O Direito Internacional Público se fundamenta em um sistema jurídico autônomo, em que há uma ordenação de relações entre Estados dotados de soberania. Este sistema jurídico é fundamentado pelo princípio do consentimento. A soberania é uma característica fundamental do Estado pois representa a independência do Estado em questões de política interna e externa.
O que se observa é que as normas fundamentais dos Estados mantém com veemência em seus textos a soberania. No plano internacional, o princípio do consentimento fundamenta e confirma a soberania dos Estados, os quais apenas ficam submetidos às normas internacionais desde que de forma voluntária e consentida, aceite por um ato de governo a se vincular a norma internacional. Um Estado se obriga no sistema internacional somente se houver seu consentimento em formalizar este vínculo jurídico.
O sistema internacional contemporâneo, com sua característica descentralizada, observa seus integrantes dizer as normas de composição entre o direito internacional e o direito interno. Para o Estado soberano, a constituição nacional representa a base da norma jurídica convencional e, assim, os textos constitucionais não desprezariam o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica no sentido de se subpor aos compromissos exteriores do Estado. É necessário que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito por este no cenário externo.
No atual contexto, o conceito tradicional de soberania vem sendo analisado no sentido de se ponderar que a soberania não é absoluta e ilimitada. É certo que não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior e só se põe de acordo na construção da ordem internacional, e na fidelidade normativa dessa ordem. Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas.
Na convivência da sociedade internacional o pressuposto dos limites da soberania é fundamental. Há uma crescente e contínua de criação de organismos e normas internacionais coercitivas, em especial em relação à proteção internacional dos direitos humanos, considerando que os interesses das comunidades globais passaram a ser o fim dos Estados e de toda uma sociedade internacional organizada. Neste contexto, as discussões giram em torno dos limites e da preservação da soberania dos Estados diante de conflito de direito interno e normas e decisões internacionais.
No Brasil, por exemplo, em 1979 foi aprovada a Lei n. 6683-Lei de Anistia que visava impedir a punição de todos aqueles que praticaram crimes políticos ou praticados por motivação política durante o regime militar. Os militares que praticaram crimes políticos e causaram o desaparecimento de políticos também estariam livres de qualquer tipo de perseguição penal. Em 2008 o Conselho Federal do OAB ajuizou uma ADPF perante o STF requerendo que referida lei fosse interpretada no sentido de não favorecer os crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.
O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADPF 153, declarando que a Lei de Anistia não teria perdido a sua validade jurídica, de modo que os crimes praticados por militares com motivação política durante a ditadura foram anistiados, não podendo os seus autores serem processados ou condenados criminalmente.
Ocorre que a Corte Interamericana de Direitos Humanos- CIDH ao julgar, em novembro de 2010, o caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), decidiu que as disposições da Lei de Anistia Brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo pelo Brasil no ano de 1992. A CIDH decidiu que:
Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.[1]
De um lado, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em substancioso julgamento, que a Lei de Anistia era compatível com as normas da Constituição Federal de 1988 e não possuía vício jurídico. De outro lado, decidiu a CIDH que quando um Estado aceita e é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade.
Diante do conflito, na ocasião, o Ministro Marco Aurélio afirmou a necessidade de obediência ao julgamento do STF, não podendo afrontá-lo para seguir a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Afirmou que “trata-se de uma decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas não implica cassação da decisão do STF. Quando não prevalecer a decisão do Supremo, estaremos muito mal”. O Ministro Ayres Britto afirmou que prevalece a decisão do Supremo, mas entendeu a situação ímpar em que se encontra o Brasil: "é uma saia-justa, um constrangimento para o País, criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade, ou seja, o Judiciário[2]".
É fato que há situações de pressão nos Estados que visam sua convivência internacional. A afirmação da soberania tem uma dimensão interna e uma dimensão externa. A afirmação da soberania em relação aos outros Estados implica na independência, no reconhecimento de outras unidades políticas juridicamente iguais e soberanas. Logo, tem-se a soberania em sua dimensão interna e a soberania como sinônimo de independência, que reconhece a igualdade jurídica dos Estados na ordem internacional. Os Estados estão vinculados à sua própria vontade, pois são ordens jurídicas independentes e soberanas.
A sociedade internacional é uma sociedade de coordenação, não havendo poderes supranacionais. Logo, a soberania faz com que os Estados possam praticar o Direito Internacional com a ideia de que apenas o consentimento pode obrigar um Estado a fazer ou não fazer algo. Não é possível que normas obriguem os Estados soberanos, apenas a vontade nacional quando, por meio do consentimento, faz nascer para o Estado algum dever.
Referências Bibliográficas:
[1] Parágrafo 176, Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos
[2] Jornal Estadão, dia 16.12.2010.