VII. Explicitando pressupostos teóricos na contramão dos tabús
As observações expostas a seguir constituem um esforço talvez redundante, mas que julgo relevante, porque pode facilitar a compreensão de alguns aspectos dos programas de segurança pública descritos acima. Esses aspectos, ainda que ocupem posições lógicas estruturantes dos argumentos e das propostas, têm permanecido latentes, nos debates públicos. Poderiam escapar, portanto, aos leitores menos atentos. Vale a pena explicitá-los.
(1) A matriz conceitual com que operam essas políticas refuta, tacitamente, a bipolaridade "repressão dos efeitos" versus "tratamento das causas da violência". De um modo geral, salvo honrosas exceções, essa bipolaridade tem sido evocada para reduzir a uma caricatura simplória os significados das funções repressivas –funções, vale acrescentar, necessariamente implicadas no trabalho policial (1.1). Além disso, tem servido a uma definição equivocada, deslocada, para efeito das políticas públicas, da categoria "causas da violência"(1.2). Por fim, tem sustentado a afirmação de uma falsa contradição(1.3).
(1.1) Por razões perfeitamente compreensíveis, a palavra repressão provoca repulsa generalizada em todos os que resistiram à ditadura e lutaram pela democracia, no Brasil. O sentimento libertário rejeita a palavra e o espírito sombrio que a cerca. Por isso, quando discutimos segurança, todos os democratas nos apressamos a qualificá-la: desejamos uma segurança "cidadã", "humanista", orientada para o respeito aos direitos humanos e inspirada pelos direitos civis. Tudo isso é muito bom e serve para distinguir os democratas daqueles que defendem a brutalidade policial, a truculência do aparato de segurança, a tortura, o extermínio e a barbárie. No entanto, já é tempo de nos debruçarmos com rigor intelectual sobre a categoria repressão para ultrapassar as simplificações grosseiras, que servem a propósitos ideológicos e políticos, mas apenas obstam o aprofundamento da reflexão sobre a problemática da segurança, do controle social e do poder.
Iniciemos por um exercício semântico elementar: reprimir significa, sim, limitar a liberdade; todavia, que democrata se oporia a que fosse reprimida a ação contrária aos direitos humanos e civis? Deveria ser tolerada, em nome da repulsa à repressão, a liberdade de matar, torturar, humilhar, agredir arbitrariamente, violentar?
Pelas mesmas razões, o desrespeito ou a transgressão às leis não poderia ser aceito, se a legislação, em sua dimensão matricial, afirma direitos humanos e civis, e expressa um acordo institucional em torno de princípios legítimos. Nesse caso, tolerar a transgressão legal significaria admitir a violação de direitos e, quando no governo, tergiversar quanto à responsabilidade de fazer cumprir a lei implicaria trair o dever ético-político com a sociedade, celebrado no contrato constitucional, e implicaria também trair os interesses políticos históricos das classes subalternas, como veremos a seguir.
Se houver contradições entre a legislação específica e os princípios constitucionais, a primeira traindo ou limitando os compromissos democráticos dos segundos, ainda assim dever-se-iam considerar a inconveniência da mera transgressão e as vantagens da adoção de procedimentos políticos, voltados para a mudança das leis mas conformes à legalidade. Se uma Constituição democrática vigora, em cujos marcos se possam promover as mudanças que, progressivamente, removam suas eventuais limitações e contradições, a aplicação das leis constitui garantia de respeito ao contrato social, expresso na edificação das instituições jurídico-políticas. Zelar pelo cumprimento do pacto é dever ético-político dos agentes sociais que aceitam o jogo ditado pelas instituições que o traduzem. Além disso, é condição de avanço, rumo à radicalização dos compromissos democráticos, inibidos por resistências antepostas à afirmação plena dos princípios retores de uma Constituição que se proclama matriz da justiça e da liberdade. Em outras palavras, quando os marcos legais celebram a equidade e a liberdade como valores matriciais, até mesmo do ponto de vista estritamente utilitário, passa a ser do interesse dos grupos sociais subalternos, oprimidos e explorados, a defesa da institucionalidade jurídico-política, uma vez que o avanço progressivo em direção ao cumprimento das metas constitucionais (isto é, dos fins sócio-econômico-políticos contemplados pela enunciação dos valores axiais) representa a realização mesma do projeto de radicalização democrática, compatível com o que, grosseiramente, poder-se-ia definir como a vocação histórica dos grupos subalternos. Ou seja, estabelecidos pelo contrato constitucional os princípios da equidade e da liberdade, como regentes das regras do jogo político e articuladores dos códigos legais vigentes, os limites impostos à socialização da riqueza e do poder afirmam-se como contradições que ferem os princípios e exigem superação, o que confere ao processo histórico extraordinário vigor reformista, incorporador, democratizante, ainda que gradualista –sem prejuízo dos recuos naturais em uma dinâmica viva e tensa.
Portanto, o cumprimento do pacto constitucional é dever dos agentes políticos que admitem participar do jogo dos poderes constituídos, mas é também, e sobretudo, do interesse histórico das classes e dos grupos subalternos. Conseqüentemente, para os agentes políticos que pretendem representar essas classes e grupos, é um imperativo -tanto ético quanto pragmático- zelar pelo cumprimento desse pacto, o que implica zelar pelo respeito à legalidade vigente. Mudar as leis é função dos legisladores eleitos e missão da luta política; fazer cumpri-las é responsabilidade do governante, particularmente dos gestores da segurança pública, aos quais não cabem decisões sobre que leis deveriam ou não ser cumpridas. Por isso, o gestor que, por exemplo, se declarasse disposto a tolerar a prática do crime contra o patrimônio, entendida como expressão da luta de classes ou como expropriação da burguesia, faria melhor se renunciasse ao cargo, até mesmo porque, em permanecendo, exporia o partido no poder a intervenção legítima e legal, imediata e enérgica. A desobediência civil já cumpriu papéis históricos positivos da maior importância e, certamente, continuará a fazê-lo, mesmo em sociedades regidas por Constituições legítimas e democráticas, uma vez que haverá sempre diferenças significativas entre os compromissos constitucionais de fundo, quanto a princípios, e a legislação infra-constitucional, assim como a própria Carta Magna pode apresentar contradições internas. Haverá, portanto, sempre espaço para tensões, conflitos, disputas e pressões por ajustes e redefinições, mesmo quanto aos princípios axiais, sujeitos a revisões históricas. Contudo, a desobediência civil não é, definitivamente, função do gestor responsável pelo controle da força do Estado em benefício da aplicação da lei.
Outra esfera semântico-conceitual nos conduz à discussão sobre repressão como represamento de energias, forças, movimentos -individuais, subjetivos e coletivos-, e como controle social. No início do século XX, Sigmund Freud, em seu clássico ensaio "Mal-Estar na Civilização", referia-se ao caráter eminentemente repressor do processo civilizador, que afastava os humanos de sua natureza animal, na medida em que inibia seus impulsos primitivos, canalizando suas pulsões e criando mecanismos de sublimação, compatíveis com a assimilação progressiva e a difusão das disciplinas necessárias à vida coletiva pacífica. A cultura e a sociedade seriam tributárias da repressão. Em meados do século XX, em sua obra-prima, "Estruturas Elementares do Parentesco", Claude Lévi-Strauss reescreveu os fundamentos da antropologia, redefinindo o papel da interdição, mas reiterando seu papel estratégico na gênese da cultura e da sociabilidade. Ao longo da segunda metade do mesmo século, Norbert Elias descreveu o processo civilizatório como o progressivo deslocamento das armas e dos meios de força para o Estado, que se constituiria, concentrando-os com exclusividade. Nesse contexto, a repressão emerge como a atividade estatal, por excelência, correspondente à inibição da violência generalizada e difusa, cujas implicações fragmentárias impediam o desenvolvimento da economia e a expansão do controle democrático sobre os poderes, nas mais diversas esferas. A prática dos exércitos feudais e das milícias privadas dificilmente poderia ser confundida com o sentido moderno da categoria repressão, pois representava a afirmação de uma força segmentar, caução de um poder também segmentar sobre outra força segmentar. Quando os exércitos feudais e as milícias privadas cedem lugar, na Inglaterra, no início do século XVIII, ao primeiro embrião do que mais tarde denominaríamos força policial, a sociedade amplia o exercício da participação cívica e política, na mesma medida em que a lei se universaliza, em sua aplicação, e se liberta dos despotismos feudais e absolutista, em sua elaboração. Quando as primeiras experiências timidamente democráticas se instalam, na Europa, com as revoluções burguesas, a repressão assume seu sentido contemporâneo, associado à universalidade da lei e à legitimidade institucional do poder, cujos sentidos têm se aproximado, progressivamente, dos princípios que efetivamente regem as idéias de equidade e liberdade, graças a séculos de lutas sociais dos trabalhadores oprimidos.
Outras duas vertentes relevantes, nesse debate multissecular, remetem a Lênin e Foucault. O primeiro, enquanto autor de "O Estado e a Revolução", cuja tese central postula o caráter inexoravelmente ditatorial, parcial e classista de toda formação de poder, de qualquer regime político, de toda constelação estatal. As variações institucionais não passariam de manifestações formais distintas de uma mesma essência: a ditadura de uma classe sobre outras. Observe-se que essa tese já se esboçara em "A Questão Judaica", onde Marx denunciava por ilusória e mascaradora a igualdade formal, instaurada pela institucionalidade burguesa. Nesse quadro de referência, a lei e sua aplicação, ou seja, toda repressão -mesmo aquela orientada para a promoção do respeito às leis- representaria uma intervenção de força em benefício dos interesses de determinado domínio econômico. A ditadura do proletariado constituiria mais uma variante da mesma estrutura, ainda que Lênin a defendesse. Portanto, antes do tempo escatológico da utopia, em que o Estado deixaria de existir com o desaparecimento das classes, só haveria ditaduras. Aliás, o líder revolucionário soviético defendia a ditadura até mesmo em decorrência de sua suposta inevitabilidade: dada a premissa de que todo Estado, independentemente das aparências, seria ditatorial, preferia a ditadura dos proletários. Deduz-se que um leninista tardio, cultor da ditadura "revolucionária", considere o Estado democrático de nossos dias o império burguês sob disfarce constitucional e interprete a defesa das leis -vale dizer, a repressão policial legal- como o exercício armado e hostil do domínio de classe. Esse militante não admitiria a participação política enquanto envolvimento com as instituições burguesas, muito menos governar sob a égide da legalidade burguesa, exercício que seria identificado com a gerência do domínio burguês. Nesse contexto, para esse agente político revolucionário, segurança pública seria o império, por excelência, da ditadura burguesa, assim como as polícias seriam reduzidas a braços armados dessa ditadura. Não é preciso dizer o que significaria "repressão", nesse universo ideológico. Esse militante só admitiria a participação como a oportunidade para sabotar o domínio burguês e preparar o assalto insurrecional ao "Palácio de Inverno".
O líder soviético produziu obras de alto nível, como "O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia". Seria injusto julgar todo seu legado intelectual apenas por essa tese, cujo primarismo a experiência histórica do século XX incumbiu-se de revelar. A própria tradição marxista, pelo menos desde Gramsci, foi pródiga em contribuições sensíveis à complexidade da política e do Estado.
Outra referência inescapável, na matéria de que nos ocupamos, é Michel Foucault, cuja inspiração libertária contrasta com o viés assumidamente autoritário de Lênin. No entanto, ambos têm em comum a radicalidade simplificadora do tratamento crítico que conferem à disciplina estatal. Foucault concorda com o diagnóstico generalizante de Lênin, mas lhe confere significado cético, vale dizer, incorpora o Estado proletário ao repertório dos exemplos de tirania a repelir. Em outras palavras, o que causa repugnância a Foucault não é a natureza burguesa do domínio, é o domínio enquanto prática de poder. O autor de "As Palavras e as Coisas" e seus epígonos reagiriam à minha observação: não se trata de causar repugnância, diriam, mas de figurar no mapa da genealogia crítica. Ou seja, Foucault não é moralista, não pretende formular juízos de valor, não manifesta repulsa, nem hierarquiza regimes. Apenas descreve os jogos de poder, pervasivos e ubíquos. A repressão policial legal -respeitosa dos direitos humanos e civis, a serviço do Estado Democrático de Direito e de uma Constituição legitimamente promulgada, inspirada nos princípios da equidade e da liberdade- seria apenas uma variante na tábua de possibilidades e combinações, em que o mestre francês examinava as constelações dos poderes. Nesse sentido, o ceticismo niilista foucaultiano nivela todas as práticas policiais, indiferente às qualificações que se reportam à legalidade dessas práticas, à sua legitimidade ou conformidade com direitos, etc..., assim como nivela os dispositivos policiais aos médicos, jurídicos, acadêmicos, políticos, filológico-gramaticais e penitenciários. A partir desse quadro conceitual, soa inteiramente despropositado e até bizarro discutir políticas de segurança, na expectativa de que fariam alguma diferença significativa, ainda que dados empíricos revelassem a diferença entre seus respectivos impactos concretos, salvando vidas ou aumentando o número de mortes.
Por outro lado, a causticidade crítica de Foucault tem o mérito de nos alertar para o equívoco do dualismo que pensa a temática da repressão no contexto da oposição entre o suposto controle exercido pelo Estado e a suposta passividade individual ou coletiva, essa espécie de vazio que sujeita o objeto do controle à manipulação, ao cerceamento, à canalização ou à cooptação. Do ponto de vista arqueológico-genealógico foucaultiano, o que há são poderes confrontando-se, em espaços diversos e em direções variadas. A disciplina que caracteriza a sociedade moderna, segundo a teoria de Foucault, não corresponde à hipertrofia unilateral do controle panóptico do Leviatã, mas ao êxito de determinada modulação dos poderes, em arranjos que articulam fruições, gratificações e exercícios ampliados de micro-poderes, estimulados por determinadas constelações institucionais. Ou seja, se analisasse políticas de segurança, o mestre da genealogia pós-nietzscheana provavelmente se deteria na descrição dos jogos de poder estimulados pelos distintos métodos de policiamento e pelas diferentes ações implementadas, interpretando o crescimento do tráfico armado e a intensificação da violência criminal como afluentes do aparato repressivo do Estado. Ainda que extremamente aguda, a abordagem foucaultiana não ajuda a construir alternativas positivas, prospectivas e reformistas, no interior do Estado Democrático de Direito, dada sua concepção niveladora das distinções institucionais, mas certamente ajuda a evitar o maniqueísmo de tipo leninista, por levar às últimas conseqüências o reducionismo político adotado por Lênin e incluir o projeto ditatorial soviético no alvo da crítica.
Resta considerar o tratamento conferido à categoria repressão pelas tradições liberais, nesse breve inventário, que está longe de esgotar a apresentação dos paradigmas relevantes. No âmbito do liberalismo, repressão corresponde à ação do Estado contra a liberdade individual, inibindo a manifestação de opiniões, a organização cívica, a participação política, ou regulamentando o mercado, ou invadindo o espaço privado, abrigo doméstico da intimidade, reduto do cultivo da subjetividade e da experiência que alguns críticos denominariam solipsismo narcísico. Portanto, é nesse contexto categorial que "repressão" assume seu sentido mais usual de imposição, pela força, da vontade do Estado, ou de contenção, sempre pelo emprego da força, de ações individuais ou coletivas. É também nesse contexto que ganham sentido as distinções dos atos repressivos, segundo sua conformidade ou incompatibilidade com leis, direitos ou princípios, definindo-os como legítimos ou ilegítimos.
Essas considerações conduzem a uma conclusão: no campo retórico-ideológico das esquerdas, as referências unilateralmente negativas à categoria "repressão" derivam sua justa motivação da história concreta da repressão -com viés étnico e de classe, e com clara orientação política- praticada pelas polícias brasileiras, especialmente durante o período ditatorial. Essas referências encontram sustentação conceitual, quase sempre, nas tradições liberais, sem que haja, entretanto, consciência dessa dívida teórica e sem que se extraiam dessa fonte algumas implicações positivas, particularmente aquelas que propiciariam a distinção entre a repressão ilegítima, negativa, contra a qual devemos nos insurgir, e a legítima, positiva e necessária. Acredito que a fonte seja liberal, porque as referências unilateralmente críticas evocam, de um modo tácito, a possibilidade de uma ordem social edificada em bases democráticas, o que as distanciam das teses leninistas ou foucaultianas. Lamentavelmente, o senso comum das esquerdas tende, com freqüência, a repelir genericamente a "repressão", como se toda repressão fosse negativa e criticável (ética, social e politicamente), e como se fosse possível preservar a ordem democrática sem controle, polícia e repressão. O trabalho policial é visto como essencialmente sujo e repugnante, com o que se desestimulam e menosprezam os investimentos reflexivos e políticos na área da segurança, e se estigmatizam os policiais.
Já é tempo de olhar nos olhos a realidade da sociedade democrática, assumindo, no campo das esquerdas, nossos compromissos permanentes com sua realização, seu desenvolvimento e com a radicalização das conquistas que proporciona. Já é tempo de reconhecer que conviveremos com leis, limites e polícias, em benefício mesmo dos direitos, das liberdades e das conquistas sociais. Portanto, é hora de assumirmos com todas as letras que há uma dimensão positiva e indispensável nas tarefas legítimas de repressão e controle. Que elas podem e devem se dar em conformidade com o respeito aos direitos humanos e que, mais do que isso, constituem, na verdade, garantia prática de sua vigência histórica. Qualquer política séria e consistente de segurança pública envolve essa dimensão positiva da repressão, tem de preparar seu emprego, compreendê-la e valorizar sua qualidade legal e legítima. Tem de trabalhar o gradiente do uso da força e entender o papel do uso comedido da força na construção da paz e na manutenção da ordem pública democrática. As ambigüidades e hesitações de militantes e gestores de esquerda, nessa matéria, concorrem para a negação dos princípios que supostamente estariam defendendo. No vácuo de uma política correta, democrática, legítima, orientada pelo respeito aos direitos, tendem a prosperar a repressão ilegítima –aquela que desrespeita os direitos humanos-, a brutalidade policial, a violência criminal e a barbárie.
O medo da palavra-tabu "repressão" e os rituais discursivos celebrizados nas liturgias políticas da esquerda envolvem a recusa da expressão "segurança pública", que só é admitida nos planos de governo, isto é, só é incorporada como temática legítima ou preocupação pertinente, positivamente, quando acompanhada por um adjetivo que exorcize a referência tácita à dimensão repressiva envolvida nas funções policiais. Os adjetivos mais comuns são "cidadã", "democrática", "humanista". A suposição implícita é que "segurança cidadã" seja aquela da qual se possa falar sem vergonha e culpa, porque o qualificativo "cidadã" limpa a sujeira semântica da "segurança", preservando-lhe os sentidos sociais, positivos, preventivos, liberando-a de qualquer associação à "repressão". Por isso, não costuma haver planos de segurança dos candidatos de esquerda aos governos; há, sim, planos de segurança cidadã.
Depois de tudo que escrevi sobre repressão, recuperando seu valor positivo (leitor, imagine o ato que reprime a violência arbitrária contra um inocente, salvando-lhe a vida, e tome a grandeza, a generosidade, o compromisso que esse gesto tem com a liberdade e a justiça como o modelo ideal do que chamo dimensão positiva da repressão), acredito que se compreendam as razões pelas quais considero equivocado e contraproducente esse pudor que só admite segurança adjetivando-a. Defendo a tese de que, ao contrário, o correto seria assumir sem anestesia, sem analgésico, sem pudor e tempero o compromisso político com a segurança pública, integrando nessa expressão todas as dimensões pertinentes, inclusive a repressão, enquanto legítima e conforme à defesa dos direitos humanos. Essa a novidade política e esse o movimento criativo e arrojado que nos credencia a dirigir, politicamente, a sociedade, também nessa área decisiva. Não há qualquer chance de que uma força conquiste a hegemonia sem que se credencie a assumir a liderança na condução do processo de construção da paz e da ordem pública democrática, por métodos legais e legítimos. Nós é que temos de re-significar "segurança" e "repressão", na prática, nos programas e nos discursos, pois os novos significados que lhes atribuímos são aqueles para os quais reivindicamos o reconhecimento do conjunto da sociedade como os únicos pertinentes e adequados ao Estado Democrático de Direito. Que os adversários da democracia qualifiquem segurança como truculência. Para nós, segurança significa estabilidade de expectativas positivas, compatíveis com a ordem democrática e a cidadania, envolvendo, portanto, múltiplas esferas formadoras da qualidade de vida, cuja definição subsume dignidade e respeito à justiça, à liberdade e aos direitos humanos.
(1.2) É falso opor efeitos a causas da violência, quando se trata de elaborar políticas de segurança, sempre que essa dicotomia estiver a serviço do privilégio das causas, especialmente quando essas últimas remeterem a fatores estruturais. Simplesmente porque, além do fato de que a controvérsia científica é e permanecerá inconclusa, reaberta ante cada pesquisa, no caso da violência criminal as possíveis condições determinantes ou facilitadoras apenas cumprem suas eventuais funções criminogênicas através da mediação de dinâmicas bastante específicas, tópicas e contingentes, modeladas pelos respectivos contextos e variáveis com eles. Reformas estruturais não só exigem longo tempo de maturação e apenas produzem resultados a longo prazo, como podem ser promovidas sem que cessem seus supostos efeitos, desde que se autonomizem as mediações. Políticas preventivas de segurança têm de focalizar essas mediações, as quais constituem fontes que geram as dinâmicas em cujo âmbito emergem as manifestações da violência.
Uma metáfora exemplifica meu argumento: para prevenir incêndios, é indispensável cuidar das condições estruturais de uma casa, da fundação ao acabamento estético. É preciso, por exemplo, que o sistema hidráulico não prejudique o cabeamento elétrico. No entanto, engenheiros e arquitetos estarão imunes a toda culpa se o morador esquecer uma janela aberta e o vento balançar uma luminária suspensa, provocando um curto circuito e o incêndio -prevenido por tantas medidas cautelares, durante as obras. O gestor da segurança, além de zelar pela qualidade da obra, advertindo seus responsáveis e valorizando suas técnicas preventivas, tem de operar como o observador capaz de diagnosticar o risco que advém do gesto contingente do morador, antecipando-o e o evitando, ou interceptando suas conseqüências. No limite, tem de ser o bombeiro.
A especificidade das políticas sociais preventivas, na área da segurança, está em sua capacidade de gerar efeitos imediatos, o que depende de sua aptidão para identificar fontes geradoras dos problemas e de sua competência em interceptar as dinâmicas que produzem a violência. Para reduzir a violência, as causas que importam decisivamente, aquelas sobre as quais é necessário incidir, imediatamente, são as fontes das dinâmicas em cujo movimento se produz a violência, não são os fatores estruturais. O caso do tráfico de armas e drogas -fundamental, hoje, no Brasil- é bastante peculiar, uma vez que tem produzido uma singular superposição entre traços estruturais, traços contingentes, mediações culturais e dinâmicas muito particulares daquilo que se poderia denominar a política criminosa de recrutamento dos jovens. As unidades II e III discutem essa questão, extraindo as conseqüências pertinentes.
(1.3) É indispensável e urgente reformar as estruturas sociais, em benefício da justiça social, impondo uma inflexão nas desigualdades, reduzindo a miséria, expandindo a integração à cidadania e radicalizando a democracia, em todos os níveis. É igualmente indispensável e urgente interceptar as dinâmicas geradoras da violência, para salvar vidas, hoje. As duas metas são imprescindíveis e absolutamente necessárias, mesmo que a primeira não implicasse a produção dos efeitos visados pela segunda –ponto em torno do qual há forte controvérsia na comunidade acadêmica. Portanto, é inútil perder tempo discutindo se a primeira e a segunda são interdependentes ou autônomas. É preciso que o poder público se empenhe no cumprimento de ambas as metas, ao mesmo tempo e com a mesma energia. Nada mais falso, portanto, do que supô-las mutuamente excludentes ou contraditórias entre si. Mais uma vez cabe destacar o caso do tráfico de armas e drogas, para cujo enfrentamento esse duplo investimento é crucial.
(2) O investimento da qualificação e reforma das polícias é fundamental, valorizando-as, revigorando suas lideranças saudáveis, estimulando seu comprometimento com o trabalho preventivo, com os direitos humanos, apoiando sua presença interativa e dialógica nas comunidades, e, na esfera municipal, solicitando seu apoio permanente. Para que intervenções preventivas logrem êxito, freqüentemente, têm de ser acompanhadas por iniciativas policiais que garantam, por exemplo, a liberação dos territórios, quando eventualmente estiverem sob domínio de grupos armados. O poder público não pode permitir que espaços sociais sejam subtraídos à vigência do Estado Democrático de Direito. Todos os exemplos conhecidos de sucesso exigiram a colaboração estreita entre ações policiais qualificadas e intervenções sociais focalizadas.
Por essa razão, até mesmo um programa municipal deve ser construído em diálogo com as instituições policiais e em parceria com elas. O recrutamento dos jovens por fontes positivas que os atraiam para a sociabilidade pacífica precisa vir acompanhado da sinalização bem clara dos limites com que se chocarão, caso optem pela adesão às dinâmicas criminais e pelas práticas violentas. Os limites são estipulados pela legalidade, que garante a liberdade de cada indivíduo ante a eventual ameaça de alguma força arbitrária que pretenda violá-la.
(3) A segunda suposição consagrada no senso comum politizado -e subvertida nos programas de segurança pública progressistas comentados a seguir- é aquela segundo a qual a violência, sobretudo a violência criminal é filha bastarda da miséria e da desigualdade. Esse diagnóstico torna tudo muito fácil, porque reforça a crença de que a fonte única do mal é o capitalismo e, em especial, sua versão mais perversa, o neoliberalismo. O raciocínio permite que renunciemos a toda responsabilidade na matéria e fortalece a luta maior, ampliando o apoio popular à proposta de transformação social. Nossas convicções se revigoram e as propostas permitem síntese unificada, sob a bandeira única do combate ao neoliberalismo. Infeliz ou felizmente, o mundo social é bem mais complicado.
Os estados brasileiros mais pobres não são os mais violentos. Os países mais miseráveis não são, necessariamente, os mais violentos. Sociedades profundamente desiguais nem sempre são violentas. Os resultados dos estudos científicos realizados nas sociedades ocidentais variam e, com freqüência, se contradizem. Minha convicção pessoal é a seguinte: a miséria e a desigualdade são extremamente importantes, no Brasil, como fatores criminogênicos, apenas na medida em que incidem sobre esses fatores determinadas mediações culturais, cujo papel é decisivo. A reação criminal e, especialmente, a reação criminal violenta não representam uma resposta natural, universal, nem correspondem a uma solução lógico-racional, ideologicamente tematizada. Essa reação só se apresenta como possibilidade real quando incorporada ao repertório inteligível e valorizado de práticas de um grupo social, ou seja, quando culturalmente acessível e moralmente assimilada, no universo de referências simbólicas e afetivas, e nos códigos morais de determinados grupos e segmentos etários. A violência, como todas as práticas humanas experimentadas na vida social, é aprendida e ensinada, transmitida pela correia de relações, no âmbito de determinados dispositivos de subjetivação que organizam saberes populares, regras morais específicas, constelações psicológicas correspondentes, estruturas locais de micro-poderes, hierarquias comunitárias, valores, símbolos e linguagens compatíveis com o exercício de determinados procedimentos e métodos de ação. Ser capturado por essa teia psico-moral-simbólico-político-prática requer algumas predisposições, para as quais, a meu juízo, a fome de existir, de ser acolhido, reconhecido e valorizado, como pessoa singular e ser humano, é mais funda, radical, sentida e impactante, mais capaz de sensibilizar os agentes -ditando-lhes cursos de ação e adesões a configurações culturais e morais alternativas- do que a fome física, ainda que essa seja, evidentemente, de grande importância, em todos os níveis –que não paire qualquer dúvida quanto a esse último ponto, para que não se reduza minha posição a um idealismo simplório.
Por isso, saciar a fome de existir é imprescindível e urgente. Garantir visibilidade como ser humano requer proporcionar um olhar generoso que devolva ao outro a humanidade que só a relação e o reconhecimento podem proporcionar. Vale insistir: um ser humano não se identifica como tal sem a mediação do olhar alheio, do reconhecimento do outro, sem a relação que acolhe a alteridade, valorizando-a. Essa a matriz de qualquer intervenção que se credencie a competir com as fontes de recrutamento da juventude para práticas criminosas e modelos de autoconstituição subjetiva compatíveis com a experiência da violência. Essa a razão profunda para a abordagem sugerida, por exemplo, pelo programa de segurança municipal de Porto Alegre, referido acima, voltada para a disputa por cada destino individual (menino a menino) e para a competição com as fontes negativas de recrutamento dos jovens, através da constituição de fontes de recrutamento positivas.
A visão antropológica que proponho parte do caráter aprendido da violência, desnaturalizando-a, e se indaga sobre os mecanismos e instrumentos dessa educação para o crime, dessa formação para a violência, dessa anti-Paidéia, dessa Bildung perversa, dessa organização de carreiras marginais que visam o mercado clandestino. Os meninos e as meninas não caem no abismo, não são atraídos pelo vazio, assim como as práticas violentas e criminosas não são o avesso do mundo da ordem, da sociabilidade, da cultura que reconhecemos. Há conteúdo no que nossas metáforas denominam "abismo", "vazio", "avesso". Para mudar essas dinâmicas é preciso compreender sua complexidade, sua positividade sociológica, isto é, suas regras próprias de funcionamento, sua lógica específica, seus valores. O mundo que pensamos como o avesso da ordem tem densidade e apresenta vantagens comparativas, na competição com o mundo da ordem, não só por conta das inegáveis carências e injustiças desse último, mas também em razão de suas qualidades intrínsecas -qualidades que consideramos perversas e destrutivas, que tenderão a condenar esses jovens à morte precoce e estúpida, mas que apresentam atrativos e prometem vantagens para os jovens. Se não compreendermos essa "positividade", não entenderemos o funcionamento do universo com o qual competimos.
Portanto, a exclusão da cidadania, o empobrecimento provocado pelas políticas neoliberais, o aprofundamento da desigualdade são fatores da maior relevância, mas apenas se traduzem em mais violência pela mediação de determinadas condições culturais. Retomando a tese exposta no item anterior (1.3), é imperioso e urgente mudar esse quadro, por todas as razões imagináveis e até mesmo para reduzir a violência. Contudo, esse efeito só adviria se, além dessas mudanças estruturais, houvesse a interceptação das dinâmicas geradas nas fontes mais imediatamente vinculadas às práticas da violência, inscritas em sua esfera específica de realidade. Assim como poderíamos ter, se me é perdoado o contrafactual, o contexto econômico de carências e desigualdades sem a violência criminal que conhecemos, também poderíamos ter a redução das carências e desigualdades com a permanência e a expansão da violência criminal. As redes de condicionamentos recíprocos ultrapassa e transgride a lógica da causalidade linear. A centralidade da mediação desloca nosso problema para uma dimensão de complexidade superior, atravessada por múltiplas linhas de força e temporalidades. Por isso, todo programa consistente de segurança pública não pode furtar-se a trabalhar com mediações, ao nível do diagnóstico e da terapia.
(4) O terceiro tópico importante, nesse inventário de intervenções tacitamente questionadoras, diz respeito à tese tradicional sobre a importância do emprego como vetor de integração ao mercado e à sociedade. Esse ponto também já foi discutido acima, mas merece aprofundamento. Não é demais repetir, sublinhando a ênfase: os jovens pobres nem sempre estão interessados numa integração subalterna ao mercado, nem sempre estão dipostos a reproduzir o itinerário de fracassos econômicos de seus pais, sua trajetória de derrotas, sua biografia de infortúnios, tanto esforço sem recompensa. Como disse, anteriormente, nem sempre, esses jovens, são sensíveis a uma interpelação voltada para fazê-los mecânicos de nossos carros, pintores de nossas paredes, engraxates de nossos sapatos. Vale reiterar: os jovens pobres querem o mesmo que os filhos da elite e das camadas médias. Querem internet, tecnologia sofisticada, computador, mídia, televisão, cinema, teatro, fotografia, artes, cultura, música, dança e esportes. Se pensarmos em capacitação e emprego, trabalho e renda, temos de estar preparados para ouvir, para entrar em sintonia com o desejo dos jovens pobres das vilas e periferias, com suas fantasias, com suas linguagens, ou não seremos capazes de capturar seu imaginário e de promover a integração com que sonhamos. Nesse sentido, nossa política econômica dirigida tem de se articular com a globalidade de nossa política de redução de danos, de redução da violência, de interceptação das dinâmicas geradoras da violência. Por isso, dir-se-ia com propriedade que esse programa econômico é, simultaneamente, um programa cultural e intersubjetivo, e esteticamente orientado, porque sintonizado com o estilo adotado pelas estratégias locais de autoconstituição subjetiva.
(5) Outro ponto chave é o cuidado necessário para evitar que se pensem as políticas públicas anti-violência como políticas de massa, voltadas para metas funcionais e genericamente referidas a populações ou grupos sociais. O segredo do programa consistente, na área da prevenção à violência, é seu esforço original de "customizar" a política pública, isto é, trabalhá-la de modo a que ela satisfaça necessidades singulares e desejos individualizados. Para que uma política pública cumpra a função de restituir visibilidade, reconhecer o valor pessoal, acolher o indivíduo, é preciso que se ofereça aos sujeitos que compõem seu público alvo aberta a apropriações individualizadas e apta a distinguir cada beneficiário, identificando-o em sua singularidade, isto é, atribuindo-lhe o lugar de sujeito do processo de assimilação da oportunidade que se lhe proporciona. Daí também a importância crucial das famílias, nesse esforço de evitar que os jovens sejam recrutados pelo tráfico. Justamente pelas razões expostas, o fortalecimento social, econômico e subjetivo-psicológico ou cultural (em sentido amplo) das famílias constitui a melhor barreira de proteção para os jovens, uma vez que nenhuma política de Estado, assim como nenhuma ação de organizações da sociedade civil consegue ser tão individualizada, tão capilarizada, tão afetivamente competente e certeira quanto o acolhimento familiar. Portanto, as famílias devem ser o alvo prioritário das políticas públicas dirigidas aos jovens.
(6) "Protagonismo" é uma palavra emblemática, no léxico político das esquerdas e das tradições humanistas. Remete a participação, democracia e cidadania. Refere-se ao valor que se confere à sociedade, às suas iniciativas espontâneas, à sua própria organização e à sua autonomia. É sinônimo de respeito à independência dos agentes individuais e coletivos não-partidários, sobretudo dos sem-poder. Nessa medida, implica a recusa das velhas práticas da cooptação -à direita, pela via do fisiologismo cleintelista, e à esquerda, pela via do monopólio centralizador e burocratizante do partido stalinista, que se confunde com o Estado e a sociedade, esmagando-a.
"Protagonismo" muitas vezes é enunciado como um bordão saudável, libertador, que ajuda a exorcizar os riscos do poder. Como toda chave semântico-política, entretanto, pode degradar-se em chavão e, invertendo seu sentido, passar a servir aos propósitos que se destinava a evitar, reiterando o velho paradigma narodinik, em que é típico o vocabulário do protagonismo popular. Para evitar essa hipótese, impõe-se o cuidado de evitar seu emprego fácil, como um simples selo artificial de qualidade democrática, que se cola nos produtos e serviços fornecidos pelo Estado ou pela Prefeitura. Nem sempre a palavra se aplica. Só faz sentido usá-la, em alguns contextos, se há contextos e casos aos quais ela não se aplica. Como reconheço que faz sentido usá-la e como a valorizo, devo reconhecer que ela não se aplica a certos casos e contextos. Para identificá-los, sinteticamente, por dedução lógica e antecipadamente me desculpando pelo truísmo, diria que tais contextos são aqueles nos quais não é pertinente atribuir à população ou a indivíduos determinados a responsabilidade pela decisão ou pela condução de processos. Nos programas de segurança há casos em que o protagonismo popular deve ser proposto com ênfase, mas há também aqueles em que a palavra não deve aparecer, porque os processos em pauta não permitem. O mais interessante a destacar, aqui, é que há circunstâncias em que o protagonismo popular não apenas é impertinente como sua impropriedade é que deve ser enfatizada. Por mais estranho que soe, há situações em que a virtude da política pública está justamente no estabelecimento claro de que o "protagonismo" é função única e exclusiva do poder público.
Um exemplo: sem nenhuma dúvida é positivo, mais que isso, é essencial atribuir protagonismo aos jovens, para que se eduquem na participação cívica, cooperativa e solidária, para que valorizem sua inserção pacífica e construtiva na sociedade, e para que exibam suas virtudes, reforçando a autoestima. Por outro lado, quando jovens precisam de acolhimento e reconhecimento de seu valor, necessitam vivenciar uma relação plena, a qual, por sua vez, só existe se o outro assumir inteiramente sua diferença, sua autonomia, sua alteridade. Esses jovens precisam encontrar outros significativos, outros que exponham sem hesitações sua alteridade, sua autonomia, o poder que afirma e garante essa autonomia, isto é, sua autoridade. Esses meninos e meninas precisam de agentes públicos humanizados que se afirmem como autoridades e que os/as valorizem, e necessitam também do contato com a alteridade representada pela instituição pública enquanto tal, qualificada em sua alteridade pela autoridade de que se reveste e pela especificidade das regras que norteiam suas decisões. Essa tese vale para muitos casos que envolvem jovens em situação de risco social. Respeitar unilateral e ilimitadamente as vontades juvenis pode significar grave desrespeito aos direitos desses mesmos jovens à proteção, à segurança, a condições dignas de vida, saúde, alimentação, moradia, acolhimento afetivo e educação. Confusão análoga seria aquela que tratasse a problemática dos meninos e meninas de rua com a mesma categoria: "protagonismo". Isso levaria à suposição absurda de que essas vítimas lançadas à rua poderiam converter-se em sujeitos, enquanto personagens da rua, como se esse pudesse ser o espaço da realização de sua liberdade. O equívoco do raciocínio se desvela invertendo-se o contexto e perguntando-se a quem defende esse argumento: o que você faria se seu filho, criança ou adolescente, lhe declarasse que agora é livre e vai mudar-se para a rua? Você saudaria o protagonismo recém-conquistado de seu/sua filho/a ou imporia sua autoridade, dizendo-lhe que você o/a ama, o/a quer em casa, que seu lugar é em casa e que, mesmo que ele/a não entenda e não queira, será forçado/a a ficar em casa, onde o protagonismo continuará sendo dos pais?
(7) O sétimo argumento tematiza a unidade dos seis pontos precedentes e, por esse viés, focaliza a importância crucial da unidade de todo programa de segurança que se quer consistente, não apenas no sentido trivial de que a integração entre os projetos e as iniciativas os fortalece mutuamente, ampliando as chances de sucesso do conjunto, mas no sentido talvez contra-intuitivo de que a unidade de um programa desse tipo é diferente, qualitativamente, e mais importante do que o somatório ou mesmo a articulação orgânica de suas partes ou dos segmentos que o compõem.
A qualidade do programa, enquanto unidade, se reporta, produzindo-a, à legitimidade e à autoridade da agência gestora, cuja personalidade singular é igualmente indispensável, mesmo do ponto de vista político e simbólico, não só da perspectiva operacional. Ambas, a qualidade ou eficácia do programa e a legitimidade ou autoridade da agência gestora -sua liderança, sua capacidade de dialogar e, principalmente, sua sensibilidade e sua humildade para ouvir- constituem condição sine qua non para que se promova um efeito absolutamente decisivo: a circunscrição da problemática, sua inscrição na agenda pública por uma linguagem particular e a focalização política dos territórios ou espaços sociais nos quais se implantarão, gradual e progressivamente, os projetos –sempre que esse método de implantação for viável -considerando-se a natureza dos projetos e dos problemas visados-, ele deveria ser adotado.
Essa focalização é indispensável para que se dêem os resultados esperados. Por vários motivos, entre os quais a motivação dos atores locais, a mobilização societária que enseja, a convergência entre os movimentos suscitados e, sobretudo, a formação e disseminação de novo padrão de expectativas, geradoras de profecias positivas que se autocumprem, acionando ciclos virtuosos, nos jogos cotidianos da sociabilidade. Os operadores locais das agências públicas e os policiais passam a supor a presença insidiosa e pervasiva, quase ubíqua, do "observador societário universal", e tendem a acomodar-se às novas circunstâncias, agindo em conformidade com a transparência presumida. Dinâmica homóloga –com sentido invertido- se instala entre os operadores do mercado clandestino do crime e entre os agentes da violência.
Sendo a segurança pública matéria, por excelência, de expectativas, atua-se sobre o nervo mesmo da problemática, graças à focalização política, que depende, insisto, de circunscrição da problemática -com determinado tratamento da agenda pública- e de demarcação territorial, para que se potencializem os efeitos de contágio metonímico positivo, alterando padrões de expectativas.
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Os sete pontos destacados talvez ajudem a esclarecer alguns aspectos dos programas expostos, aspectos insuficientemente explorados no corpo do texto que os expõe ou apenas tacitamente referidos. Convém salientar esses tópicos especialmente controversos para que o debate se enriqueça, mas, sobretudo, para que sua compreensão não seja prejudicada pela projeção acrítica das pressuposições inspiradas no senso-comum.
O conjunto dessas observações também serve para demarcar, com mais clareza, a especificidade das políticas propostas pelas políticas de segurança expostas, distinguindo-as das políticas usualmente elaboradas e aplicadas pelos governos conservadores.
VIII. Conclusão
O conjunto de empreendimentos municipais e estaduais, elencados acima, constitui um esforço sério e ambicioso na área da segurança pública. Essas políticas de segurança transformaram as experiências dos Governos do Amapá, do Mato Grosso do Sul e do Rio de Janeiro (em 1999 e em 2002), além do governo municipal de Porto Alegre, anteriormente citado, em arenas pioneiras de iniciativas imaginativas e racionalizadoras, que começaram a dar os primeiros passos rumo à criação de um sistema de segurança consistente, onde reinava o caos, oculto sob o voluntarismo febril de medidas improvisadas, desarticuladas, fragmentárias e reativas. A segurança, no Brasil, não pode mais ser tratada com paliativos improvisados. A população merece que se diga a verdade, com transparência: está na hora de construir pontes para o futuro e de buscar formas originais capazes de realizar a revolução inadiável nas instituiçõers policiais, assim como é urgente investir com absoluta prioridade na juventude pobre, protegendo-a via apoio às suas famílias e através de políticas públicas sensíveis às dimensões culturais, afetivas e subjetivas envolvidas. As reformas estruturais que estão acontecendo nos estados referidos não produzem soluções fáceis e mágicas. Demandam tempo de maturação e requerem a radicalização dos processos em curso para cumprirem suas metas. Além disso, não terão êxito enquanto não se obstruírem as fontes de recrutamento criminoso, permanentemente realimentadas pela falta de perspectiva e esperança, nas áreas mais pobres da sociedade. Não somos mercadores de ilusões. Só com seriedade, persistência e coragem é que se cultivam as verdadeiras soluções. Esse é o compromisso tácito das políticas apresentadas.
NOTAS
- Refiro-me ao complexo institucional – daí o emprego do singular – que envolve as duas corporações policiais estaduais, as polícias Civil e Militar, além da Polícia Federal.
- Esse trecho corresponde a passagem da palestra "Reforma da Polícia e a Segurança Pública Municipal", proferida na Universidade de Oxford, em 11 de maio de 2002, no Centro de Estudos Brasileiros, dirigido pelo Prof. Leslie Bethel.
- Esses pontos estão incluídos e especificados, em detalhes, no Plano de Segurança Pública, coordenado por Antonio Carlos Biscaia, Benedito Mariano, Luiz Eduardo Soares e Roberto Aguiar, confeccionado no âmbito do Instituto Cidadania, com a assessoria especial de Paulo Brinckman, dirigido por Paulo Okamoto e presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, apresentado à sociedade em fevereiro de 2002.