Muda, que quando a gente muda o mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente!
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro!
Gabriel, O Pensador – Até Quando?
RESUMO
A essência do Direito está em sua constante possibilidade de adaptação às transformações da sociedade e de evolução diante das novas concepções culturais, políticas e econômicas, prevalecentes em determinado período histórico. Unicamente através desta harmonização é que o Direito poderá atender às finalidades da lei. O presente trabalho objetiva o conhecimento do tipo penal de Estupro de Vulnerável, inserido pela Lei nº 12.015 de 2009 e atualmente previsto no Artigo 217-A, do Código Penal brasileiro. O intuito desta monografia é aproximar o legislador e o intérprete do Direito ao novo contexto fático-social para então verificar a viabilidade da aplicação do conceito de vulnerabilidade em caráter relativo, ou seja, admitindo a contra prova. Para tanto, será evidenciada a exposição das crianças e dos adolescentes à violência sexual e a proteção garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e, em contrapartida, asseverar o amadurecimento precoce e o potencial consentimento das vítimas menores de 14 anos.
Palavras-chave: Direito Penal. Estupro. Estupro de vulnerável. Relativização da vulnerabilidade. Vulnerabilidade absoluta. Vulnerabilidade relativa.
ABSTRACT
The Law essence is its steady ability to adapt to changes in society and to development face the new culture, politics and economic conceptions, prevailing in a given historical period. Only through this harmonization is that Law can achieve the purposes of it. The present work aims the knowledge of the type of criminal “Vulnerable Rape”, inserted by Law No. 12015/2009 and currently laid down in Article 217-A of the Brazilian Penal Code. The purpose of this monograph is to approach the legislator and the interpreter of the law to new factual and social context and, then, verify the feasibility of applying the concept of relative vulnerability, in other words, admitting the production of evidence. In this regard, it will be evident children's exposure to sexual violence and the protection guaranteed by the Statute of Children and Adolescent (ECA), in contrast, assert early maturing and the potential of consent from victims under 14 years old.
Keywords: Criminal Law. Rape. Vulnerable Rape. Relativization of vulnerability. Absolute vulnerability. Relative vulnerability.
LISTA DE SIGLAS
CP |
Código Penal Brasileiro |
CPMI |
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito |
CRFB |
Constituição da República Federativa do Brasil |
DOU |
Diário Oficial da União |
ECA |
Estatuto da Criança e do Adolescente |
MEC |
Ministério da Educação e Cultura |
PeNSE |
Pesquisa Nacional de Saúde Escolar |
SINAN |
Sistema de Informação de Agravos de Notificação |
STF |
Supremo Tribunal Federal |
STJ |
Superior Tribunal de Justiça |
UNESCO |
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura |
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO......................................................................................................... 10
2. DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE E A DIGNIDADE SEXUAL......... 14
2.1. Breve Análise do conceito de crime...................................................................... 14
2.2 Do Estupro.............................................................................................................. 18
2.2.1 Evolução histórica e jurídica do Estupro......................................................... 18
2.2.2 Do Estupro de Vulnerável............................................................................... 24
3. ANÁLISE DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO ARTIGO 217-A......... 27
3.1. Bem jurídico tutelado e objeto material................................................................. 27
3.2. Sujeitos do crime................................................................................................... 28
3.2.1 Sujeito Ativo.................................................................................................... 29
3.2.2 Sujeito Passivo................................................................................................. 29
3.3. Elementos objetivos e subjetivos do tipo............................................................... 30
3.4. Consumação e tentativa......................................................................................... 31
3.5. Qualificadoras e causas de aumento de pena........................................................ 32
3.6. Ação Penal............................................................................................................. 33
3.7. Estupro de Vulnerável como crime hediondo....................................................... 34
4. ESTUDO DA APLICAÇÃO DA VULNERABILIDADE................................... 37
4.1. Substituição da presunção de violência pela presunção de vulnerabilidade.......... 40
4.2. Presunção de vulnerabilidade absoluta e relativa.................................................. 42
5. DOS DIREITOS PRIMORDIAIS GARANTIDOS ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES 44
5.1. Doutrina da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta...................................... 48
5.2. Dos Direitos Fundamentais................................................................................... 50
5.3. Pontos favoráveis à presunção da vulnerabilidade em caráter absoluto................ 52
6. CONTEXTO CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 217-A ................................... 58
6.1. Do consentimento do ofendido e a maturidade da vítima.................................... 59
6.2. Inconstitucionalidade da lei e de sua interpretação............................................... 66
6.3. Erro de Tipo inevitável.......................................................................................... 73
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 76
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 79
{C}1 INTRODUÇÃO
A vida em sociedade só é possível com a integração dos indivíduos que nela convivem, onde deve imperar a ordem de respeito e cooperação. A vivência pacífica em grupo apenas se alcança com a delimitação dos atos de cada indivíduo, que, por sua vez, são direcionados pelas regras morais. A moralidade é produto do âmago do sujeito sobre determinado assunto, construída com base na educação, cultura e tradição que orientam o comportamento humano, distinguindo aquilo que é aceitável daquilo que deve ser repudiado no meio social.
A delimitação dos atos pela moral, entretanto, nem sempre se dá de forma espontânea e voluntária. E, em decorrência da falta de estímulo para agir em cumprimento às regras morais, seja pela criação familiar adversa ou pelo comportamento adquirido na vivência social, foram desenvolvidos modelos padrões de comportamento, através de regras impositivas, as quais se denominam Leis.
As Leis são estruturadas com base na idealização de uma sociedade organizada e também advêm dos costumes e das práticas tradicionais da comunidade.
Entretanto, diferente das regras morais, os mandamentos legais são estipulados conforme o que se espera de um comportamento quimérico, visando controlar e modificar condutas humanas, independentemente do pensamento moral e ético de cada indivíduo. Em síntese, aquilo que não se faz pela moralidade, se cumpre em satisfação e obrigação à legislação. Isto porque a transgressão à lei acarreta em repressão, qual seja ela, negativa e punitiva ao contraventor.
O Direito Penal, em específico, elenca de forma afirmativa em seu Código os comportamentos que não se espera ou se admite de um indivíduo para convivência em sociedade. O Código Penal assume alguns valores éticos sociais como direitos fundamentais e necessários para assegurar a paz social e os coloca sob sua proteção, garantindo a integridade e o cumprimento destes direitos na sociedade. O Direito material Penal intitula este ato protetivo como a tutela aos bens jurídicos, os quais representam os interesses sociais coletivos e individuais, que formam o objeto de guarda da matéria, fundamentais para a integridade da estrutura dos valores éticos e morais do Estado.
Quando há a prática de um ato que se enquadra precisamente no contexto do artigo, este é adequado a uma situação de ilícito penal, a um crime. Como se verá adiante, crime é um fenômeno social cuja existência se dá pela ocorrência de um fato típico, antijurídico e culpável. Cada elemento será minuciosamente analisado no início do trabalho, mas, em simples linhas, podemos afirmar que crime é toda conduta humana de infração à Lei Penal, em decorrência da lesão ou exposição ao perigo de um bem jurídico protegido legalmente.
O Direito é dinâmico e acompanha a evolução da sociedade, adapta-se a cada nova situação fática, ampliando a proteção aos bens jurídicos, quando necessário para garantir, efetivamente, a proteção ao direito fundamental de todos. Diante desta situação e tendo em vista a existência de crimes em que há violência ou abuso sexual, especialmente contra crianças ou adolescentes e pessoas com deficiência, foi necessária a proteção do bem jurídico da dignidade sexual destes indivíduos. Não falaremos aqui de liberdade sexual, vez que se reconhece, por parte da doutrina, a inexistência de liberdade sexual plena para os menores de 14 anos, enfermos e deficientes mentais, o que dá a eles a característica de vulneráveis, conceito que também será estudado e interpretado adiante.
A criminalização desta conduta está atualmente prevista no Artigo 217-A do Código Penal brasileiro, incluído pela Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009, que teve como principal objetivo a exacerbação da punição dos autores de crimes contra a dignidade sexual, voltado contra os menores de 14 anos, enfermos ou deficientes mentais.
Apesar das inovações trazidas pela Lei em comento, não foi possível evitar as lacunas na compreensão integral da aplicação do Artigo 217-A do Código Penal, criado após a revogação do Artigo 224 do Código Penal e dedicado à proteção dos menores e dos vulneráveis. Dentre as lacunas existentes, surgiu a necessidade de se analisar com maior cautela o conceito e aplicação da presunção, de forma absoluta ou relativa, da situação de vulnerabilidade do menor de 14 anos.
As crianças e os adolescentes estão cada vez mais cedo se aproximando da experiência sexual e é preciso assimilar as mudanças na puberdade, isto porque os infantojuvenis já não são tão ingênuos e imaturos em assuntos relacionados à sexualidade quanto já se foi há algum tempo. Pelo contrário, por meio da influência da mídia televisiva e do acesso facilitado e prematuro a nudez, ao desejo e a satisfação, é bastante comum que uma criança de 14 anos já conheça seu corpo e saiba como satisfazer seus prazeres.
Tão comum quanto a maturidade precoce é a prática de ato sexual por um menor de 14 anos, considerado incapaz e vulnerável perante a legislação brasileira. E este ato, mesmo que consentido pelo menor, não permite àquele indivíduo capaz e maior, par praticante desta relação sexual, se evadir da resposta direta pelo crime, respondendo objetivamente pelo ato, principalmente frente à presunção absoluta de vulnerabilidade do menor. O que em poderia, em muitas situações concretas, afastar a decisão justa, ainda mais se admitirmos que frente a diversos fatores, tais como a prática consentida do ato sexual e eventual incidência de erro de tipo sobre a vítima vulnerável, o sujeito passivo poderia ser inocentado.
Diante deste panorama, o mais coerente seria que a vulnerabilidade do menor de 14 anos fosse analisada em cada caso concreto e específico, sendo assim aplicada de forma relativa, admitindo contra prova.
Em contrapartida, não podemos descartar a situação do poder de racionalizar da criança e do adolescente, que ainda não está perfeitamente estruturado. E neste sentido, apesar do consentimento à prática sexual, este não deveria ser validado vez que seu poder para tomar decisões pode ser influenciado ou induzido pelo maior. Decisão esta que poderia seguir de maneira contrária se o infantojuvenil tivesse o estado mental mais desenvolvido.
Neste contexto, a aplicação da presunção da vulnerabilidade deveria ser mantida na forma absoluta, da maneira que é hoje compreendida pelo Código Penal, que não admite o consentimento do menor de 14 anos para o ato sexual e o considera presumivelmente vulnerável.
Dentre as incertezas apontadas, o presente trabalho pretende justamente analisar as divergências dos pontos favoráveis e desfavoráveis à relativização do critério etário para definir a vulnerabilidade, bem como avaliar a possibilidade da manifestação de vontade válida do menor de 14 anos no estupro de vulnerável, previsto no Artigo 217-A, incluído pela Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009, que o considera objetivamente vulnerável para os fins penais.
No início do trabalho, além da conceituação de crime, será contextualizada a evolução histórica do estupro, declinando especificamente para o estudo do estupro de vulnerável, criado com o advento da Lei nº 12.015 de 2009.
Após, o trabalho será instruído com o estudo do estupro de vulnerável de forma bastante específica, avaliando todos seus aspectos e apontando o objeto material, os elementos objetivos e subjetivos do tipo, especificando os sujeitos do crime e demonstraremos o momento consumativo e a tentativa da prática do delito. Ainda será informada a forma qualificada pelo resultado, as majorantes e, finalmente, a ação penal cabível.
Serão, em seguida, diferenciados os conceitos de presunção relativa e de presunção absoluta. Apontaremos os pontos favoráveis à aplicação da presunção absoluta da vulnerabilidade em caso de estupro de vulnerável, baseando-se na proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente, explicando a doutrina da proteção integral, a prioridade absoluta e nos direitos à liberdade, respeito e dignidade das crianças e dos adolescentes, com base na Constituição Federal. Identificaremos também o quadro atual da situação das crianças menores de 14 anos no que tange ao desenvolvimento racional e ao contato com a prática sexual precoce.
Ainda serão abordados os elementos que levam a compreender que a aplicação da presunção relativa é a adequada para o delito em tela, estruturando a análise a partir da experiência sexual precoce, do consentimento válido do menor e da justificativa para a avaliação do caso concreto e específico para a tomada de decisões de condenação ou absolvição, baseados na inconstitucionalidade da norma em presumir a culpa do acusado, em que, na transição da Lei Penal, apenas substitui a violência presumida pela consideração da vítima vulnerável. Falaremos inclusive sobre o erro de tipo inevitável.
E, por fim, concluiremos sobre a possibilidade da relativização da vulnerabilidade do estado de vulnerabilidade da vítima menor de 14 anos em estupro, a partir da conduta da vítima e possibilitando a absolvição do agente.
Serão analisadas fontes de pesquisas diversas para apoiar o estudo do trabalho para chegar, por meio do método dedutivo, a uma conclusão. Para tanto, serão utilizadas pesquisas bibliográficas, doutrinas, jurisprudências, legislação e análise de casos práticos.
{C}2 DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE E A DIGNIDADE SEXUAL
{C}1.{C}
{C}2.{C}
O Código Penal brasileiro foi instituído em 1940, através do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro deste mesmo ano, durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas e foi fragmentado em duas partes, a saber, a Parte Geral, que define conceitos gerais e explicita temas para compreensão da Parte Especial, que determina as condutas criminosas e as penas aplicadas a cada uma delas.
A Parte Especial, em seu turno, é subdivida em diversos títulos, que abordam cada qual um bem jurídico tutelado de forma bastante ampla. Os títulos compreendem outras divisões chamadas de capítulos, responsáveis por delimitar o objeto jurídico de cada título.
O presente trabalho avaliará o Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual, situado na Parte Geral, dedicado tanto à proteção da liberdade sexual quanto da dignidade sexual, em que faremos a análise superficial do Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual, principalmente no que concerne ao Estupro (Artigo 213 do Código Penal) para, finalmente, chegar ao Capítulo II – Dos crimes contra vulnerável, onde estudaremos de forma profunda e dedicada o Estupro de Vulnerável (Artigo 217-A do Código Penal), onde levantaremos assuntos discutidos e conflitantes, o qual comporá tema principal da contenda sob exame.
{C}2.1 BREVE ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME
Antes de iniciarmos a análise dos crimes contra a liberdade sexual e, depois, da dignidade sexual, faz-se necessário o declínio ao estudo da conceituação da palavra crime e seus elementos estruturadores, não fornecidos pelo atual Código Penal Brasileiro (CP), mesmo com as alterações oriundas da Lei nº 7.209/84, que reformulou a Parte Geral.
Definir a concepção do termo é importante para identificar uma situação criminosa, sem a qual não conseguiríamos diferenciar um fato corriqueiro daquele fato que se apresenta como crime e merece apenamento.
Alguns Códigos anteriores ao atual tentaram definir o conceito de crime. O Código Criminal do Império, de 1830, definia como sendo crime toda ação ou omissão voluntária contrária às Leis Penais, in verbis:
Art. 2º Julgar-se-ha crime, ou delicto:
1º Toda a acção, ou omissão voluntaria contraria ás Leis penaes.[1]
Após a Proclamação da República pelo Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889, foi projetado o Código Penal de 1890, editado em 11 de outubro, que passa a dispor o seguinte conceito de crime:
Art. 7º Crime é a violação imputavel e culposa da lei penal.{C}[2]
Apesar de tecerem importantes conceitos para as definições posteriores de crime, não englobaram a generalidade e as especificidades que estruturam o significado da palavra, sendo necessário um maior aprofundamento do estudo e isto se dá justamente por não haver somente um único sentido para esclarecer a definição de crime e, ao contrário, pode ser determinada sob o aspecto interpretativo de diversos doutrinadores, juristas e escolas penais.
Nesta esteira, o conceito pode ser analisado sob três óticas distintas, onde cada uma remete maior foco a um método observativo, a saber, sob o aspecto formal, material e analítico.
Estudaremos, inicialmente, o aspecto formal, que assim como o material, é incapaz para definir precisamente o conceito de crime. O aspecto formal, segundo Rogério Greco, define que crime é toda conduta que atentasse ou colidisse diretamente contra a lei penal editada pelo Estado, seria, portanto, a definição nominal que fixa como crime qualquer atitude estabelecida em uma norma penal incriminadora, sem análise de outro fator qualquer. É insuficiente, pois só abrange um dos inúmeros aspectos do crime[3].
E, ainda sob a explicação de Greco, o aspecto material, cujo nascimento foi atribuído a Ihering, é toda conduta que viola os bens jurídicos mais importantes, ligando o conteúdo ao fato punível. A conceituação segundo este aspecto levaria em conta a relevância do mal produzido, não permitindo a análise dos elementos estruturais do conceito de crime, tornando-se, portanto, insuficiente.
Observamos que os conceitos anteriores, apesar de influenciadores do conceito mais admitido atualmente pela doutrina e jurisprudência, são superficiais e escassos para caracterizar uma conduta criminosa, a fim de compreender e de apontar um ato como sendo criminoso. Destarte, passaremos a estudar a concepção da palavra sob o conceito analítico, o mais difundido e tradicional entre a doutrina majoritária. Embora seja o conceito mais aceito pelas escolas penais, há ainda muita divergência entre os doutrinadores sobre a ótica de estudo, onde, dentre elas, predomina a corrente da composição tripartida, onde se dissocia o conceito em três aspectos. São eles: fato típico, antijuricidade e culpabilidade.
A finalidade desta fragmentação é de repartir a análise em elementos mais simples para fácil compreensão do ato humano como crime, em outras palavras, poderemos estabelecer a existência de uma conduta criminosa a partir da identificação individual de cada um dos elementos formadores do conceito analítico, os quais são interdependentes e necessários para a tipificação do crime.
Em seu aspecto mais geral, crime deve ser entendido como um fato, advindo da conduta humana. Este fato deverá necessariamente ser típico, estipulado previamente e ser contrário ao modelo abstrato criado pelas normas penais, contra o qual a lei impõe sanção específica.
O primeiro elemento constitutivo, o fato típico, refere-se diretamente a uma conduta comissiva ou omissiva humana que gere um resultado de lesão a um bem juridicamente protegido, de forma culposa ou dolosa. Isto significa que o crime é sempre praticado por meio de uma conduta positiva, quando há ação do agente ou diante de uma conduta negativa, quando o agente deixa de fazer algo.
Embora nem sempre perceptível, deve existir a presença de um resultado intimamente relacionado a uma causa e o efeito, isto é, a conduta e o resultado devem ter nexo de causalidade, proximidade da ação comissiva ou omissiva com a lesão causada.
E, por fim, a conduta deve ser contrária ao direito, anteriormente positivada em contradição com a ordem jurídica penal. Isto é o que caracteriza e diferencia uma conduta simples de uma criminosa. Em suma, podemos concluir que a tipicidade é a adequação do fato ao tipo legal, capaz de lesar o bem jurídico protegido. A conduta não caracterizada como crime é denominada fato atípico e impossível de ser punido. Neste momento é importante mencionar que, apesar de não caracterizada como crime, a conduta pode se tratar de contravenção penal, que consiste num delito menos gravoso e que é orientado por legislação própria (Decreto-lei nº 3.688/41).
Além de a conduta humana ser típica, deve ainda ser antijurídica. A ilicitude ou antijuricidade significa a contrariedade do fato com o ordenamento jurídico causando efetiva a lesão ao bem jurídico tutelado. A ilicitude da conduta é verificada através de exclusão, onde somente as hipóteses previstas em lei podem eximir o sujeito da tipificação do ato. Essas são as chamadas excludentes de ilicitude, onde o fato é típico e ilícito, mas o agente é isento de pena. Vejamos, pois:
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:
I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.[4]
Na linha deste raciocínio, aquele que comete crime, mas diante de qualquer situação legal de excludente de ilicitude prevista no Artigo 23 do Código Penal, o caráter de ilicitude da conduta é excluído e impossibilita a sanção penal. Concluímos então que, apesar do fato ser típico, isto é, previsto em lei penal, a conduta criminosa é isenta de pena pela existência de uma condição que afasta a punibilidade da ação justificada. Adiante discutiremos a hipótese supralegal de exclusão da antijuricidade mediante consentimento do ofendido.
A culpabilidade, o último elemento de análise, guarda relação com a conduta ilícita do agente, em que se faz referencia ao juízo de reprovação pessoal e o potencial conhecimento da ilicitude. Existem situações em que o sujeito comete o crime, mas o fato não pode ser apenado, pois estão presentes uma das hipóteses de excludentes da culpabilidade. É fundamento essencial para a fundamentação e limitação da pena.
Portanto, na evolução conceitual de crime, atualmente é definido analiticamente como um fato típico, antijurídico e culpável. Cada elemento se conecta e depende do outro, integrando-se para formar o todo, conceito unitário de crime. Podemos afirmar, portanto, que se qualquer um dos três elementos não estiver presente, não há possibilidade incriminação do fato, seja pela falta de tipicidade da conduta, pela justificação do ato que afasta o crime ou pela impossibilidade de punição ao agente.
A doutrina minoritária, composta por Mirabete, Damásio e Delmanto, tende a seguir a teoria bipartida, onde prevalece o crime como apenas um fato típico antijurídico, sendo a culpabilidade um pressuposto apenas para a aplicação da pena.
{C}2.2 DO ESTUPRO
2.2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA DO ESTUPRO
Definido o conceito de crime, abordaremos os aspectos relevantes do estupro, delito previsto no Artigo 213, Código Penal, a começar por sua origem no tempo e a evolução de sua caracterização.
A palavra estupro deriva do termo romano stuprum, que significava, em sentido lato, todo comportamento sexual impudico, envolvido por relações carnais ilícitas praticadas com homem ou mulher. Antigamente englobava, ainda, o adultério e a pederastia. Em sentido estrido, relacionava-se diretamente ao coito com a mulher virgem, não casada e honesta. Mais tarde o direito romano aprimorou o conceito, acrescentando que ao ato carnal violento se denominaria stuprum violento.
No desenvolver histórico da caracterização deste crime evoluímos para estupro sendo o ato criminoso que atenta contra a liberdade de escolha sexual da vítima. Consiste básica e sucintamente nos elementos de relações carnais forçadas com violência física ou moral.
A violência sexual não é um problema de ordem recente, ao contrário, se fez presente desde os primórdios da humanidade. A prática de forçada de relações sexuais já é considerada um fato punível desde os povos mais antigos e, apesar de receber conotações das mais diversas, adaptadas ao longo da história, sempre teve o objetivo de proteger a liberdade e a dignidade sexual do ser humano. Dentre os crimes sexuais previstos na legislação brasileira, o estupro é o aquele de maior gravidade e o que causa maior repudia social.
As penas aplicadas inicialmente eram rígidas e severas, onde o ofensor era, geralmente, fisicamente castigado com a pena de morte, galés e açoites ou ainda com a aplicação de pena pecuniária. O estabelecimento de penas cruéis tinha como fundamento a proteção e o respeito à família e à moralidade sexual. Ao longo da história, a punição foi abrandada, mas não deixou de ser punida com rigor.
Segundo Maximiliano Führer, o Artigo 130 do Código de Hamurabi é o registro mais remoto da existência do crime de violência sexual. Estima-se que tenha sido elaborado pelo rei Hamurabi, por volta de 2000 a.C[5]. A norma previa pena capital e de morte a quem violasse as virgens casadas: “se alguém viola mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto e a mulher irá livre” [6] - Artigo 130 deste Código.
Führer continua em seu livro citando o Código de Manu, que previa pena de morte ou de mutilação para o abuso sexual violento e, em seguida, menciona os hititas por volta de 1500 a.C., em que o estuprador era apedrejado até a morte. Cita ainda que, nesta época, se a mulher, casada, vítima do atentado sexual violento não gritasse por socorro no momento do ataque, deveria ser juntamente executada com o agente do crime[7].
O Direito Hebraico, entretanto, considerava estupro somente a situação em que a mulher violentada, mesmo projetando grito de socorro, estivesse em local que não pudesse ser ouvida. A Lei Mosaica em Deuteronômio previa e punia tal comportamento com a pena de morte e de capital. Sancionada ainda com a mesma pena o adultério e proibia o incesto. Nas palavras de Guilherme Augusto Corrêa Rehder, em seu artigo sobre Crimes Sexuais[8], a Septuaginta, versão grega do Antigo Testamento, chamou de Deuteronômio o título do quinto livro do Pentateuco, ou Torá: trata-se de uma palavra grega que significa “segunda lei”. Em Deuteronômio, que foi escrito por Moisés, retrata a violência sexual de maneira clara e sua penalidade aos que a cometiam já naquela época. Assim preceituando:
Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher, todos os dois deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma. Assim, tirarás o mal do meio de ti.
Se uma virgem se tiver casado, e um homem, encontrando-a na cidade, dormir com ela, conduzireis um e outro à porta da cidade e os apedrejareis até que morram: a donzela, porque, estando na cidade, não gritou, e o homem por ter violado a mulher do seu próximo. Assim tirarás o mal do meio de ti.
Mas se foi no campo que o homem encontrou a jovem e lhe fez violência para dormir com ela, nesse caso só ele deverá morrer, e nada fareis à jovem, que não cometeu uma falta digna de morte, porque é um caso similar ao do homem que se atira sobre o seu próximo e o mata: foi no campo que o homem a encontrou; a jovem gritou, mas não havia ninguém que a socorresse.
Se um homem encontrar uma jovem virgem, que não seja casada, e, tomando-a, dormir com ela, e forem apanhados, esse homem dará ao pai da jovem cinquenta siclos de prata, e ela tornar-se-á sua mulher. Como a deflorou, não poderá repudiá-la em todos os dias de sua vida.
Ninguém desposará a mulher de seu pai, nem levantará a cobertura do leito paterno.[9]
No Egito cominava-se a pena de mutilação ao estuprador. Na Grécia, de início, punia-se o agente agressor com pena pecuniária, modificada para a pena de morte, após reforma legislativa. Explica Cezar Roberto Bitencourt[10] que no Direito Romano, após a Lex Julia de adulteris coercendis (18 d.C.), que transferiu o assunto para a esfera pública, passou a punir com grande severidade os crimes sexuais, principalmente os mais violentos, caso em que se destaca o estupro, especificamente a conjunção carnal violenta, no conceito amplo do crimen vis, que cominava a pena de morte. A Idade Média seguiu a tradição romana e aplicando ao estupro violento a pena capital ao ofendido, que teve o poder tutelar atentado – pai, marido ou tutor da mulher violentada.
No velho direito germânico, o delito era também punido severamente, considerado crime contra honra da mulher. Assim, consistia em crime apenas os atos violentos contra mulheres honestas e era devidamente apenado com a decapitação ou de enterramento com vida do agente violador. Enquanto no direito canônico a ofendida necessariamente deveria ser virgem e o ato se concretizar mediante violência.
Por fim, nosso ordenamento jurídico interno sempre considerou d conduta de estupro como crime. As Ordenações Afonsinas, Manoelinas e Filipinas cominavam a pena de morte para o crime de estupro, seja a vítima mulher honesta, seja meretriz. Estas ordenações consistiam em compilações diferentes sistemas de preceitos jurídicos promulgados em reinados sucessivos, por D. Afonso V, D. Manuel I e Filipe I, respectivamente.
As Ordenações Filipinas já puniam com a pena de morte “do que dorme per força com qualquer mulher ou trava dela, ou a leva per sua vontade: todo homem, de qualquer estado e condição que seja, que forçadamente dormir com qualquer mulher posto que ganhe dinheiro per seu corpo, ou seja scrava, morra por ello” [11].
O Código Criminal do Império de 1830, no capítulo dos crimes contra a segurança da honra, em seu Artigo 222, atenuou a punição para esta infração e elencou vários delitos sexuais sob a rubrica genérica de estrupo, mas era muito mais severo ao tratar de estupro, in verbis: “Ter cópula carnal, por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas – de prisão por três a doze anos, e de dotar a ofendida” [12]. Previa o estupro contra mulher honesta, onde as penas eram a prisão e o pagamento de um dote para a ofendida. A pena de prisão era de três a doze anos, reduzida para um mês a dois anos, se a vítima fosse prostituta.
Termina Bitencourt[13] expondo que o Código Penal Republicano de 1890, inovando a legislação penal existente, intitulou como estupro a cópula violenta e atenuou ainda mais a punibilidade do estupro, cominando pena de um a seis anos de prisão celular, mais um dote para a vítima. Se a vítima fosse meretriz, mais uma vez a pena era minorada para seis meses a dois anos.
E, mais próximo da atualidade, o Código Penal brasileiro de 1940, dispôs sobre o estupro na parte inaugural do Título VI – Dos crimes contra os costumes, no Capítulo I - Dos crimes contra a liberdade sexual, no Artigo 213. Senão, vejamos nós:
Art. 213. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena - reclusão, de três a oito anos. {C}[14]{C}
O tipo penal previa a mulher como único sujeito passivo e, por consequência, exclusivamente o homem atuando como agente ativo. Protegia-se o bem jurídico da liberdade sexual feminina.
Entretanto, a Lei nº 12. 015, de 7 de agosto de 2009, trouxe relevantes alterações para o Código Penal brasileiro, em especial o Título VI da Parte Especial. A lei foi publicada e nesta data entrou em vigou, no DOU (Diário Oficial da União) de 10 de agosto de 2009. Assim, o Artigo 213 passou a ter a seguinte redação:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta). {C}[15]
A referida Lei deu novo significado ao tipo penal e ampliou os possíveis sujeitos do crime, trazendo a possibilidade de o sujeito passivo ser um homem e aceitando que a mulher agisse como agente ativo do delito. Antes da inovação legislativa, falava-se em constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; hoje, a Lei abarca o constrangimento a qualquer pessoa, mediante violência ou grave ameaça, não só à conjunção carnal, mas também a qualquer outro ato libidinoso e, inclusive passou a comportar a continuidade delitiva e a também permitir cumulação de crimes.
Observamos ainda que alterou a rubrica do título de “Crimes contra os Costumes” para “Crimes contra a Dignidade Sexual”, que antes dizia respeito à preocupação com o comportamento ético sexual e a moral média da sociedade, passou a tutelar o indivíduo em si, relevando a proteção da dignidade da pessoa humana, sob o ponto de vista sexual. Sobre este assunto discorre Bitencourt:
A Lei 12.015/2009 alterou o Título VI do Código Penal, que passo a tutelar a dignidade sexual, diretamente vinculada à liberdade e ao direito de escolha de parceiros, suprimindo, de uma vez por todas, a superada terminologia “crimes contra os costumes”. Na realidade, reconhece que os crimes sexuais violentos ou fraudulentos atingem diretamente a dignidade, liberdade e personalidade do ser humano.[16]
Além de alterar a descrição típica do Artigo 213, que passou a ser de ação múltipla, englobando o Artigo 214, sendo o crime de atentado violento ao pudor revogado, a alínea ‘a’ do o Artigo 224 também foi extinta e agregada ao novo crime de estupro.
Assim, conclui-se que a Lei nº 12.015/2009 inseriu a conduta de constranger qualquer pessoa, não somente à conjunção carnal, mas também aos atos libidinosos ao Artigo 213 e ampliou o rol de sujeitos, admitindo que o homem e a mulher agissem tanto na forma ativa quanto passiva.
E, por fim, alterou a denominação do Título VI do Código Penal, passando a chama-lo “Dos crimes contra a dignidade sexual”.
2.2.2 DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Como mencionamos no início do trabalho, o Direito é dinâmico e se adapta a cada novo momento histórico vivido pela sociedade e, na busca por esse constante enquadramento aos progressivos fenômenos sociais, o legislador verificou a necessidade de ampliar a tutela ao vetor de proteção à criança e ao adolescente em relação aos crimes sexuais e inseridos no amparo à dignidade da pessoa humana. Para tanto, foi essencial a reforma do Código Penal vigente que surtiu na reforma legislativa para a inclusão do novo tipo penal, o Estupro de Vulnerável, mais gravoso e específico para garantir o direito à dignidade sexual do menor de 14 anos, aquele com enfermidade ou deficiência mental que não têm o discernimento para a prática do ato ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
A referida reforma eclodiu a partir da iniciativa da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) contra a violência e a exploração sexual de crianças e adolescentes, processada entre os anos 2003 e 2004, que deu origem, ulteriormente, ao Projeto de Lei do Senado (PLS) de nº 253, ainda no ano de 2004. No teor da justificação da necessidade das alterações legislativas, a Comissão explicita no Projeto de Lei que as investigações levaram a compreender que o Código Penal era totalmente diminuto para a realidade civil moderna e reclamavam por uma legislação penal mais atualizada. Neste sentido e nas palavras dos parlamentares na Justificação do Projeto de Lei 253/04:
Sobre a legislação penal reinante pairam concepções características de época de exercício autoritário de poder – a primeira metade dos anos 40 – e de padrão insuficiente de repressão aos crimes sexuais, seja por estigmas sociais, seja pelos valores preconceituosos atribuídos ao objeto e às finalidades da proteção pretendida.[17]
Justamente por ter sido o PLS uma proposição da CPMI da violência e das redes de exploração sexual de crianças e adolescentes, o enfoque principal se deu em direção à preservação de leis que amparassem a exploração da dignidade sexual destes sujeitos.
Destacamos o trecho abaixo como referência ao interesse da Comissão neste sentido:
O constrangimento agressivo previsto pelo novo art. 213 e sua forma mais severa contra adolescentes a partir de 14 devem, ser lidos a partir do novo art. 217 proposto. Esse artigo, que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal.[18]
Antes da vigência da referida lei, os Códigos Criminais e Penais antecedentes também previam tipos penais dedicados ao resguardo das crianças e dos adolescentes. Nas lições de Hungria[19], esclarece o autor que entre nós, o Livro V das Ordenações Filipinas (vigorante no Brasil até o advento do Código de 1830) incriminava a conjunção carnal, sem violência, com mulher virgem ou viúva honesta, sendo a vítima menor de 17 anos. O Código Criminal de 1830, neste sentido, protegia as mulheres menores de 16 anos, desde que virgens. In verbis:
Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.
Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada, por um a tres annos, e de dotar a esta.
Seguindo-se o casamento, não terão lugar as penas.[20]
Na mesma linha, o Código Penal de 1890 manteve a proteção apenas para as mulheres, retirando a necessidade da virgindade, mas estipulando que o crime fosse concretizado pelo emprego de sedução, engano ou fraude. A pena era de prisão celular de um a seis anos. E, antes da inclusão do Artigo 217-A pela Lei n 12.015, de 2009, o Código Penal de 1940 previa o crime de nomen juris de Sedução, e segundo a redação típica, assim se aperfeiçoava o ilícito: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. [21]
Por fim, o novo Artigo 217-A, inserido no Capítulo II, sob a rubrica “Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável”, na forma da redação dada pela Lei n 12.015, de 2009, passa a prever especificamente os crimes contra os menores de 14 anos, englobando as pessoas incapazes de consentir. Temos aqui resultado final da inclusão normativa:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2o (VETADO).
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. [22]
Neste aspecto, Führer entende que “há um interesse em proteger os chamados vulneráveis, os incapazes, e todos os que poderiam ser presa fácil dos maliciosos e sexualmente depravados. De outra banda, a humanização dos costumes, após o segundo terço do século XX, fez despertar atenção para os interesses individuais do próprio vulnerável”.[23]
Este novo tipo penal é delito autônomo e não é uma espécie do crime de Estupro, pois com este não guarda relação de elementos típicos e especializantes. É um tipo novo e não derivado de nenhum outro.
{C}3 ANÁLISE DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO ARTIGO 217-A
A nova estrutura, diante das diversas transformações introduzidas em nosso ordenamento jurídico, entretanto, fez eclodir inúmeras incertezas sobre o novo tipo penal. E, no intuito de dirimir as hesitações sobre o tema, passaremos a análise dos elementos estruturadores do delito em tela. Esse estudo nos trará a possibilidade de compreender a figura típica do Estupro de Vulnerável, identificando certa conduta como criminosa a partir da descrição exata do fato a que o caso concreto deve ajustar-se para constituir crime.[24]
Partindo da concepção analítica de crime, inicialmente, verificaremos os elementos que formam o Estupro de Vulnerável, ampliando a explanação para a especificação do objeto material e do objeto jurídico tutelado, passando pela análise dos elementos objetivos e subjetivos do tipo, bem como dos sujeitos ativo e passivo, para, enfim, entender o momento em que o delito se consuma e discutiremos, ainda, acerca da ação penal adequada para o processamento do crime.
{C}3.1 BEM JURÍDICO TUTELADO E OBJETO MATERIAL
O Direito Penal tem como objetivo primordial a proteção a determinados direitos individuais e coletivos reconhecidos com fundamental importância, aos quais denominamos bens jurídicos. A lei os coloca sob sua proteção, objetivando sua manutenção e integridade, na busca pela satisfação das necessidades humanas a fim de propiciar a convivência pacífica entre os indivíduos.
Os crimes sexuais, em geral, amparam a liberdade e a dignidade sexual do indivíduo, garantindo a livre disposição para a prática sexual e coibição o ato forçado. O Artigo 217-A, especificamente, tutela a dignidade sexual, a intangibilidade e o sadio desenvolvimento sexual daquele tido como vulnerável pela lei, para que seu comportamento sexual possa evoluir normalmente e sem traumas físicos ou psíquicos. A respeito do tema, realça Bitencourt:
Na realidade, na hipótese de crime sexual contra vulnerável, não se pode falar em liberdade sexual como bem jurídico protegido, pois se reconhece que não há a plena disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é exatamente o que caracteriza sua vulnerabilidade. Na verdade, a criminalização da conduta descrita no art. 217-A procura proteger a evolução e o desenvolvimento normal da personalidade do menor, para que, na sua fase adulta, possa decidir livremente, e sem traumas psicológicos, seu comportamento sexual.[25]
No tocante ao objeto material, que consiste na pessoa ou coisa sobra a qual recai a conduta delituosa, a lei, especificamente neste caso, direciona a tutela jurídica a dignidade sexual das vítimas vulneráveis, que compreendem, de forma absoluta, o menor de 14 anos e aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o desenvolvimento e maturidade mínima para a prática do ato sexual.
Mirabete e Fabrini ainda mencionam que a parte final do §1º do Artigo em tela tutela a liberdade sexual da pessoa que, independentemente de sua maturidade sexual, se encontra incapacitada, por qualquer outra causa, de resistir à prática da conjunção carnal ou de outro ato libidinoso.[26]
{C}3.2 SUJEITOS DO CRIME
Segundo Mirabete e Fabbrini, sujeito ativo é quem pratica o crime, seja como autor único, coautor ou partícipe. Enquanto descrevem o sujeito passivo como sendo o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. [27]
{C}3.1.1
{C}3.2.1 SUJEITO ATIVO
Após o advento da Lei nº 12.015/2009, o Estupro passou a admitir a prática do ato criminoso por qualquer pessoa, seja homem ou mulher, inclusive contra pessoas do mesmo sexo, consubstanciando assim crime comum. Fernando Capez entende que a ampliação dos sujeitos do crime se dá, principalmente, em razão do tipo penal passar a abarcar não só a prática de conjunções carnais (obrigatoriamente heterossexual), como também de qualquer outro ato libidinoso, admitindo, assim, que a mulher também seja sujeito ativo desse crime.[28]
{C}3.2.2 SUJEITO PASSIVO
O sujeito passivo deve ser necessariamente a vítima vulnerável, menor de 14 anos, conforme o caput do Artigo 217-A, ou como denotamos no § 1º, aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Pessoas de qualquer sexo podem ser sujeitos passivos na forma de ato libidinoso e de conjunção carnal.
Em relação à vítima menor de 14 anos, importante se faz mencionar que, por lapso do legislador, há lacuna de proteção à criança no dia de seu 14º aniversário, em que pode se configurar o estupro na forma simples, se houver o emprego de grave ameaça ou violência, mas não se adéqua ao tipo de Estupro de Vulnerável e nem à qualificadora do Artigo 213, do Código Penal e, ainda, “se houver o consentimento do ofendido, o fato será atípico, sendo a lei, nesse ponto, benéfica para o agente, devendo retroagir para alcançá-lo”.[29]
Damásio, entretanto, discorda do posicionamento de Capez e entende que no dia do 14º aniversário do adolescente deverá haver a incidência da qualificadora do § 1º do Artigo 213, pois, senão resultaria no estupro simples, um absurdo em favor do réu.
{C}3.3 ELEMENTOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS DO TIPO
A ação nuclear do tipo consubstancia-se na realização de qualquer contato sexual. Preceitua o tipo penal que a conduta típica reside na conjunção carnal ou na prática de outro libidinoso com menor de catorze anos ou com pessoa vulnerável. A conjunção carnal consiste na cópula vagínica, que é o momento da penetração do pênis no órgão sexual feminino e, portanto, apenas podendo ser crime realizado entre homem e mulher. Completa Damásio de Jesus afirmando que tanto importa se a penetração foi total ou parcial, bastando que haja a introdução do pênis na cavidade vaginal e até mesmo porque a lei prevê a tipicidade também para os atos libidinosos.[30]
Os atos libidinosos, em sua vez, são as inúmeras outras possibilidades de realização do ato sexual, diversas da conjunção carnal, como o coito anal e o coito oral. Mirabete e Fabrini descrevem como sendo ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado ao desafogo da concupiscência.[31]
A doutrina diverge bastante quanto à classificação do crime como um tipo misto alternativo ou em afirmar que o Artigo 217-A descreve um tipo misto cumulativo. Na primeira hipótese, ainda que o agente incorra nas duas condutas previstas, a sanção será apenas para uma conduta. Assim, para os doutrinadores e juristas que se posicionam neste sentido, o agente que constrange a vítima à conjunção carnal e, ainda, obriga à prática de ato libidinoso, cometeria crime único.
A segunda corrente, entretanto, entende que se deve admitir uma sanção exclusiva para cada conduta, prevendo condutas delitivas distintas, aplicando-se a regra do concurso de crimes. Observamos que a doutrina e a jurisprudência majoritária tende a seguir o entendimento de ser o Artigo 217-A um tipo misto cumulativo.
O dolo é elemento subjetivo essencial para a confirmação do Estupro de Vulnerável, que é crime punido somente a título de dolo, significando que o sujeito ativo deverá ter consciência e vontade de constranger o menor de 14 anos ou o vulnerável à conjunção carnal ou ao ato libidinoso para a satisfação de sua lascívia, não se punindo a forma culposa.
Esclarece a lei penal:
Art. 18 - Diz-se o crime:
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;[32]{C}
Nesta acepção de crime doloso, alguns autores, como Damásio de Jesus, Mirabete e Fabbrini, acolhem a opinião de que o agente deve, ainda, conhecer sobre a vulnerabilidade da vítima, sendo o erro uma hipótese que afasta o delito em tela. Veremos à frente hipóteses que configuram erro de tipo. O Artigo 18 prevê a modalidade de dolo direto, em que poderia ser considerada quando o agente tem a ciência da idade tenra da vitima ou ainda de sua vulnerabilidade, mas o tipo ainda admite a sanção em ocorrência de dolo eventual, em que, na incerteza da idade da vítima ou de sua vulnerabilidade, mas conjecturando a possibilidade, o agente se dispõe a assumir o risco da conduta.
{C}3.4 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
O estupro de vulnerável se consuma com a realização do coito vaginal, total ou parcial, ou do ato libidinoso, refletindo em crime de mera conduta ou de simples atividade. Explica Damásio que esta condição decorre da não exigência da lei penal de qualquer resultado naturalístico.[33] A consumação independe também da ejaculação, quando há conjunção carnal e, nos moldes atuais, do consentimento prestado pela vítima.
A tentativa é possível em ambas as modalidades, vez que o crime é plurissubsistente e admite o fracionamento dos atos antes da consumação.
{C}3.5 QUALIFICADORAS E CAUSAS DE AUMENTO DE PENA
Alguns crimes trazem previsões legais elaboradas pelo legislador que carregam circunstâncias adicionais, tipos derivados, que são mais grave que o caput, fazendo com que a pena mínima ou máxima aplicada seja aumentada. A qualificadora de um crime aumenta diretamente a pena base anteriormente delimitada, enquanto a causa de aumento de pena, ou majorante, aumenta em frações a pena aplicada. Há ainda a agravante de pena, mas que são aplicadas de forma genérica pela lei, como a avaliação da reincidência do agente.
No caso do Estupro de Vulnerável, a lei penal prevê dois tipos derivados que qualificam a pena, isto é, aumentam o quantum estabelecido pelo caput. Vejamos, pois:
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.[34]
Os parágrafos 3º e 4º preveem o aumento da pena indicada no caput, qual seja, a pena mínima de 8 anos e máxima de 15 anos, de reclusão. Deste modo, podemos identificar que tratam de figuras qualificadas, desinentes do resultado de lesão corporal de natureza grave e da morte. Necessário é indicar que a conduta final deve ser alcançada de maneira preterdolosa, melhor fundamentando, o ato deve iniciar de forma dolosa, elemento subjetivo necessário, e atingir o resultado final com culpa. Se constatarmos o ato final, a morte ou a lesão corporal, como previamente considerado, o agente deverá ser punido por ambas as condutas, em forma de concurso material de crimes.
Apesar de tema quase uníssono, assim como em relação à possibilidade de concurso material da conjunção carnal e da prática de atos libidinosos, a doutrina ainda tende a divergir sobre a viabilidade da aplicação do concurso material entre os crimes de Estupro de Vulnerável e o Homicídio e Lesão Corporal. Alguns doutrinadores afirmam que o legislador foi severo o suficiente para buscar a condenação por dois crimes e, então, que o criminoso deveria responder unicamente por um delito. Corroboram o preceito anterior alegando que a lei abarcou tanto a conduta dolosa quanto a culposa para granjear o resultado qualificador.
Ainda nesta temática, observamos que o legislador não previu a qualificadora para quando se tratasse de lesão corporal leve. A propósito, o Artigo 129, do Código Penal prenuncia a definição de lesão corporal grave, sendo a leve admitida por hipótese de exclusão. À vista disso, ocorrerá obrigatoriamente o concurso material.
Aplicam-se ao Estupro de Vulnerável as seguintes causas de aumento de pena previstas no Artigo 226 e 234-A, do Código Penal: a) aumento de quarta parte, quando o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas; b) aumento de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela; c) aumento de metade, se do crime resulta gravidez; d) aumento de um sexto até a metade, se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador.[35]
{C}3.6 AÇÃO PENAL
Como sabemos, o Estado e sua atividade jurisdicional são inertes e dependem da provocação da parte ou do Ministério Público o direito penal seja aplicado à situação concreta. A ação penal é a forma de fazer valer o direito de ação do indivíduo ofendido, visando à satisfação punitiva do sujeito ativo, através da proposição da ação que o Estado poderá ativar sua função exclusiva do jus puniendi. Há quatro tipos de ação penal no direito penal processual brasileiro: ação penal pública incondicionada; ação penal pública condicionada à representação; ação penal privada; ação penal privada subsidiária da pública.
A ação penal será pública, quando o próprio Estado, representado pelo Ministério Público, detém o poder do direito de ação. Ocorre nos casos em que há um direito eminentemente social, de interesse da ordem pública. A ação pública poderá, em algumas situações, sujeitar-se à manifestação de vontade da parte ofendida ou de seu representante legal. Nesta circunstância, estaremos diante de ação pública condicionada à representação, em que a vítima ou seu representante legal exercem a faculdade do direito de ação e anui o Estado a investigar e processar alguém. Neste contexto, há ainda a ação penal que, inicialmente, se dá na forma de ação pública, mas diante da inércia Estatal, a ação se torna privada. E, por fim, a ação privada é de promoção exclusiva do ofendido ou de seu representante legal. A lei geralmente dispõe a forma de processamento do crime e, se não indicar, tratar-se-á de ação pública incondicionada.
No Estupro de Vulnerável, o Capítulo IV que dispõe as formalidades gerais para os Capítulos anteriores, estabelece no parágrafo único do Artigo 225, Código Penal que a ação adequada para crimes que envolvam menores de 18 anos e pessoas vulneráveis, deve ser, impreterivelmente, pública incondicionada:
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável. [36]
{C}3.7 ESTUPRO DE VULNERÁVEL COMO CRIME HEDIONDO
Delito hediondo é aquele abalizado como atroz, repugnante, bárbaro ou asqueroso e taxativamente previstos na Lei dos Crimes Hediondos – Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, com fundamento no Artigo 5º, Inciso XLI da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB).
Dispõe o Artigo 5º, XLIII da Carta Magna:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (...) [37]
A consequência da hediondez é o tratamento mais rigoroso do apenamento e atenuação dos benefícios ao autor da conduta. Dentre elas está a impossibilidade da prestação de fiança (Lei nº 8.072/90, Artigo 2º, Inciso. II) e a vedação à anistia, graça e indulto (Lei nº 8.072/90, Artigo 2º, Inciso I). Além disso, podemos mencionar o cumprimento da pena privativa de liberdade, inicialmente, em regime fechado, com progressão após o cumprimento de 2/5 da pena, se o réu for primário e após 3/5 da pena, se o réu reincidente (Lei nº 8.072/90, Artigo 2º, §§ 1º e 2º), entre outras disposições mencionadas nos parágrafos seguintes: decisão fundamentada sobre a possibilidade de o réu apelar em liberdade, quando houver sentença condenatória e prazo de 30 dias para prisão temporária, prorrogáveis por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade.
O Estupro de Vulnerável é tido como hediondo em todas suas formas: consumado ou tentado, na figura do caput ou dos parágrafos 1º, 3º e 4º. A razão desta condição é a previsão legal do Inciso VI, do Artigo 1º da Lei nº 8.072/90, inserida após a edição da Lei nº 12.015/09. Não obstante, antes da edição desta Lei, havia a percepção de que os crimes estupro e atentado violento ao pudor somente configurariam a hediondez mediante lesão corporal grave e morte, o que foi modificado por definição do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão que seguia precedentes do mesmo órgão e também do Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou que os crimes acima mencionados devem ser tidos como hediondos mesmo antes da vigência da Lei nº 12.015/09, ainda que na forma simples. Os ministros defenderam a afirmação sob a tese que de que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da vítima e não a sua integridade física, o que descaracteriza a consideração da hediondez somente sob lesão grave ou morte da vítima.
{C}4 ESTUDO DA APLICAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE
O delito em análise comporta diferentes sujeitos passivo consoante aduzido no Capítulo anterior. Entretanto, o propósito do trabalho se direcionará sob a perspectiva exclusiva do sujeito menor de 14 anos, sobre o qual avaliaremos a aplicação da presunção de vulnerabilidade e a possibilidade de sua relativização.
O termo vulnerabilidade pode ser empregado sob o enfoque de inúmeras perspectivas de interpretação. Segundo o Professor João Daniel Rassi, o conceito de vulnerabilidade é polissêmico e deve ser interpretado de forma integradora, analisando os direcionamentos apontados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Penal, com o fim de atingir uma solução doutrinária compatível com a racionalidade legislativa de ambos.[38]
Adiante verificaremos buscaremos compreender o sentido almejado pelo legislador dentro das diversas conotações possíveis.
De acordo com o Dicionário Etimológico, a palavra vulnerável tem origem latina, vulnerabile, que significa “o que pode ser ferido ou atacado” – vulnerare, de ferir; vulnus, de ferida, lesão.[39]
Denota-se, portanto, que a palavra vulnerabilidade caracteriza o sujeito que, por sua fragilidade ou incapacidade, pode ser facilmente atacado ou ferido: diz-se do lado fraco de um assunto ou uma questão, ou do ponto pelo qual alguém pode ser atacado ou ferido.[40]
Em planos gerais podemos afirmar que toda pessoa está sujeita às interferências do mundo externo e exposta a inúmeros riscos sociais, tais como a violência, a fome, doenças e muitos outros. Entretanto, como bem expõe Bitencourt, não é dessa vulnerabilidade eventual, puramente circunstancial, que trata o dispositivo penal[41]. Rassi firma este entendimento mencionando que a vulnerabilidade pode apresentar graus e consequências penais diversas, tendo em vista a avaliação que o legislador faz do grau do nível de abuso dessa condição. Termina concluindo que são vulneráveis as pessoas que merecem maior proteção, porque estão em situações de fragilidade.[42]
Nesta linha de raciocínio presumimos que não está qualquer pessoa vulnerável sujeita à aplicação do Artigo 217-A, do Código Penal – logo que somos todos universalmente vulneráveis. Há, então, uma vulnerabilidade específica que deve ser estimada pela Legislação Penal e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Resta-nos, desta forma, a constatação daqueles que a lei abarcou e considerou como vulnerável em seu sentido estritamente penal.
O caput do referido artigo aponta que estão incluídas no rol de vulneráveis penais os menores de 14 anos – ao tempo da conduta, e continua o parágrafo primeiro do tipo adicionando os portadores de enfermidade ou deficiência mental, que não possuem o discernimento mínimo para a prática do ato e, ainda, aquele que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
Concluímos, então, que o artigo da Lei Penal tratou de proteger os absolutamente incapazes, já retratados pela legislação civil e aqueles que mesmo considerados capazes, tenham esta condição diminuída por qualquer causa e que a nova situação guarde semelhança à condição do enfermo ou deficiente mental:
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.[43]
Neste particular, notamos que o sujeito passivo é, portanto, aquele dotado de vulnerabilidade, presumida por sua tenra idade. Destacamos, com efeito, que o critério etário utilizado pelo Código Penal foi puramente biológico que, segundo numerosas doutrinas, não demonstra justificativa plausível para sua aplicação.
Neste ponto, esclarecedoras são as observações feitas pelo renomado autor Guilherme de Souza Nucci:
A lei considera que, pela tenra idade, tais indivíduos ainda não possuem maturidade sexual ou desenvolvimento mental completo para consentir com a prática do ato sexual, considerando-os, assim, vulneráveis.
Vale observar que não há qualquer parâmetro justificativo para a escolha em tal faixa etária, sendo tão somente uma idade escolhida pelo legislador para sinalizar o marco divisório dos menores que padecem de vício de vontade, a ponto de serem reconhecidos pelo status de vulneráveis, daqueles que possam vivenciar práticas sexuais sem impedimentos.
Verifica-se, pois, que a definição de patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade é baseado numa ficção jurídica, que nem sempre encontrará respaldo na realidade do caso concreto, notadamente quando se leva em consideração o acentuado desenvolvimento dos meios de comunicação e a propagação de informações, que acelera o desenvolvimento intelectual e capacidade cognitiva das crianças e adolescentes.[44]{C}
O ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), por sua vez, informa no Artigo 2º que estão amparados pela Lei a pessoa que se encontra na faixa etária de 0 a 18 anos, sendo considerada criança aquela até 12 anos incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos, concedendo a estes tratamento especial e dedicado ao foco na promoção dos direitos fundamentais.
Não obstante, o Estatuto sugere tratamento diferenciado entre as crianças e os adolescentes, haja vista que à criança apenas podem ser aplicadas as medidas protetivas –medidas impostas quando houver violação ou ameaça aos direitos fundamentais – enquanto aos adolescentes que não são tratados como pessoas completamente incapazes, logo que se sujeitam não só às medidas protetivas, quanto também às medidas socioeducativas – deliberação aplicada pelo Juiz com a finalidade pedagógica e punitiva tomada contra adolescentes que incidirem na prática de atos infracionais.
Ocorre que, para a devida aplicação das medidas socioeducativas em face do adolescente, leva-se em consideração a vontade do adolescente, isto é, é válida sua manifestação de vontade sobre o ato.
Neste diapasão, corroboramos que o legislador não homogeneizou a definição de criança e adolescente, ora implicando a vulnerabilidade absoluta aos menores de 14 anos pelo Código Penal, ora resguardando os menores de 12 anos, tido como completamente incapazes pelo ECA.
O debate sobre este tema é relevante até mesmo antes da vigência da Lei 12.015 de 2009, quando ainda prevalecia o entendimento da existência da figura da presunção de violência, a qual abordaremos em seguida.
O entendimento acerca do critério etário aplicado pelo Código Penal se torna primordial, posto que se o tem como expressivo fator para a análise e conclusão da possibilidade da relativização da vulnerabilidade nos crimes sexuais.
{C}4.1 SUBSTITUIÇÃO DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA PELA PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE
Antes da vigência da Lei nº 12.015 de 2009, vigorava a presunção de violência ou violência ficta. Este instituto orientava que aos crimes sexuais praticados contra vítima menor de 14 anos e contra pessoas portadoras de alienação ou debilidade mental, ainda que sem violência física real, aplicar-se-ia a presunção de violência ou grave ameaça, conforme se verifica pela redação:
Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de catorze anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
Deste modo, seria irrelevante o consentimento, a vida pregressa ou a exteriorização de vontade pela vítima na prática do ato sexual, sendo o agente punido e de forma mais severa. Este assunto tornou-se ponto de intensa discussão doutrinária e jurisprudencial até o surgimento da nova figura prevista no Artigo 217-A, que substituiu a presunção de violência pela presunção de vulnerabilidade.
Observamos, entrementes, que a legislação penal, verdadeiramente, manteve a violência indutiva, com finalidade e contexto semelhantes, apenas reconfigurando sua nomenclatura. Tanto é que a alteração introduzida pela Lei nº12.015 de 2009 não eliminou a controvérsia acerca do caráter absoluto ou relativo que existia sobre a natureza da violência ficta prescrita no revogado Artigo 24 do Código Penal, mas agora em relação à vulnerabilidade da vítima. Afirma inclusive Bitencourt que o legislador foi dissimulado ao usar os mesmos enunciados utilizados pelo legislador de 1940 para presumir violência sexual:
Contata-se que o legislador anterior foi democraticamente transparente (mesmo em período de ditadura), destacando expressamente as causas que levavam à presunção de violência; curiosamente, no entanto, quando nosso ordenamento jurídico deve redemocratizar-se sob os auspícios de um novo modelo de Estado Constitucional e Democrático de Direito, legislador contemporâneo usa a mesma presunção de violência, porém, disfarçadamente, na ineficaz pretensão de ludibriar o intérprete e o aplicador da lei. “A proteção conferida – profetiza Nucci – aos menores de quatorze anos, considerados vulneráveis, continuará a despertar debate doutrinário e jurisprudencial. O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência”. Trata-se, inequivocadamente, de uma tentativa dissimulada de estancar a orientação jurisprudencial que consagro no Supremo Tribunal Federal sobre a relatividade da presunção de violência contida no dispositivo revogado (art. 224). [45]
Doutrinadores em sentido contrário, tal como Mirabete e Fabbrini, acreditam que na substituição da presunção de violência pela vulnerabilidade, o legislador teve a intenção de excluir possíveis indagações no caso concreto a respeito da maturidade, conhecimento e experiência do menor em relação às questões sexuais.[46]
Em que pese o dispositivo apontar para a hipótese de uma regra absoluta, a doutrina entendia pela aplicação da presunção de violência relativa em casos excepcionais, que poderia ser afastada diante de eventual erro do agente.
{C}4.2 PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE ABSOLUTA E RELATIVA
Na nova direção do Código Penal, o legislador aponta como sendo a vulnerabilidade o ponto determinante para a caracterização do delito sob estudo.
Insta salientar que há duas possibilidades distintas de vulnerabilidade. Sobre o tema, relata Bitencourt que se pode admitir que o legislador, embora não tenha sido expresso, trabalhou com duas espécies de vulnerabilidade, uma absoluta (menor de catorze anos) e outra relativa (menor de dezoito anos).[47]
Este fato é extraído das proteções a “idades vulneráveis” distintas verificadas nos diferentes tipos penais presentes no Capítulo II. Há momentos em que o legislador preocupa-se em proteger apenas os menores de 14 anos e outros em que designou por bem a proteção aos menores de 18 anos.
E como citado, a discussão sobre do caráter absoluto ou relativo desta vulnerabilidade permanece e continua sendo ponto de divergências doutrinárias e de aplicação jurisprudencial.
A presunção de vulnerabilidade absoluta (juris et de jure) é aquela que entende que a vítima é plenamente incapaz e não potencial consciência da prática de suas condutas. Esta configuração ignora qualquer avaliação a respeito da culpa ou dolo do agente e este será considerado culpado independentemente de qualquer situação que possa modificar a condição de vulnerabilidade da vítima. Tratar-se-ia, portanto, de responsabilização penal objetiva.
A presunção relativa (júris tantum), por sua vez, admite a produção de provas em contrário daquilo que se alega, permitindo a existência do contraditório e da ampla defesa, isto é, autoriza o agente a trazer elementos que possam reconfigurar a vulnerabilidade da vítima sob aspecto distinto.
Ainda sobre este tema, Bitencourt[48] acredita que devamos distinguir não somente os conceitos de presunção de vulnerabilidade absoluta e relativa, mas também estes do conceito puro de vulnerabilidade absoluta e relativa.
Para o autor, estes conceitos não se diferenciam, mas também não podem se distanciar, pois não se excluem. Inicialmente, partiríamos do pressuposto da existência da vulnerabilidade para identificarmos seu grau, intensidade e extensão e, logo após, verificaríamos, através de juízo de cognição, a natureza da presunção, se relativa ou absoluta; e depois valora-se o quantum de vulnerabilidade que a vítima apresenta.
Em linhas mais simples, o autor sugere que partindo do pressuposto da existência da vulnerabilidade, primeiro deveríamos verificar se o tipo penal orienta para a consideração da vulnerabilidade relativa ou absoluta. Neste caso, teríamos a vulnerabilidade absoluta para o Artigo 217-A em comento e da vulnerabilidade relativa para o Artigo 218-B.
Entretanto, passaríamos a verificar se naquela situação concreta a vulnerabilidade da vítima específica é relativa ou absoluta. Este último passo pode conciliar a presunção de vulnerabilidade absoluta com a vulnerabilidade relativa da vítima ou, ainda, admite a presunção de vulnerabilidade relativa e ser a vítima dotada de plena vulnerabilidade.
O Código Penal adotou o critério etário e impôs para aqueles que tenham idade inferior a 14 anos a vulnerabilidade absoluta, impossibilitando qualquer juízo valorativo sobre o agente e rejeitando eventual situação desconfigurante da intenção dolosa. Isto é, aquele que pratica ato sexual com menor de 14 anos, independentemente de sua intenção, condição do fato ou elementos que o levaram para a sua concretização.
Esta característica firmada pelo Código Penal deve-se à proteção especial conferida às crianças e aos adolescentes, considerados hipossuficientes e indefesos, incapazes de consentir para a realização de atos sexuais de qualquer espécie.
{C}5 DOS DIREITOS PRIMORDIAIS GARANTIDOS ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES
Nos últimos anos houve relevante ampliação e conquista de novos dos direitos com foco na criança e no adolescente. As normas de proteção anteriormente vigentes, expostas pelo Código Mello Matos (Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927) e pelo Código de Menores (Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979), destinavam-se a casos específicos, em que apenas se protegia a criança e o adolescente em situação de perigo moral ou material, caracterizada como “irregular”, o que gerou a figura da doutrina da situação irregular.
O Artigo 2º do Código de Menores dispunha sobre as situações tidas como irregulares:
Art. 2º - Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsáveis;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las.
II – vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III – em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes.
IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI – autor de infração penal.[49]
Em que pese o rol elencado pelo Código de Menores, ainda assim, a aplicação da defesa aos direitos dos menores era bastante vaga e nada claro era o modo de atuação do Estado para sua efetivação. Sem mencionar que a criança e o adolescente eram tidos como mero objeto de intervenção jurídica e estatal.
Com o avanço dos anos e da renovação dos pensamentos, destinou-se mais enfoque, inclusive pela comunidade internacional, ao concreto cuidado da infância e da juventude, representando significante progresso na proteção dos direitos fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 concretizou a proteção do indivíduo frente a diversas perspectivas sociais, econômicas e históricas, tais como a garantia de honra e dignidade, direito à vida e mesmo de defesa diante da atuação Estatal, garantindo, principalmente, a existência e a promoção de inúmeros direitos fundamentais.
E, assim como a toda e qualquer pessoa, foram garantidos às crianças e aos adolescentes direitos de ordem constitucional, aplicados, entretanto, de forma especial em razão das particularidades apresentadas por este grupo.
A proteção diferenciada é garantida aos menores de 18 anos de idade, correspondente às crianças e adolescentes, outrora mencionados e diferenciados. O tratamento peculiar a referido grupo se dá porquanto consideramos seres em formação, em processo de amadurecimento físico e mental e que necessitam, portanto, de cuidados e proteção especiais.
Neste particular, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aponta em seu Artigo 25 que a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.[50]
Corrobora a Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu Preâmbulo:
(...) Recordando que na Declaração Universal dos Direitos Humanos as Nações Unidas proclamaram que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais;
(...) Tendo em conta que a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial foi enunciada na Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança e na Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral em 20 de novembro de 1959, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular nos Artigos 23 e 24), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (em particular no Artigo 10) e nos estatutos e instrumentos pertinentes das Agências Especializadas e das organizações internacionais que se interessam pelo bem-estar da criança;
Tendo em conta que, conforme assinalado na Declaração dos Direitos da Criança, "a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento"; (...) {C}[51]{C}
A nova legislação adotou paradigma inovador e, compreendendo serem as crianças e os adolescentes pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, passou a trata-los não como objetos da norma, mas sim como sujeitos de direitos e obrigações. O menor torna-se sujeito de muitos direitos que não lhe eram conferidos por nosso ordenamento jurídico. Há de se mencionar, por oportuno, a frase de Jean Chasal: “L’enfant est sujet et non objet” recordada por João Roberto Elias. [52]
Com efeito, dois anos após a decretação da Constituição Federal, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que substituiu integralmente o Código de Menores. O ECA foi criado de forma totalmente dedicada a garantir e efetivar os direitos das crianças e dos adolescentes, reconhecendo-os como prioridade absoluta da família, Estado e sociedade, e como sujeitos de direitos, em seus mais amplos e completos sentidos: social, econômico, jurídico, cultural, educacional.
Sobre o tema, destacamos as palavras de Mangualde, que nos ensina ter sido o ECA elaborado através de um processo de mobilização política, ética e social, sob a visão do tema de forma global e com a participação de representantes do mundo jurídico, das políticas públicas e do movimento social.
O autor aponta, ainda, como maior objetivo do Estatuto assegurar à criança e ao adolescente, por lei e por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. [53]
Senão, vejamos:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.[54]
E o autor finaliza, afirmando sobre a nova situação da criança e do adolescente, agora sujeitos de direitos:
Com a criação do ECA, não existem mais menores irregulares e sim sujeitos de direitos com idade inferior a 18 anos (excepcionalmente a 21 anos), dotados de igualdade e dignidade, que, como pessoas em desenvolvimento, necessitam de todo o aparato dos diversos setores da sociedade, sejam eles governamentais ou não, para que a efetivação do alcance de suas garantias legais seja alcançada, garantias essas dotadas de absoluta primazia sobre quaisquer outras, conforme acima exposto.
{C}5.1 DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA PRIORIDADE ABSOLUTA
Ao resguardo extraordinário assegurado às crianças e aos adolescentes denominou-se Doutrina ou Princípio da Proteção Integral, que constitui no conjunto de elementos baseados em legislação garantista para acautelar os direitos de natureza fundamental, a fim de protegê-los de forma abrangente e completa, com visão de conjunto de fenômeno de maneira global e imune à contaminação de regras de outros ramos do direito.[55]
Esta teoria tem por escopo garantir proteção total e absoluta dos direitos infanto-juvenis, em que são titulares de direitos plenos, frente à família, à sociedade e ao Estado, conforme preconiza o Artigo 227, da Constituição Federal, que incorporou a Doutrina da Proteção Integral no ordenamento jurídico brasileiro, dispondo:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[56] (grifos nossos)
O ECA prevê a atuação, em dimensões distintas, não só em âmbito familiar, mas como também pelo Estado e, ainda, por toda a sociedade brasileira – responsabilidade solidária – para atender às necessidades essenciais para a boa formação das crianças e dos adolescentes, estreitando qualquer possibilidade de isenção de responsabilidade sobre o menor e assegurando a efetividade da aplicação de seus direitos.
Destacamos, por oportuno, o elucidativo comentário de Pereira: “a responsabilidade pela administração familiar se apoia num tripé: o Estado em primeiro lugar, a sociedade em segundo e, logo após, o pai e mãe ou responsável.” [57]
A Proteção Integral se torna evidente não apenas no envolvimento de diversos agentes, mas também na condução de inúmeros direitos fundamentais: direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Todos indivisíveis e interdependentes entre si.
Ainda no mesmo artigo podemos extrair outro princípio de grande relevância, qual seja, da Prioridade Absoluta. Este, por sua vez, atribuiu atendimento imediato e prioritário à execução dos direitos infanto-juvenis.
Em complementação e ratificação ao que prevê a Constituição Federal, o Estatuto cuidou de abarcar a Doutrina da Proteção Integral, mantendo o dever da família, da sociedade e do Poder Público em assegurar todos os direitos, em seus mais amplos sentidos e, ainda, acrescentando responsabilidade à comunidade. Também tratou de indicar pela prioridade no direcionamento do atendimento às crianças e aos adolescentes, conforme veremos:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.[58] (grifos nossos)
Assim, a integralidade verifica-se no encadeamento da garantia dos mais diversos direitos fundamentais, envolvidos pela promoção e proteção de múltiplos agentes, o que nos leva a compreender que as normas destinadas às crianças e aos adolescentes os concebem como sujeitos de direitos. Enquanto a Doutrina da Prioridade Absoluta complementa e amplia a intangibilidade do menor, exigindo que o atendimento pelo Poder Público, sociedade e família seja imediato e real para efetivar tais garantias.
{C}5.2 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente que a criança e o adolescente têm direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho.
Dentre todos estes, nos interessa, principalmente, o direito à liberdade, ao respeito, à dignidade e à saúde. Isto porque, ainda que todos conexos e interligados, o objeto protegido pela criação do tipo criminoso de Estupro de Vulnerável é justamente a dignidade sexual, a intangibilidade e o sadio desenvolvimento físico e mental do menor de 14 anos.
Todos estes direitos possuem relação bastante estreita, mas não se confundem.
O direito à saúde é assegurado a todos e é tido como um dever do Estado. O ECA especialmente entende, inclusive, que o Poder Público deve efetivar políticas sociais públicas para que a criança e o adolescente tenham condições dignas para o “desenvolvimento sadio e harmonioso”, desde seu nascimento até o completo amadurecimento.
Na formulação do Artigo 17, do ECA, o direito ao respeito compreende a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.[59] Esta proteção alcança também a proteção de sua intimidade, relativamente à preservação de sua imagem, ideias, crenças e identidade.
O direito à dignidade impõe valor moral à criança e ao adolescente, zelando pela proteção de sua imagem, evitando o constrangimento e a exposição às situações vexatórias que evidenciem marcas de sua situação social, física, moral ou psíquica.
Em seu turno, o direito à liberdade compreende a liberdade de circulação; a liberdade de expressão e de opinião, em que seu consentimento deve ser levado em consideração; liberdade de crença e de escolha de culto religioso e outras mais, podendo praticar aquilo que é de sua vontade, desde que dentro das limitações legais.
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II – opinião e expressão;
III – crença e culto religioso;
IV – brincar, praticar esportes e divertir-se;
V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI – participar da vida política, na forma da lei;
VII – buscar refúgio, auxílio e orientação.
Discute-se, entretanto, se dentre as liberdades assumidas pela criança e pelo adolescente, encontra-se o direito à liberdade sexual. Conquanto muitos doutrinadores, tais como Nucci e Greco, afirmem ser a liberdade e a dignidade sexual objetos juridicamente protegidos pelo Artigo 271-A, não poderíamos falar em liberdade sexual diante da figura da vulnerabilidade absoluta atualmente compreendida, mas tão somente em dignidade, logo que se verifica não haver plena disponibilidade para o exercício deste direito.
Tal como afirma Greco, liberdade sexual sugere o direito que qualquer pessoa tem de dispor sobre o próprio corpo no que diz respeito aos atos sexuais.[60] Nesta esteira, se compreendermos a disponibilidade do menor de 14 anos sobre seu próprio corpo, induziríamos a possibilidade de seu consentimento.
Assim, acreditamos que a compreensão acerca do objeto jurídico tutelado pelo Estupro de Vulnerável é fundamental para a compreensão da vulnerabilidade em razão da idade.
{C}5.3 PONTOS FAVORÁVEIS À PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE EM CARÁTER ABSOLUTO
Diante do exposto neste Capítulo, verificamos que após incessantes lutas, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que conferiu inúmeros direitos especiais às crianças e aos adolescentes, tendo em vista a Doutrina da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta instituída por esta Lei.
Constatamos mais que o objetivo primordial do Estatuto e também do novo tipo Estupro de Vulnerável é a proteção da evolução e do desenvolvimento sadio e normal da personalidade das crianças e dos adolescentes, a fim de efetivar os direitos à dignidade, respeito, saúde e liberdade. E mais do que isso, garantir a integridade física e psíquica destes seres em peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.
Assim, temos como intenção do tipo assegurar que estes indivíduos tenham maior proteção jurídica, justamente por sua vulnerabilidade e imaturidade psicológica, sendo incapazes de manifestar vontade de forma válida e segura, além de não possuírem discernimento para compreender ou resistir ao ato sexual.
Cabe neste instante considerarmos os números relativos à iniciação sexual: segundo o IBGE, em dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), em 2012 revelou-se que 28,7% da classe dos escolares frequentando o 9º ano (idade entre 13 e 15 anos) já tinham tido alguma relação sexual. Dentre este número, a proporção indicava para 40,1% dos meninos, enquanto 18,7% representaria o número de meninas. [61]
Entretanto, resta claro pelos objetivos legais que, ainda que relevante o número de jovens iniciando de forma precoce o contato com a sexualidade, o intuito da legislação segue no sentido de sua proteção e a guarda de seus direitos, tentando evitar a prática sexual precoce ou minimizar os danos causados por eventuais relações precipitadas, pois qual seja sua realidade e proximidade com o assunto, persiste a inconsciência e a baixa capacidade de resistência sobre atos que atinjam sua dignidade sexual.
Não resta dúvida de que o legislador encontra o fundamento da punibilidade dessas condutas na tutela da integridade sexual do menor, entendendo que o mesmo não é capaz de compreender com exatidão a transcendência dos atos praticados, pois seu desenvolvimento psicofísico poderia resultar altamente comprometido pela submissão ao abuso sexual por parte de adultos, ainda que essas práticas fossem intermediadas pelo seu consentimento.[62]
Em decorrência deste pouco amadurecimento físico e mental, ainda que o ato seja praticado com sua anuência, seu consentimento é considerado inválido, logo que não possui domínio total sobre seu corpo e é inconsciente de suas atitudes e não domina as consequências de seus comportamentos.
Em outro cerne, também cumpre salientar que o fato de a vítima anuir ou não com a prática sexual é irrelevante para a configuração do delito de estupro, uma vez que, embora não se desconheça a divergência jurisprudencial no que tange à presunção de vulnerabilidade, se relativa ou absoluta (STJ - REsp. n. 1184236/TO, Rel. Min. Jorge Mussi, j. em 07/12/2010; STJ - AgRg no REsp. n. 1214407/SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. em 13/09/2011; STF - HC n. 97052/PR, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 16/08/2011), este Tribunal tem alicerçado o entendimento de que às vítimas menores de 14 (quatorze) anos, é irrelevante o seu consentimento ou, mesmo, a sua eventual experiência anterior, já que a presunção de violência é de caráter absoluto.
(...) Assim, mesmo que a infante tenha concordado com as práticas de cunho sexual, ou, ainda, que esta tenha se relacionado intimamente com o outro jovem antes dos fatos descritos na denúncia, impossível seria a relativização da violência presumida visto que é amplamente sedimentado pela jurisprudência que o consentimento da vítima e sua experiência sexual anterior são irrelevantes para a caracterização do delito, mormente ante sua incapacidade de consentir na prática do ato sexual, por ser menor de 14 (quatorze) anos.[63]
Assim, ainda que se trate de menor prostituído ou com vasta experiência sexual, o Estado tem o dever de resguardar sua condição de vulnerável e punir de forma mais severa aquele que desta situação tenha se avantajado.
No mesmo raciocínio, encontramos julgados relativos à irrelevância do consentimento do menor de 14 anos. Observamos:
HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ART. 217-A, §1º, DO CÓDIGO PENAL. NEGATIVA DE AUTORIA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE NA ESTREITA SENDA MANDAMENTAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA. PRESCINDIBILIDADE PARA CONFIGURAÇÃO DO DELITO. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA CUSTÓDIA CAUTELAR. INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. GRAVIDADE CONCRETA DO DELITO E CLAMOR PÚBLICO. CRIME HEDIONDO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. DECISÃO DO MAGISTRADO SINGULAR QUE COLOCOU CO-AUTOR MENOR EM LIBERDADE. FULCRADA EM CONDIÇÃO PESSOAL DO AGENTE. IMPOSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DO BENEFÍCIO AOS PACIENTES. REGRAMENTOS DISTINTOS. ORDEM DENEGADA. (...) 2. O delito previsto no art. 217-a, § 1º, do Código Penal [estupro de vulnerável] não exige, para sua configuração, o emprego de violência física ou grave ameaça, pois o simples fato de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com pessoa considerada vulnerável, mesmo com o consentimento desta, já importa na prática do crime. Assim é porque se presume, de forma absoluta, a incapacidade que essas pessoas possuem para consentir.[64]
Nos Capítulos anteriores evidenciamos que o Artigo 217-A tem como critério objetivo a idade tenra da vítima, isto é, conferiu o caráter de vulnerabilidade considerando como referência a idade inferior a 14 anos, conferindo liberdade à prática sexual apenas aos maiores de 14 anos. Sobre o tema, aduzem Mirabete e Fabbrini:
Embora se possa falar em vulnerabilidade absoluta e relativa em relação ao menores de 18 anos, de acordo com aquelas faixas etárias, a lei não concedeu ao juiz margem de discricionariedade que permita aferir no caso concreto o grau de maturidade sexual do menor para a aplicação dos diversos dispositivos legais. (...) Assim, o menor de 14 anos e o menor de 18 anos são especialmente protegidos nos diversos dispositivos legais em razão da idade que possuem, independentemente de terem, no caso concreto, maior ou menor discernimento ou experiência em matéria sexual. [65]
O advento da Lei nº 12.015/2009 trouxe maior rigor à punição dos agentes que praticarem crimes de violência sexual contra menores de 14 anos, impondo ao Artigo 217-A a forma objetiva para verificação da vulnerabilidade da vítima. Sobre este assunto, leciona o célebre autor Rogério Greco:
A determinação da idade foi uma eleição político-criminal feita pelo legislador. O tipo na está presumindo nada, ou seja, está tão somente proibindo que alguém tenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de 14 anos, bem como aqueles mencionados no § 1º do art. 217-A do Código Penal.
Complementa Delmanto:
Observe-se, ao contrário do art. 213, neste art. 217-A não é necessário que haja constrangimento mediante violência ou grave ameaça, mesmo porque o seu eventual consentimento, para fins penais, não é válido. A idade de 14 anos foi uma opção do legislador, a nosso ver acertada, não sendo admitida a relativização com fundamento no ECA, que dispõe ser criança quem tiver até 12 anos e, adolescente, de 12 até 18 anos (art. 2º da Lei nº 8.069/90). Com efeito, o tipo penal não emprega a expressão criança, mas menor de 14 anos. [66]
Ademais, é importante relembrarmos a própria justificativa do PLS nº 253/2004:
Esse artigo, que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 24 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 24, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos,mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática.[67]
O assunto se agrava ainda mais se revelarmos o número da violência infantil:
Pelos registros do SINAN foi atendido, em 2011, um total de 10.425 crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. A grande maioria do sexo feminino: 83,2%. Com poucas oscilações entre as faixas etárias, podemos ver também que vai ser entre os 15 e 19 anos que os índices femininos atingem sua máxima expressão: 93,8%. Ao todo, forma 16,4 atendimentos para cada 100 mil crianças e adolescentes. A maior incidência dos atendimentos registra-se na faixa de 10 a 14 anos, com uma taxa de 23,8 notificações para cada 100 mil adolescentes. [68]
A pesquisa mostra ainda os números identificados pelo tipo de violência em que o Estupro concentra 59% dos atendimentos registrados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), onde 74,4% das vítimas são do sexo feminino e 45,72% entre 10 e 14 anos de idade.
Admitindo que os menores de 14 anos são indivíduos em pleno desenvolvimento mental, físico e psíquico, sendo considerados vítimas da sociedade, entendem os doutrinadores adeptos da presunção de vulnerabilidade absoluta, que cabe aos agentes de defesa da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta: Estado, sociedade, comunidade e família, zelar pela efetivação das garantias protetivas e não incentivar a iniciação sexual precoce.
Ora, o Direito deve existir para conter os abusos e violências sexuais as crianças e aos adolescentes. Não considerar o menor de 14 anos como vítima desta prática seria violar o próprio objetivo social da nova Lei e dos princípios fundamentais da Magna Carta e do ECA. Relativizar seu conceito seria, senão, um afronte aos direitos consagrados às crianças e aos adolescentes, suprimindo o direito ao natural e saudável amadurecimento.
{C}6 CONTEXTO CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 217-A
A Constituição Federal de 1988 foi o marco da redemocratização brasileira que, mesmo com as controvérsias políticas da época, efetivou direitos fundamentais, por meio de normas e princípios constitucionais.
Nas explicações do professor José Afonso da Silva, as normas são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagens ou de vínculos e que, por outro lado, exigem a ação ou abstenção em favor de outrem. Enquanto os princípios são ordenações que se irradiam e imantam sistemas de normas que confluem valores e bens constitucionais.[69]
Esclarece o célebre jurista Miguel Reale:
Restringindo-nos ao aspecto lógico da questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis. [70]
Tanto as normas quanto os princípios constitucionais devem ser considerados para a real aplicação das garantias fundamentais asseguradas ao povo brasileiro. E ao contrário do que possa parecer, não menos importante do que a Constituição ou as Leis vigorantes, os princípios são considerados o alicerce do próprio Ordenamento Jurídico, que nos conduz a interpretação das normas jurídicas, inclusive destacados e consagrados na própria Constituição Federal. Devendo, portanto, serem respeitados e garantidos a todos.
A imprescindibilidade dos princípios para a hermenêutica jurídica faz destes elementos indispensáveis para a avaliação da constitucionalidade de qualquer norma e, claro, não poderia deixar de ser relevante para sua própria aplicação.
Nesse diapasão, alguns autores manifestam o pensamento orientado para a compreensão da falta de observação aos princípios constitucionais, inclinados para inconstitucionalidade de parte da Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009, precipuamente no que concerne ao Artigo 217-A.
Para estes doutrinadores, considerar absoluta a vulnerabilidade no Estupro de Vulnerável importa em não admitir prova em contrário, afrontando os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa e da Presunção do Estado de Inocência, indispensáveis à aplicação do Direito Penal.
{C}6.1 DO CONSENTIMENTO DO OFENDIDO E A MATURIDADE DA VÍTIMA
O princípio da adequação social, concebido por Hans Welzel, significa que, apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal, não será considerada conduta criminosa, portanto, atípica, isto é, se a conduta for reconhecida ou se não ferir o sentimento de justiça da sociedade, a qual reconhece aquele ato de acordo com a ordem social, não haverá crime.
Assim, o Direito Penal somente considera típica a conduta de relevância social, pois, em sentido contrário, estaria criminalizando as condutas socialmente aceitas. Explica Capez que o tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais.
Ainda que seja uma teoria bastante aplicada, notamos críticas de doutrinadores e juristas que sustentam o pensamento de que o costume não se presta a revogar a lei, nem os tipos penais incriminadores e, logo que o conceito de adequação social é bastante vago, daria ensejo à violação do princípio constitucional da separação dos poderes, pois o juiz poderia, diante da subjetividade da análise material, deixar de punir, aplicando o princípio em tela, ainda que exista norma vigente para condenar quem nela incidir.
Ocorre que temos que compreender o princípio da adequação social como um orientador ao legislador para a criação ou revogação de normas incriminadoras penais e não como um objeto de margem discricionária para aplicação do tipo penal pelo judiciário. Aplicado somente nos casos em que uma conduta formalmente típica corresponder a um comportamento ajustado à realidade social, deixando, por consequência, de existir ofensa ao bem jurídico tutelado.
Sobre este assunto deslinda Fernando Capez:
Entretanto, é forçoso reconhecer que, embora o conceito de adequação social não possa ser aceito com exclusividade, atualmente é impossível deixar de reconhecer sua importância na interpretação da subsunção de um fato concreto a um tipo penal. Atuando ao lado de outros princípios, pode levar à exclusão da tipicidade.[71]
Concluímos que para estimar se a conduta do agente é socialmente adequada e aceita, faz-se necessário considerar os costumes daquela sociedade, na época e no local em que ocorreu determinado fato, ponderando o sentimento das pessoas sobre este comportamento.
No raciocínio destas elucidações, resta claro que se determinado fato não exalta o sentimento de injustiça à sociedade, não há que se falar em conduta criminosa.
Destarte, podemos sustentar que o tipo de Estupro de Vulnerável, ao aplicar a presunção absoluta de vulnerabilidade aos menores de 14 anos, não se adequada à realidade social, dado que não acompanhou a evolução da sexualidade infantil e deixou de indagar o pensamento da sociedade sobre tais comportamentos.
E mais: deixa de avaliar a situação concreta, desconsiderando inclusive a qualidade da vítima, do sujeito ativo e da relação existente entre eles.
Vislumbrando especialmente o princípio da adequação social, ou seja, a impossibilidade de se considerar como delituosa uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que se enquadre em uma descrição típica, constatamos nesse caso, uma condição típica de namoro, inexistindo qualquer vestígio de violência ou mesmo abuso sexual.
O contexto do art. 217-A do Código Penal alberga tanto o ato sexual mantido entre namorados, quanto aquele praticado mediante violência real. Nesse diapasão, o eventual estuprador e o namorado são colocados no mesmo patamar, com tratamento igualitário. Vê-se que no crime de estupro de vulnerável, quando o suposto agente é o próprio namorado da vítima, a conduta dele ainda é formalmente típica.
Entretanto, como a sociedade tolera, sem hipocrisia, em alguns casos a relação sexual, quando trata-se de adolescente de 13 (treze) ou 14 (catorze) anos de idade e, praticado com o consentimento da menor, pode ser excluída a tipicidade material.[72]
Leciona Nucci que além de retrógrado, o legislador não equiparou a legislação penal a outros diplomas legais, chance esta que poderia findar a discussão acerca da aplicação da vulnerabilidade absoluta ou relativa:
O legislador, na área penal, continua retrógrado e incapaz de acompanhar as mudanças de comportamento reais na sociedade brasileira, inclusive no campo da definição de criança ou adolescente. Perdemos uma oportunidade ímpar para equiparar os conceitos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, criança é a pessoa menor de 12 anos; adolescente quem é maior de 12 anos. Logo, a idade de 14 anos deveria ser eliminada deste cenário. A tutela do direito penal, no campo dos crimes sexuais, deve ser absoluta, quando se tratar de criança (menor de 12 anos), mas relativa ao cuidar do adolescente (maior de 12 anos). É o que demanda a lógica do sistema legislativo, se analisado em conjunto. {C}[73]{C}
Ainda sobre o legislador passadista, notamos com o evoluir do tempo, consoante o que fora dito nos capítulos anteriores, a proximidade cada vez mais prematura das crianças e adolescentes com a sexualidade e nada mais garantidor do que o acompanhamento do Direito a essas evoluções.
É preciso, portanto, reinterpretar os antigos conceitos e ao contrário do que expressa a corrente favorável à consideração da vulnerabilidade absoluta. Aqui, pretende-se atualizar as leis à nova situação social. Não podemos ignorar as mudanças do contexto comportamental sexual.
Nesse contexto, é importante destacar o limite de ofensa ao bem da dignidade sexual, tutelado pelo Estupro de Vulnerável, e identificar o valor do consentimento do menor na prática do ato sexual. Segundo afirma Nucci, o delito do Artigo 217-A presume a falta de capacidade do menor de 14 anos, então, é importante compreenderemos o poder de compreensão das crianças e dos adolescentes para concluir a possibilidade de aplicação da teoria da adequação social.
Não deixa de haver uma presunção nesse caso: baseado em certas probabilidades, supõe-se algo. E a suposição diz respeito à falta de capacidade para compreender a gravidade da relação sexual.[74]
O critério etário fixado pelo Código Penal foi criado com o objetivo de fixar uma suposta idade em que o menor adquire capacidade para consentir validamente para o ato sexual, o que imaginamos ser um grande engano, pois a verdade prática se mostra bastante diferente disto.
Um estudo feito pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) sobre a sexualidade dos jovens brasileiros aponta, segundo a revista Istoé[75], que entre adolescentes entrevistados em todos os Estados do país demonstraram que 66,5% destes jovens, o que representa 2 em cada três jovens, têm a primeira relação sexual até os 16 anos e que 16,1% dos entrevistados disseram que a primeira vez aconteceu até os 13 anos.
A revista prossegue, afirmando categoricamente que embora aconteça cedo e apesar dos descuidos, os adolescentes estão muito bem informados. Na maioria dos casos, sabem, no mínimo, o que têm de usar e fazer para o ato sexual.
Atualmente, com ao avanço tecnológico, a difusão de informações se dá muito rapidamente, onde, dentre elas, são expostas muitas referências sexuais em todos os meios de comunicação: na televisão, em filmes, rádio, revistas, além da internet, onde as informações percorrem o mundo em poucos instantes. Em um polêmico caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o relator Souza Nucci bem afirma que a sociedade não pode vendar-se à nova realidade social, pois meninas iniciam a vida sexual cada vez mais cedo devido ao estímulo televisivo que, segundo ele, tem a qualidade educacional decaindo periodicamente, bem como pelas amizades de variadas idades ou mesmo por outros motivos igualmente relevantes. [76]
A generalização do termo vulnerável se desalinha ainda mais quando verificamos que o próprio Artigo 217-A determina a avaliação do discernimento para a prática do ato sexual em se tratando de casos onde figura vítima alienada ou deficiente mental, que bem poderia ser estendida ao caput do artigo. Discorrendo sobre o tema, Nucci acentua:
Nessa linha, em cumprimento aos princípios norteadores do direito penal, não basta a comprovação da idade para a tipificação do crime de estupro de vulnerável, uma vez que o critério etário não é absoluto. A melhor solução reside na aferição casuística do grau de maturidade sexual e desenvolvimento mental do suposto ofendido, para definir se é ou não vulnerável, aplicando-se a lei de maneira mais justa ao caso concreto. Em última análise, consoante a relativização da vulnerabilidade, expressamente conferida aos deficientes mentais e enfermos – conforme discorreremos a seguir – entendemos que, por interpretação extensiva, deve-se garantir igual tratamento aos menores de 14 anos, reputando-se como vulneráveis apenas aqueles que efetivamente não possuírem o necessário discernimento para a prática sexual.[77]
Podemos afirmar, sem qualquer insegurança, que um jovem de 13 anos conhece, compreende e até mesmo tem contato com a prática sexual. Neste sentido:
Diante dessa evolução jurídico-social e, ao mesmo tempo, considerando o avanço dos meios de comunicação e a universalização do acesso à informação, inviável continuar sustentando a ideia de que adolescente de 12 ou 13 anos de idade nada saiba ou pouco possa discernir sobre questões que envolvam a sua sexualidade. Hoje, o critério etário não é mais absoluto.
A fim de definir o grau de vulnerabilidade da jovem mulher, deve-se levar em consideração, casuisticamente, tanto seu desenvolvimento mental como sua maturidade sexual, só assim podendo-se concluir acerca da eventual incidência da regra de presunção elencada no Estatuto Repressivo. [78]
Existem inúmeras possibilidades de autodeterminação e compreensão por parte do sujeito passivo em relação ao ato sexual e retirar esta capacidade do menor de 14 anos é assumir a privação do direito de liberdade sexual, implicando em abstenção da prática carnal, o que já não é mais a realidade da sociedade atual. Tanto é evidente esta evolução na liberdade sexual dos jovens que o ECA passou a reconhecer legalmente a capacidade de compreensão e discernimento das crianças maiores de 12 anos.
Pensam os doutrinadores favoráveis à relativização da vulnerabilidade, que as palavras da vítima, especialmente nos crimes contra a dignidade sexual, devem ser consideradas e são notadamente valiosas quando houver fortes elementos que demonstrem a coerência de seu relato. Destarte, a capacidade de consentir deve ser avaliada diante da hipótese concreta, considerando a maturidade da vítima e sua vivência e experiência sexual. Estando presentes o consentimento pleno e não viciado da vítima para o ato sexual, forçosa é a consideração da absolvição do acusado.
É possível notarmos que o assunto deixou de ser um tabu entre os jovens, logo que o tema sexo passou inclusive a ser explorado e integrar o currículo escolar da educação fundamental, objetivando a informação clara e precisa sobre a relação sexual, alertando sobre seus riscos, como as doenças sexualmente transmitidas e a gravidez indesejada. Assim justifica o MEC (Ministério da Educação e Cultura) a respeito da inclusão da Orientação Sexual como um tema transversal nos currículos do ensino fundamental:
A discussão sobre a inclusão da temática da sexualidade no currículo das escolas de ensino fundamental e médio vem se intensificando desde a década de 70, provavelmente em função das mudanças comportamentais dos jovens dos anos 60, dos movimentos feministas e de grupos que pregavam o controle da natalidade.
Com diferentes enfoques e ênfases, há registros de discussões e de trabalhos em escolas desde a década de 20. A retomada contemporânea dessa questão deu-se juntamente com os movimentos sociais que se propunham, com a abertura política, repensar o papel da escola e dos conteúdos por ela trabalhados. Mesmo assim não foram muitas as iniciativas tanto na rede pública como na rede privada de ensino. [79]
E assim continua ao descrever os conteúdos de orientação sexual para terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
Os trabalhos já existentes de Orientação Sexual nas séries iniciais do primeiro grau (primeira a quarta séries) indicam que a maioria das questões trazidas pelos alunos tendem a ter um caráter informativo e de esclarecimento sobre a sexualidade. A curiosidade gira em torno da tentativa de compreender o que é o relacionamento sexual, como ele ocorre, as transformações no corpo durante a puberdade, os mecanismos da concepção, gravidez e parto.
A partir da quinta série do ensino fundamental, os questionamentos vão aumentando, exigindo progressivamente a discussão de temas polêmicos, como masturbação, início do relacionamento sexual, homossexualidade, aborto, prostituição, erotismo e pornografia, desempenho sexual, disfunções sexuais, parafilias, gravidez na adolescência, obstáculos na prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. São temas que refletem as preocupações e ansiedades dos jovens, dizem respeito ao que eles veem, leem e ouvem, despertando curiosidade, ou ainda temas que as novelas de TV colocam na ordem do dia.
Questões como mães de aluguel, hermafroditismo, transexualismo, novas tecnologias reprodutivas, por exemplo, são trazidas por meio da veiculação pela mídia, aparecendo então como demanda efetiva de conhecimento e debate.
Neste aspecto, ressaltamos que a implicação do critério etário seja possivelmente uma ferramenta do Estado brasileiro deficiente nas políticas sociais e de saúde, relacionadas com a distribuição de medicamentos, controle de natalidade e mesmo de informações ao público, para evitar a prática sexual deste público, desprezando os números atuais, que não mínguam.
Constatamos, ainda, que a legislação penal há tempos se adequou a situação real da sociedade brasileira diminuindo o limite etário de 16 para 14 anos e, divergentemente do ECA, que se atentou às mudanças sociais, aplicando aos adolescentes (menores entre 12 e 18 anos de idade) a possibilidade de aplicação de medida socioeducativa, pois entende que dos seus atos compreendem, o Código Penal se solidificou no tempo e estabeleceu o parâmetro de idade atual, sem qualquer base real para sua fixação.
Demonstrando seu inconformismo, trata Luiz Flávio Gomes:
Se um adolescente de treze anos pratica relação sexual com uma adolescente da mesma idade, aquele é punido porque (consoante o ECA) entende (ainda que relativamente) o caráter ilícito do fato, é dizer, o sentido ético da atividade sexual; ao mesmo tempo, absurdamente, é punido justamente porque a vítima, da mesma idade, (em razão de uma presunção do legislador de 1940), não entende o sentido ético do ato.[80]
Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de adaptação do Código Penal, não somente à realidade social, mas como também aos outros diplomas legais para se alcançar o resultado proporcionalidade e adequação do tipo penal.
{C}6.2 INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI E DE SUA INTERPRETAÇÃO
Os direitos sociais e fundamentais foram historicamente consagrados pela Constituição Federal e tal como mencionado, são uma garantia de todo o povo brasileiro, indistintamente. Em seu Artigo 5º envolve os direitos e garantias fundamentais, determinando entre eles o princípio corolário da legalidade, da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, os quais inúmeros doutrinadores proclamam violados pela Lei nº 12.015, principalmente em relação à percepção da impossibilidade de relativizar o conceito de vulnerabilidade do Artigo 217-A, do Código Penal.
É claro que estaremos diante de conflito entres princípios orientadores do Direito, logo que demonstramos anteriormente que os adeptos a presunção absoluta defendem também sua aplicação baseados em princípios e garantias constitucionais. Existirá, nesses casos, a prevalência de um em detrimento de outro.
A legalidade é um dos principais princípios derivados da dignidade humana e equivale, de acordo com Capez, à reserva legal: a doutrina, portanto, orienta-se maciçamente no sentido de não haver diferença conceitual entre legalidade e reserva legal. Dissentindo desse entendimento, pensamos que princípio da legalidade é gênero que compreende duas espécies: reserva legal e anterioridade da lei penal.[81]
Assim prevê a Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;[82]
E o Código Penal:
Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Destes conceitos podemos compreender que o princípio da legalidade tem como objetivo a segurança jurídica, protegendo o cidadão de eventual arbitrariedade do ius puniendi do Estado. Todavia, entendemos que a ilegalidade não se trata apenas de punir diante de norma inexistente ou com base em conduta não positivada em lei, mas também se refere às normas equivocadas, ambíguas e de expressões vagas.
Não obstante, os termos que comportem múltiplas interpretações tanto quanto é o termo vulnerabilidade e sua forma de aplicação (absoluta ou relativa) estarão em confronto com o princípio da legalidade, pois demonstram a incerteza e indeterminação da acepção jurídica do vocábulo, não podendo ser terminantemente imposto em prejuízo do acusado.
Observamos os comentários do renomado Fernando Capez sobre o tema:
O princípio da legalidade, no campo penal, corresponde a uma aspiração básica e fundamental do homem, qual seja, a de ter uma proteção contra qualquer forma de tirania e arbítrio dos detentores do exercício do poder, capaz de lhe garantir a convivência em sociedade, sem o risco de ter a sua liberdade cerceada pelo Estado, a não ser nas hipóteses previamente estabelecidas em regras gerais, abstratas e impessoais. (...) Reserva legal impõe também que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com tipos genéricos, demasiadamente abrangentes. O deletério processo de generalização estabelece-se com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento humano e, por conseguinte, aptas a promover a mais completa subversão no sistema de garantias da legalidade. De nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos. (grifos nossos) [83]
Ainda que o termo presunção de violência tenha sido convertido, a inquietação da doutrina e jurisprudência acerca de sua aplicação de forma relativa ou absoluta subsistiu à alteração dos termos. Consequentemente, a solução para a dubiedade da presunção de vulnerabilidade, em concordância ao princípio da legalidade, é a ponderação individual da valoração do conceito, em cada caso concreto, visando atingir a melhor e mais justa decisão, isto é, importa em relativizar o conceito de vulnerabilidade. Seguem neste sentido alguns dos mais recentes casos julgados, vejamos um deles:
Antes de adentrar em sua análise, é necessário recordar que os fatos ocorreram na vigência da Lei nº 12.015/2009, que tornou típica a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, criando a figura do “estupro de vulnerável” – art. 217-A do Código Penal. Da mesma forma, tal norma revogou o art. 224 do Diploma Material, que tratava da presunção de violência quando a vítima era menor de 14 anos.
Assim, ao contrário do entendimento da julgadora singular, a perspectiva dos autos não pode ser examinada sob o prisma da relativização da presunção de violência, pelo que assiste razão ao Ministério Público neste ponto.
No entanto, abre-se nova perspectiva, que passa pela análise do alcance do conceito de vulnerabilidade. Esta não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário, o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades.
Como bem apregoa Guilherme de Souza Nucci, a vulnerabilidade “deve ser compreendida de forma restrita e casuisticamente, tendo como essência a fragilidade e a incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir com a prática do ato sexual”.
E arremata:
“[...] em cumprimento aos princípios norteadores do direito penal, não basta a comprovação da idade para a tipificação do crime de estupro de vulnerável, uma vez que o critério etário não é absoluto. A melhor solução reside na aferição casuística do grau de maturidade sexual e desenvolvimento mental do suposto ofendido, para definir se é ou não vulnerável, aplicando-se a lei de maneira mais justa ao caso concreto.” [84]{C} (grifos nossos)
A doutrina adepta à relativização do conceito de vulnerabilidade aponta ainda que o Artigo 217-A, ao precipitadamente fixar culpa do agente, ignorou a base do Estado democrático de Direito, violando a garantia do contraditório e da ampla defesa, bem como o estado de inocência das pessoas, pois, como dispõe a Constituição Federal, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.{C}[85]{C}
Em homenagem ao princípio do in dubio pro reo, a absolvição deve ser concedida em benefício do réu sempre que não houver elementos de autoria de materialidade do crime suficientes para confirmar sua culpabilidade, após o devido processamento e julgamento do acusado, que, por sua vez, tem o direito de apresentar defesa técnica e de se autodefender da acusação em todo e qualquer caso: os litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.[86]
Quando tratamos a vulnerabilidade de forma absoluta estamos compreendendo a precoce culpabilidade do agente nas hipóteses em que houver relação sexual com menor de 14 anos, sem reserva, com fundamento exclusivo na idade tenra da vítima, sendo desprezadas as teorias de presunção de inocência e a garantidora constitucional oportunidade de produzir prova em seu benefício.
Sobre o tema, acertadamente doutrina o autor Dirley Júnior:
Seria demasiado desatino garantir a regular instauração formal de processo e não se assegurar o contraditório e a ampla defesa àquele que poderá ter a sua liberdade ou o seu bem cerceado; ademais, também não haveria qualquer indicio de razoabilidade e justiça numa decisão quando não se permitiu ao indivíduo às mesmas garantias do contraditório e da ampla defesa.[87]
Teríamos, portanto, a aplicação de responsabilidade objetiva, segundo a qual o acusado responde pelo delito independentemente da prática ser dolosa ou culposa. Não haveria, assim, meios ou defesa ampla, pois constatada a autoria, haveria a antecipada culpabilidade comprovada. E novamente coaduna Capez:
Não pode ser absoluta, sob pena de adoção indevida da responsabilidade objetiva. O dispositivo em questão tem como intuito proteger o menor sem qualquer capacidade de discernimento e com incipiente desenvolvimento orgânico. Se a vítima, a despeito de não ter completado ainda 14 anos, apresenta evolução biológica precoce, bem como maturidade emocional, não há por que impedir a análise do caso concreto de acordo com suas peculiaridades. [88]
A concepção absoluta do termo, neste aspecto, se torna incompatível com a democracia brasileira e com a base principiológica da responsabilidade penal, dado que é inadmissível que não haja verificação ou comprovação da culpa e do dolo na situação fática, bastando os elementos materialidade, autoria e atributo pessoal da vítima.
A garantia da culpabilidade no Direito Penal trata da responsabilização contrária à ideia de responsabilidade objetiva: a culpa se prova por quem acusa e sem ela não há pena – acomodando a máxima nullum crimen sine culpa (não há crime sem culpabilidade). Além do mais, pressupõe a proporcionalidade entre a gravidade do dano e a aplicação da pena. Notamos:
Portanto, considerar o conceito de vulnerabilidade do art. 217-A como absoluto, traz também, uma série de violações aos princípios do contraditório e da ampla defesa, com previsão no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, pois entender desta forma é defender que não caberá prova em contrário por parte do inculpado, no sentido de demonstrar que a realidade objetiva diverge da presumida pelo legislador, principalmente diante do consentimento maduro da adolescente.[89]
Entender de forma diversa, aplicando a responsabilidade objetiva, seria autorizar a afronta pelo Estado aos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, sem mencionar a possível constituição desconforme da família, posto que a presunção em caráter absoluto pode afastar a efetivação dos princípios da paternidade responsável e da harmonia familiar.
O primeiro refere-se ao reconhecimento do homem como pai da criança, enquanto o segundo remete à construção do seio familiar. Os dois, em conjunto, representam a garantia da família e até mesmo, em consonância com o ECA, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Nesta linha de raciocínio, a vulnerabilidade em caráter absoluto põe em risco a estrutura familiar, uma vez que é bastante provável que o agente consciente de seu ato, mas envolvido afetivamente, deixe de assumir a paternidade e eventualmente a construção do lar diante da punição certa e determinada, diga-se de passagem, rígida.
Caso se aplique ao artigo 217-A uma interpretação meramente literal, poder-se-á chegar à absurda hipótese de se considerar como autor do crime de estupro um indivíduo de 18 anos que queira, por meio de casamento, constituir família com a menor de 14 anos que engravidou, ainda que haja o livre consentimento desta.
Não se pode esquecer que o Código Civil, no artigo 1520, permite expressamente o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, em caso de gravidez. [90]
Finalmente, verificamos que a presunção absoluta de vulnerabilidade cria uma proibição à prática de ato sexual pelos menores de 14 anos tidos como vulneráveis, além de generalização incomensurável do discernimento de cada vítima, implicando a precípua culpa ao agente ativo, afrontando os princípios constitucionais mais caros do Direito Penal. Cristalina é, portanto, a necessidade de relativizar o conceito de vulnerabilidade, devendo ser este analisado casuisticamente e concretamente em cada novo fato como medida de resguardar a conquista dos direitos constitucionais fundamentais.
{C}6.3 ERRO DE TIPO INEVITÁVEL
De outro lado, ainda que ao longo do tempo a discussão sobre a presunção de violência absoluta ou relativa ou, agora, no que diz respeito ao conceito de vulnerabilidade tenha persistido, nunca foi ponto de conflito a possibilidade de se afastar a presunção absoluta de violência ou de vulnerabilidade quando, em casos excepcionais, nos defrontarmos com erro de tipo inevitável ao agente ativo.
O erro, em Direito Penal, consiste na falsa percepção da realidade e divide-se em duas modalidades: erro de tipo, presente no Artigo 20, do Código Penal e erro de proibição, esclarecido no Artigo 21, do mesmo diploma legal.
O erro de proibição corresponde ao desconhecimento do agente acerca da ilicitude da conduta praticada. Aqui, o sujeito sabe e entende de sua conduta, mas não sabe que a prática deste ato é ilegal ou ilícita. Já no erro de tipo, que é o objeto de nosso interesse, relaciona-se à ausência ou diminuição da consciência sobre a conduta praticada. Assim, o sujeito faz algo sem compreender que o faz.
O erro de tipo configura-se sobre duas espécies: o Erro de tipo essencial e o acidental. O primeiro recai sobre elementares ou circunstâncias do crime, distanciando a tipicidade subjetiva dolosa. Afasta, portanto, a vontade da prática criminosa.
Em seu turno, o erro te tipo essencial subdivide-se em duas novas categorias: a) Erro de tipo essencial invencível: ocorre quando o erro é instransponível para o homem médio, inevitável pela normal diligência. Afasta dolo e culpa e, em consequência, afasta a própria responsabilidade penal e b) Erro de tipo essencial vencível: é o caso em que o homem médio, utilizando-se de cautela normal exigida não cometeria o erro, resultado de imprudência ou negligência. A conduta não pode ser punida a título de dolo, mas é passível de responsabilidade diante de culpa imprópria.
Já o erro de tipo acidental refere-se à prática dolosa, mas em que há equívoco sobre os aspectos secundários do crime, tais como a pessoa da vítima, sobre o objeto do crime, sobre o nexo causal, entre outros.
Interessa-nos, nestes aspectos, o erro de tipo inevitável, previsto no Artigo 20, do Código Penal:
Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. [91]
No caso do Estupro de Vulnerável, o agente conhece da norma proibitiva, entende que mantém relação sexual ou ato libidinoso com alguém, mas desconhece ou confunde o atributo idade. Logo, aquele que pratica ato sexual com menor de 14 anos pensando ser maior diante de erro sobre elemento constitutivo do tipo, não tem dolo, podendo conduzir a atipicidade do fato ou a desclassificação do tipo.
A configuração do estupro de vulnerável pressupõe, portanto, que o agente conheça da condição legal de vulnerabilidade, pois, do contrário, incidirá em erro de tipo inevitável. Importante mencionarmos que não basta a simples alegação do sujeito ativo, sendo fundamental a análise da compleição física da vítima. Desta forma:
PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ART. 217-A DO CP. ERRO DE TIPO. ART. 20, § 1º, DO CP. MENORIDADE DA VÍTIMA. DESCONHECIMENTO PELO AGENTE. COMPLEIÇÃO FÍSICA E COMPORTAMENTO SOCIAL. PERCEPÇÃO DE MAIOR IDADE. AMPARO EM SATISFATÓRIO CONJUNTO PROBATÓRIO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.
1. A negativa de conhecimento da menoridade da vítima, amparada em satisfatório conjunto probatório demonstrativo de que a compleição física e o comportamento social da vítima inspiravam a percepção de maior idade, caracteriza o erro sobre elementar constitutiva do tipo previsto no artigo 217-A do Código Penal, apto a evidenciar a ausência do dolo necessário à configuração do delito de estupro de vulnerável, quando ausente ameaça ou violência e presente o consentimento da menor. Precedentes deste eg. Tribunal.
2. Não provimento do recurso.
(...) Corroborando a MM. Juíza a quo, o cotejo do laudo pericial e da prova oral colhida em juízo leva à convicção segura de que o apelado não detinha conhecimento da menoridade da vítima, cuja compleição física e comportamento social geravam a percepção de uma garota de maior idade.
Com efeito, o laudo pericial (fls. 10/11) descreve a vítima com 1,70m (um metro e setenta centímetros) de altura e 62 Kg (sessenta e dois quilos); a testemunha S.L.J. declarou que a vítima "chegou a consumir bebida alcoólica e cigarros", "já beijou outros rapazes", "aparentava ter uns 16 anos porque já tinha um corpo avantajado e atitudes de mulher" e que com ela já saiu "para beber e ficou até altas horas da noite" (fl. 123). A testemunha N.M.A. declarou que a vítima "aparentava ser mais velha devido ao seu 'jeito'." (fl. 120). A própria vítima, não obstante ter declarado que "namorou o irmão de 13 (treze) anos do apelado e que seus colegas não achavam que a depoente tinha mais idade", afirmou que "acredita que o acusado não sabia a idade da depoente. A depoente 'sempre teve jeito de menina maior'." (fl. 119/119v). {C}[92]
Temos, então, como consequência e efeito do erro de tipo, a relativização da vulnerabilidade da vítima. Isto porque sempre que o agente estiver em face de circunstância concreta em que desconheça o real estado de menoridade da vítima, não pode ser punido.
Em decorrência deste raciocínio, parte da corrente manifesta à aplicação da vulnerabilidade relativa compreende ainda que, se é verdade que podemos estudar o caso quando frente a um caso de erro de tipo, pode ser também afastada a presunção de vulnerabilidade do menor de 14 anos diante de prova inequívoca do consentimento e maturidade sexual da vítima.
{C}7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O advento da Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009 inovou a legislação penal, alterando o Título VI da Parte Especial, renovando os ultrapassados conceitos reputados aos crimes sexuais nela prevista. O novo Título, sobre a rubrica de Crimes contra a Dignidade Sexual, demonstra o intuito de renovação do longevo Código Penal pelo legislador aos atuais comportamentos da sociedade.
Foi também desígnio do legislador cessar a bastante polêmica controvérsia existente entre doutrinadores e jurisprudência a respeito da aplicação da presunção de violência em casos de crimes cometidos contra vulneráveis, em especial quando se tratava de casos de abusos sexuais em face de menores de 14 anos. Como vimos, havia inúmeros desentendimentos quando da aplicação da violência ficta, em que por certas vezes aplicava-se a presunção absoluta e em outros casos decretava-se a presunção relativa, mas que se firmou, ao final, a corrente majoritária tendente à relativização da presunção de violência.
Pois bem, optou então o legislador por abolir a figura da presunção de violência prevista no revogado Artigo 224, do Código Penal. Todavia, como restou claro durante o discorrer do trabalho, aniquilar a presunção de violência não fez findar o debate entre doutrina e jurisprudência, pois apenas substitui este por outro que gerou também a mesma polêmica quanto à forma de aplicação da presunção, se absoluta ou relativa.
Nesta substituição, passou a intensificar o desentendimento no tocante à presunção absoluta ou relativa do conceito de vulnerabilidade inserido pela nova Lei. A vulnerabilidade no Estupro de Vulnerável, tal como visto, direciona-se àqueles que, diante de sua fragilidade ou incapacidade para compreender ou se defender da prática forçada ou não do ato sexual. A vulnerabilidade é característica do menor de 14 anos, do enfermo ou deficiente mental e, ainda, daquele que por qualquer outra causa não possa oferecer defesa, segundo o tipo penal do Artigo 217-A.
Embasada na defesa dos interesses protegidos integralmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, consideramos no desdobramento deste trabalho que, diante da vulnerabilidade atribuída aos menores de 14 anos, a corrente favorável à presunção absoluta do conceito direciona-se ao entendimento de que o critério etário adotado pelo legislador penal é objetivo e não dá margem a novas interpretações, pois tem o propósito fundamental de proteger e priorizar o desenvolvimento físico e psíquico das crianças para garantir uma vida adulta saudável.
Em contrapartida, entende a corrente da relativização da vulnerabilidade que a presunção absoluta é, senão, uma afronta aos princípios mais precisos assegurados pela Constituição Federal, quais sejam, do contraditório e ampla defesa, da presunção de inocência, que fundamentam a dignidade da pessoa humana.
Neste conflito aparente de princípios, notamos que a doutrina e jurisprudência majoritária têm cedido à aplicação relativa do conceito de vulnerabilidade, fundamentando-se no princípio da adequação social, que acompanha os constantes desenvolvimentos políticos, econômicos e culturais da sociedade e da responsabilidade subjetiva, almejada pelo Direito Penal.
O Direito, como bem sabemos, não é uma ciência precisa e deve se adequar às realidades sociais, incessantemente modificadas com o tempo e também aos outros diplomas legais, buscando a uníssona interpretação de definições jurídicas. Tal qual mencionamos, o Direito Penal se mostra retrógrado e não acompanhou, inclusive, as alterações estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, oportunidade que desperdiçou de equiparar as legislações.
Consoante os argumentos apontados por cada corrente, com efeito, damos razão a aplicabilidade da vulnerabilidade em caráter relativo, posto que não seria razoável considerar equiparar toda criança e adolescente considerando que tenham o mesmo desenvolvimento mental, dado que a construção de comportamento tem influência de inúmeros fatores internos, relacionados ao plano físico-biológico, e de fatores externos, tais como o círculo de amizades, as informações recebidas pela mídia, entre outros.
Assim, verificamos que a capacidade de compreensão sobre o ato sexual é estritamente relacionada com meio social e a evolução biológica individual da criança. Logo, não poderíamos aplicar a vulnerabilidade como sendo uma regra para todos os menores de 14 anos, devendo ser sua fragilidade mensurada em cada caso concreto. Concordamos ainda, que se isto não for verdade, tratar-se-ia de imputação de responsabilidade objetiva ao sujeito ativo, que tanto repulsa o nosso ordenamento jurídico atual.
Corroboramos, portanto, a possibilidade de relativização do critério etário no Estupro de Vulnerável, ou seja, em caráter juris tantum, admitindo a produção de provas que demonstre a plena capacidade de compreensão da vítima.
Finalmente, concluímos que a Lei nº 12.015 de 2009 trouxe grandes avanços para o Direito Penal e que está em fase de maduração e ainda será objeto de constante interesse doutrinário e jurisprudencial, cabendo ao legislador observar e conduzir mudanças para aperfeiçoar o tipo penal.
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