manda que o Poder Público não se omita no exame das técnicas e métodos utilizados nas atividades humanas que ensejem risco para a saúde humana e o meio ambiente”, concluindo que:

Controlar o risco é não aceitar qualquer risco. Há riscos inaceitáveis, como aquele que coloca em perigo valores constitucionais protegidos, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, os processos ecológicos essenciais, o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, a diversidade e a integridade do patrimônio biológico- incluindo o genético- e a função ecológica da fauna e flora. (MACHADO, 2013, p. 109- 110)

 Ao discorrer sobre os custos das medidas preventivas, Machado (2013, p. 110- 111) ressalva que “O custo excessivo deve ser ponderado de acordo com a realidade econômica de cada País, pois a responsabilidade ambiental é comum a todos os Países, mas diferenciada”, devendo optar-se, havendo dúvida sobre sua implantação, “pela solução que proteja imediatamente o ser humano e conserve o meio ambiente (in dubio pro salute ou in dubio pro natura)”.

2.2.4 Princípio do poluidor-pagador

A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, fez referência ao tema na redação do seu Princípio 16:

As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais. (destacamos)

Oportuna a síntese de Fiorillo (2005, p. 30):

Podemos identificar no princípio do poluidor-pagador duas órbitas de alcance: a) busca evitar a ocorrência de danos ambientais (caráter preventivo); e b) ocorrido o dano, visa sua reparação (caráter repressivo).

Desse modo, num primeiro momento, impõe-se ao poluidor o dever de arcar com as despesas de prevenção dos danos ao meio ambiente que a sua atividade possa ocasionar. Cabe a ele o ônus de utilizar os instrumentos necessários à prevenção dos danos. Numa segunda órbita de alcance, esclarece este princípio que, ocorrendo danos ao meio ambiente em razão da atividade desenvolvida, o poluidor será responsável pela sua reparação. (destaques no original)

Já Paulo Affonso Leme Machado (2015, p. 94) adota, ao lado do princípio do poluidor-pagador, o do usuário-pagador. Para o autor, a utilização dos recursos naturais pode ser gratuita como onerosa, isso porque “A raridade do recurso, o uso poluidor e a necessidade de prevenir catástrofes, entre outras coisas, podem levar à cobrança do uso dos recursos naturais”. Ele explica:

O princípio do usuário-pagador contém também o princípio poluidor-pagador, isto é, aquele que obriga o poluidor a pagar a poluição que pode ser causada ou que já foi causada.

O uso gratuito dos recursos naturais tem representado um enriquecimento ilegítimo do usuário, pois a comunidade que não usa do recurso ou que o utiliza em menor escala fica onerada. O poluidor que usa gratuitamente o meio ambiente para nele lançar os poluentes invade a propriedade pessoal de todos os outros que não poluem, confiscando o direito de propriedade alheia.

 Não constitui punição o princípio do usuário-pagador, “pois mesmo não existindo qualquer ilicitude no comportamento do pagador ele pode ser implementado”, ressalta Machado (2013, p. 95- 96), que dispõe:

Assim, para tornar obrigatório o pagamento pelo uso do recurso ou pela sua poluição não há necessidade de ser provado que o usuário e o poluidor estão cometendo faltas ou infrações. O órgão que pretenda receber o pagamento deve provar o efetivo uso do recurso ambiental ou a sua poluição. A existência de autorização administrativa para poluir, segundo as normas de emissão regularmente fixadas, não isenta o poluidor de pagar pela poluição por ele efetuada.  

Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. A interligação entre as bacias hidrográficas como pressuposto para a proteção do equilíbrio ambiental e da qualidade de vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5198, 24 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40728. Acesso em: 5 nov. 2024.

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