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PIS/COFINS sobre vendas inadimplidas: regime de competência e expectativa de revisão jurisprudencial

Agenda 15/07/2015 às 21:53

O artigo procura analisar criticamente a posição jurisprudencial que acabou entendendo pela incidência do PIS e da COFINS sobre as vendas inadimplidas, apontando, ao final, pela expectativa de revisão da matéria pelo STF.


Resumo: Pretendemos analisar a incidência do PIS e da COFINS sobre as vendas inadimplidas e a (i)legitimidade do princípio contábil da competência como critério demarcador, a partir do axioma da intertextualidade e seus fenômenos na interpretação, construção e produção das normas jurídicas em matéria tributária.

Palavras chave: PIS e COFINS – Vendas inandimplidas – Regime de competência – Intertextualidade – Jurisprudência.

Sumário: Introdução; I. O ciclo de positivação do direito tributário; II. PIS e COFINS: intertextualidade e regime de competência. II.i. Intertextualidade no processo interpretativo; II.ii. Diálogo entre texto e contexto: a legitimação de sentidos; II.iii. Fatos jurídicos e fatos contábeis: o contexto do regime de competência; III. Regime jurídico do PIS e da COFINS; III.i. Fatura, faturamento e receita; III.ii. PIS/COFINS sobre vendas inadimplidas: construindo a norma de incidência; III.iii. Critério material x Base de cálculo; III.iv  Expectativa de revisão da matéria pela jurisprudência; Conclusões; Bibliografia.

INTRODUÇÃO

O direito é fenômeno comunicacional que se manifesta por meio da linguagem das normas e, por essa razão, pressupõe constante interpretação durante o seu ciclo de positivação, processo esse que, na linha de PAULO DE BARROS CARVALHO, representa a gradual concretização dos antecedentes normativos abstratos e individualização de seus consequentes gerais , mediante ato humano de enunciação.


Desse modo, mostra-se imprescindível analisar e compreender o processo gerador de sentido dos textos e conceitos jurídicos veiculados pela linguagem prescritiva do direito e que compreendem, conformam e norteiam as espécies tributárias, a fim de delimitar e circunscrever o alcance das exigências fiscais.


Trata-se, portanto, de analisar problemas ou irritações na fenomenologia da incidência tributária, com impacto na formação da obrigação tributária e, consequentemente, no desenvolvimento das relações intersubjetivas, procurando conferir soluções teóricas para dilemas práticos, a partir de categorias da Teoria Geral do Direito, com foco na interpretação.


Esse trabalho de geração e atribuição de sentidos exerce um constante dialogismo (intertextualidade) entre as diferentes camadas de linguagens, exigindo rigor científico e metodológico, especialmente porque o direito tributário está em constante comunicação com diversos outros ramos do conhecimento jurídico  e não jurídico (interdisciplinariedade).

I – O CICLO DE POSITIVAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Ao nos referir ao ciclo de positivação do direito tributário, como já adiantamos, remetemo-nos à ideia de transição da norma geral e abstrata para a individual e concreta, perspectiva sobre a qual se desenvolve e caminha a relação jurídica de direito tributário, da sua máxima abstração à sua concretude final (extinção da obrigação que lhe é objeto).


Vislumbra-se, portanto, a concretização e individualização da linguagem prescritiva do direito tributário, que avança gradualmente sobre as condutas intersubjetivas e exige, para tanto, ato humano de enunciação que exerce constante dialogismo entre textos, enunciados e normas, seja pelas relações lógico-sintáticas das normas cronologicamente produzidas nesse processo, seja pelas suas relações semânticas e pragmáticas. 


A linguagem do direito positivo, ainda, encontra-se em relação com a linguagem social sobre a qual incide e também com a linguagem da ciência do direito, as quais igualmente interagem no ciclo de positivação do direito tributário, não existindo exclusividade de função ou de forma da linguagem.


Portanto, o direito positivo é alimentado por outros sistemas, internalizando conteúdos linguísticos que se tornam jurídicos por meio das suas próprias estruturas: textos de leis, enunciados prescritivos e normas que se sucedem e se relacionam em seu interior, compondo e integrando o processo interpretativo, do qual não podem se destacar.

II – PIS E COFINS: INTERTEXTUALIDADE E REGIME DE COMPETÊNCIA

As contribuições ao PIS e à COFINS têm sido, nos últimos anos, as espécies tributárias com maior número de questionamentos judiciais, como por exemplo: ampliação da base de cálculo e majoração das suas alíquotas; conceito de insumo no regime não-cumulativo; base de cálculo nas importações; incidência para instituições financeiras, seguradoras e corretoras de seguros; incidência sobre locação de bens móveis; incidência sobre transferência de créditos de ICMS; natureza dos créditos decorrentes da não-cumulatividade e incidência do IRPJ, etc.


E assim tem sido, também, em relação à incidência dessas exações sobre as chamadas vendas inadimplidas, nas quais a empresa, na consecução de seu objeto social, acaba não recebendo a contraprestação de sua atividade, devido à inadimplência.


O argumento do regime de competência, todavia, tem predominado nas discussões judiciais como forma de justificar o auferimento de receita na situação de inadimplência, tendo o STJ reiteradamente decidido que:

"(...) O posterior inadimplemento de venda a prazo não constitui condição resolutiva da hipótese de incidência das exações em tela, uma vez que o Sistema Tributário Nacional estabeleceu o regime financeiro de competência como a regra geral para apuração dos resultados da gestão patrimonial das empresas. (...)"(REsp n.º 751.368/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma)

“O Sistema Tributário Nacional fixou o regime de competência como regra geral para apuração dos resultados da empresa, e não o regime de caixa. Pelo primeiro regime, o registro dos fatos contábeis é realizado a partir de seu comprometimento, vale dizer, da concretização do negócio jurídico, e não do efetivo desembolso ou ingresso da receita correspondente àquela operação. 4. Se a lei não excluiu as "vendas inadimplidas" da base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS, não cabe ao intérprete fazê-lo por equidade, equiparando-as às vendas canceladas. (...)”(REsp n.º 953.011/PR, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma)


Já no STF, a questão foi julgada em repercussão geral no RE n.º 586.482/RS, Relator Ministro Dias Toffoli, assim resumindo-se os debates promovidos em Plenário :

“Reputou-se que o Sistema Tributário Nacional fixara o regime de competência como regra geral para apuração dos resultados da empresa, e não o regime de caixa. Pelo primeiro, haveria o reconhecimento simultâneo das receitas e das despesas realizadas, como conseqüência natural do princípio da competência do exercício, considerando-se realizadas as receitas e incorridas as despesas no momento da transferência dos bens e da fruição dos serviços prestados, independentemente do recebimento do valor correspondente. Afirmou-se que essa sistemática seria confirmada pelos artigos 177 e 187, § 1º, a, da Lei 6.404/76, bem como pelo art. 9º da Resolução 750/93, do Conselho Federal de Contabilidade. Nesse contexto, aduziu-se que as mutações patrimoniais decorreriam de relações jurídicas integrantes do ativo ou do passivo da pessoa jurídica, representativas, respectivamente, de direitos ou de obrigações para com terceiros. Ocorreriam, pois, quando o vendedor fizesse a entrega para o comprador, passando, então, a ter jus ao recebimento do respectivo preço. Esse evento deveria ser vertido em linguagem competente, registrado o direito de crédito que o vendedor passaria a deter em face do comprador, equivalente ao preço estipulado quando da celebração do contrato. Frisou-se ser esse o momento em que nasceria a relação jurídica, juntamente com a ocorrência do fato jurídico tributário.Quanto ao aspecto temporal da hipótese de incidência da COFINS e da contribuição para o PIS, ter-se-ia, desse modo, que o fato gerador da obrigação ocorreria com o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda, e não com o recebimento do preço acordado, isto é, com a disponibilidade jurídica da receita, que passaria a compor o aspecto material da hipótese de incidência das contribuições em questão. Salientou-se, nesse aspecto, que o STF teria firmado orientação do sentido de que a disponibilidade jurídica é presumida por força de lei, que definiria como fato gerador do imposto a aquisição virtual, e não efetiva, do poder de dispor. Além disso, a disponibilidade jurídica ou econômica da receita, para as pessoas jurídicas, não poderia ser limitada pelo efetivo recebimento de moeda ou dinheiro, diferenciando-se a disponibilidade econômica — patrimônio economicamente acrescido de um direito ou de um elemento material identificável como receita — da disponibilidade financeira — efetiva existência dos recursos financeiros. Assim, a primeira não pressuporia o repasse físico dos recursos para o patrimônio do contribuinte, bastando o acréscimo, mesmo que contábil, desses recursos no patrimônio da pessoa jurídica.”


Como visto, muitos termos e argumentos são utilizados sem o devido critério e rigor científico, como: “não constituição de condição resolutiva da hipótese de incidência”; “eleição do regime financeiro de competência, pelo Sistema Tributário Nacional, como regra geral para a apuração dos resultados da gestão patrimonial das empresas”; “não cabe ao intérprete, por equidade, excluir as vendas inadimplidas da base de cálculo do PIS e da COFINS”; “nascimento da relação jurídica juntamente com o fato jurídico tributário, que ocorreria com o registro do direito a crédito (conversão do evento em linguagem competente)”; “a disponibilidade jurídica é presumida”, e por aí vai.


Desse modo, passemos a analisar, primeiramente, por qual razão se trouxe o regime de competência para o campo de debate das contribuições ao PIS e à COFINS para, em seguida, verificar o seu sentido e alcance em matéria tributária, especialmente no que diz respeito aos regimes jurídicos das referidas exações.


II.i. Intertextualidade no processo interpretativo
Além dos conteúdos gramaticais, a compreensão dos textos exige, também, conteúdos linguísticos que vão além da mera disposição das palavras ou expressões sígnicas, explorando, assim, outros aspectos do estudo da linguagem que não somente intra-texto.


Nessa perspectiva, o que caracteriza a intertextualidade é introduzir a um novo modo de leitura o valor semântico de outro texto. Cabe ao leitor, vale dizer, ao intérprete, a partir de sua cultura e memória, identificar o conteúdo intertextual.


Não por outra razão, aludindo à estrutura triádica da semiótica, PAULO DE BARROS CARVALHO afirma que:


“Se pensarmos que a norma é um juízo hupotético-condicional (se ocorrer o fato X, então deve ser a prestação Y), formado por várias noções, é fácil concluir que nem sempre um só texto (de lei, p. ex.) será suficiente para transmitir a integridade existencial de uma norma jurídica. Às vezes, os dispositivos de um diploma definem uma, algumas, mas nem todas as noções necessárias para a integração do juízo e, ao tentar enunciá-lo verbalmente, expressando a correspondente proposição, encontramo-lo incompleto, havendo a premência de consultar outros textos do direito em vigor.
(...) Acerca do fundamento de tais reflexões, podemos verificar que há enunciados expressos e enunciados implícitos. O preceito constitucional que garante o direito a propriedade, por exemplo, está expressamente contido na redação do art. 5º, XXI, da Carta Magna. Entretanto, a oração que proclama a isonomia das pessoas política de direito constitucional interno apresenta-se como enunciado implícito, extraído, por inferência, de duas formulações expressas: a que assegura o princípio federativo (autonomia dos Estados sob a égide da CF, art. 1º) e a que consagra a autonomia dos Municípios (arts. 18, 29, 30 e 34, VII, c, da CF). (...)
Se pudermos reunir todos os textos do direito positivo em vigor no Brasil, desde a Constituição Federal até os mais singelos atos infralegais, teremos diante de nós um conjunto integrado por elementos que se inter-relacionam, formando um sistema. As unidades desse sistema são as normas jurídicas que se despregam dos textos e se interligam mediante vínculos horizontais (relações de coordenação) e liames verticais (relações de subordinação-hierarquia)” .


E prossegue o eminente professor:


“Somos levados a acreditar, com foros de convicção, que a providência integrativa não só pertence ao processo de interpretação, como dele é parte fundamental, pois é ela que nos permite ver a ordem jurídica como um todo organizado, nos seus entrelaçamentos verticais – hierarquia – e horizontais – relações de coordenação. Por esse rumo, chegaremos a vislumbrar, finalmente, o direito posto como enorme pirâmide de proposições prescritivas, em que as normas se distribuem numa derivação escalonada” .


Dessa forma, intertextualidade é o “atributo dos textos de estar em contato com todos os demais textos produzidos a respeito de um tema. É pelo atributo da intertextualidade que se pode expressar o ponto em que a construção de sentido de um texto é condicionada por todos os demais textos que mantenham, entre si, alguma espécie de afinidade. É sinônimo de dialogismo” .


Ou ainda: “a intertextualidade é formada pelo intenso diálogo que os textos mantêm entre si, sejam eles passados, presentes ou futuros, pouco importando as relações de dependência estabelecidas entre eles. Assim que inseridos no sistema, iniciam a conversação com outros conteúdos, intra-sistêmicos, num denso intercâmbio de comunicações. Normas de lei ordinária dialogando com escritos constitucionais, com outras regras já revogadas, com dispositivos insertos em atos normativos infralegais, além das conversações que se instalam com mensagens advindas dos mais diversos setores do direito posto. (...) Exsurge, com muita força, o axioma da inesgotabilidade do sentido – ao lado da intertextualidade – que opera não só no território do sistema do direito posto, mas o transcende, na direção de outros segmentos do saber”  (grifamos).

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Portanto, o princípio ou axioma da intertextualidade nos permite conhecer o direito, interpretar de forma inesgotável e construir as normas de incidência tributária, compreendendo o sentido e alcance das materialidades, cumprindo seu papel na positivação, ou melhor, na derivação do direito tributário .


Quando se fala em derivação do direito tributário, ao contrário da positivação, não se pensa em ponência de novas normas no sistema, podendo ocorrer, ainda, de modo ascendente ou descendente, e não somente descendente. Trata-se de um processo lógico-semântico com o objetivo de recuperar o ato de fala.


E isso ocorre constantemente no intenso diálogo não só entre textos normativos, mas também entre os sentidos das mensagens construídas pelos observadores e pelos participantes, da abstração à concretude da norma, sem que haja sobreposição.


Podemos dizer que a intertextualidade representa autêntica forma de acoplamento estrutural (na linha de NIKLAS LUHMANN ), ou seja, o sistema jurídico se acoplando ao sistema econômico, financeiro ou contábil , produzindo uma nova semântica.


Nesses termos, PAULO DE BARROS CARVALHO assim já se manifestava :


“Sempre que as normas jurídicas entram no cálculo de outros subsistemas, apenas o fazem porque as mesmas foram tidas como importantes pelos códigos binários correspondentes (Moral, Religião, Economia, etc.).
Vê-se que a Teoria dos Sistemas, no modelo autopoiético, ressalta com tintas fortes a autonomia do direito e o quanto parece estranho interpretar a realidade jurídico-tributária em termos econômicos, contábeis, entre tantos outros pontos de vistas possíveis, de maneira a tornar tal interpretação como se prescritiva fosse.”


De qualquer forma, apesar de gerar a inesgotabilidade de sentidos , a intertextualidade no processo interpretativo do direito não representa a ausência de limites no percurso de atribuição de sentidos, pois toda a base da interpretação parte do texto. Nessa linha, os limites do intérprete estão no próprio texto, nos seus horizontes culturais e no contexto que se apresenta. Especialmente em matéria tributária, ainda, considerando nosso modelo normativista, a intertextualidade há de ser estritamente jurídica (intertextualidade interna ou intrajurídica segundo PAULO DE BARROS CARVALHO), ou seja, deve operar apenas no diálogo entre os vários ramos do ordenamento.


Exatamente isso é o que se verifica no tema deste trabalho, onde o princípio contábil da competência, referido em alguns textos normativos de direito societário e tributário (intertextualidade interna), acabou influenciando na construção de sentido da norma de incidência do PIS e da COFINS.


É aí que entra, então, a necessidade de se averiguar o contexto da citação ou remissão de determinado termo como forma legitimar o seu sentido, cabendo lembrar que, num texto jurídico-tributário, especialmente para alargar ou aumentar tributos, a intertextualidade deve ser explícita (princípio da estrita legalidade), devendo seguir, portanto, a forma expressa ou de paráfrase , ou ainda intertextualidade esperada ou provocada.


Veja-se, outrossim, que de acordo com o artigo 108, parágrafo 1º, do CTN, a analogia, técnica integrativa de intertextualidade, não permite a exigência de tributo não previsto em lei, reforçando o que dissemos acima.


II.ii. Diálogo entre texto e contexto: a legitimação de sentidos
Quando falamos em legitimação de sentido da mensagem legislada, podemos pensar, de forma geral, num primeiro momento, em uma legitimação sintática, e num segundo momento, em uma legitimação semântica e pragmática .


Isso porque, obviamente, os sentidos construídos pelo intérprete (autêntico) serão legítimos (e assim teremos uma norma individual e concreta válida) se de acordo com a norma de competência (estrutura hierarquizada do sistema), ou seja, é o próprio direito que determina qual a linguagem será competente para dizer o sentido da mensagem legislada, daí porque se falar em legitimidade sintática.


Por outro lado, igualmente podemos falar em legitimação do sentido, não do ponto de vista sintático, mas sob uma perspectiva semântica e pragmática, ao analisarmos as relações de intertextualidade na busca de significados dentro do contexto da compostura de cada espécie tributária.


Em outras palavras, o contexto é parte externa ao texto e busca apreender os fatores que podem influenciar nas relações de significação. O contexto está para a significação como o texto está para o significado.


Veja, por oportuno, a seguinte passagem de PAULO DE BARROS CARVALHO:


“(...) não há texto sem contexto, pois a compreensão da mensagem pressupõe necessariamente uma série de associações que poderíamos referir como lingüísticas e extralingüísticas. Neste sentido, aliás, a implicitude é constitutiva do próprio texto. Haverá, portanto, um contexto de linguagem envolvendo imediatamente o texto, como as associações do eixo paradigmático, e outro, de índole extralingüística, contornando os dois primeiros” .


Desse modo, “a produção do sentido é fruto do diálogo entre texto e contexto e só a conjugação entre eles possibilita construções de sentido que sejam prevalecentes entre aqueles a que se destina. (...) O sentido é fruto da conjugação de textos, que se articulam criando e condicionando relações de significação” .


Citando LUIS ALBERTO WARAT, o Professor JOSÉ ROBERTO VIEIRA nos traz esclarecedor exemplo acerca do que queremos dizer: “(...) as palavras do enunciativo proibitivo, no primeiro círculo considerado – a praia – buscavam um comportamento desejado: o uso do maiô inteiro; ao passo que as mesmas palavras do mesmo enunciado, na segunda esfera cogitada – o clube de nudistas – perseguiram outra conduta esperada: o uso de roupa nenhuma” .


Dentro do que vimos, portanto, o contexto é composto pelos demais textos percebidos pelo intérprete e que condicionam e legitimam, num constante processo de intertextualidade, a própria formação do sentido (legitimação semântica e pragmática) .


II.iii. Fatos jurídicos e fatos contábeis: o contexto do regime de competência


Analisando o contexto do princípio contábil (extrajurídico, portanto) da competência , verificamos que este deve ser observado na demonstração dos resultados do exercício, determinando que as mutações patrimoniais de uma empresa devem ser registradas contabilmente na medida em que forem incorridas, e não quando caixa ou outros recursos financeiros são recebidos ou pagos .


Juridicizando (internalizando no interior do direito ou acoplando-se ao direito) tal princípio contábil, dispõe o artigo 177 da Lei n.º 6.404/76 (Lei das SAs): “A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.” (grifos nossos).


Por outro lado, verifica-se uma clara separação entre os conceitos de Lucro Líquido (apurado de acordo com a legislação comercial - Lei n.º 6.404/76 - e no qual se insere o regime de competência) e de Lucro Real (base de cálculo do imposto de renda), mas ambos confluindo para o próprio conceito de renda para fins de tributação pelo IRPJ.


As adições e exclusões determinadas pela legislação do IRPJ, e que precedem a apuração do Lucro Real, portanto, decorrem do fato de que, na escrituração comercial, as mutações patrimoniais são registradas segundo o regime de competência, podendo haver diferenças no momento de reconhecimento (das mutações) definido para fins tributários.


Desse modo, as receitas consideradas na apuração do Lucro Líquido do exercício que só forem tributáveis em exercício posterior ou as despesas dele deduzidas que só são aceitas como dedutíveis em exercício subseqüente deverão, para efeito de apuração do Lucro Real do período, ser excluídas ou adicionadas do Lucro Líquido em que foram consideradas.


Considerando esse cenário, verifica-se que o regime de competência é critério para identificação do próprio Lucro Líquido das sociedades que, por sua vez, é pressuposto de incidência da norma do IRPJ.


Está, portanto, no campo da hipótese da regra-matriz de incidência do IRPJ, podendo-se dizer que o aspecto material da sua norma de incidência aponta para o acréscimo patrimonial decorrente do capital, do trabalho ou da combinação de ambos (CTN, art. 43), havido conforme o regime de competência.


Ainda, segundo ROQUE ANTONIO CARRAZA, em se tratando de Imposto sobre a Renda, o aspecto temporal da incidência ganha especial importância, pois a identificação da riqueza nova (critério material) depende da comparação do patrimônio da empresa no tempo, em duas datas distintas (aspecto dinâmico decorrente dos princípios da generalidade, universalidade e progressividade), e “é a Contabilidade, juridicizada pelas leis societárias e fiscais, que possibilita a exata apuração destes acréscimos patrimoniais.”


Podemos finalizar, então, afirmando que o regime de competência é um fato contábil que, juridicizado pela linguagem prescritiva do direito, tornou-se um fato jurídico, compondo o antecedente da norma de incidência do IRPJ.

III – REGIME JURÍDICO DO PIS E DA COFINS

III.i. Fatura, faturamento e receita


Fatura, faturamento e receita são conceitos eminentemente de direito privado, colhidos pela legislação tributária para se exigir PIS e COFINS, motivo pelo qual suas definições precisam estar claras para que possamos, em seguida, construir as regras-matrizes dessas exações e delimitá-las em seus alcances.


Pois bem, por fatura entende-se o elemento corpóreo emitido no ato de faturar, ou seja, o papel que representa a cobrança do negócio (operação ou prestação) entabulado entre duas ou mais partes, gerando efeitos de direito.


Faturamento, por sua vez, representa o conjunto de faturas emitidas, significando, “conceitualmente, o somatório de cobranças pela pessoa jurídica.”


Segundo ROQUE ANTÔNIO CARRAZA, “faturamento é a contrapartida econômica auferida, como riqueza própria, pelas empresas em conseqüência do desempenho de suas atividades típicas. É, se preferirmos, a dimensão econômica dos ingressos decorrentes das faturas por elas emitidas. Corresponde, pois, como vimos, à receita bruta do contribuinte.”


Há quase três décadas fora assinalado, conforme GERALDO ATALIBA e CLÉBER GIARDINO, que “a praxe consagrou a expressão faturamento para indicar a soma de diversas faturas, por critério do cliente, prazo ou tipo de mercadorias vendidas etc. Assim é comum dizer-se: ‘O nosso faturamento para o cliente X é de 1.000 por mês’. ‘Tal firma faturou muito, no ano passado’, etc.”


O termo faturamento, portanto, é empregado para identificar não apenas o ato de faturar, mas também e, sobretudo, o somatório do produto das operações ou prestações de atividades concluídas num dado período.


E prossegue os citados autores: “(...) esse fato consistente em emitir faturas não tem, em si mesmo, nenhuma relevância econômica. É mera decorrência de outro acontecimento (este, sim, economicamente importante), correspondente à realização de operações ou atividades da qual esse faturamento decorre.” (idem, p. 153).


Desse modo, a atividade (operação ou prestação) por detrás do ato de faturar mostra-se essencial para estabelecer o real significado do termo faturamento, pois para haver faturamento é indispensável que se tenha realizado uma atividade de conteúdo econômico.


Já receita, por outro lado, segundo os manuais de contabilidade, é definida da seguinte forma, in verbis:


“A definição de receita abrange tanto receitas propriamente ditas como ganhos. A receita surge no curso das atividades ordinárias de uma entidade e é designada por uma variedade de nomes, tais como vendas, honorários, juros, dividendos, royalties e aluguéis. Ganhos representam outros itens que se enquadram na definição de receita e podem ou não surgir no curso das atividades ordinárias da entidade, representando aumentos nos benefícios econômicos e, como tal, não diferem, em natureza, das receitas. (...) A definição de receita também inclui ganhos não realizados, por exemplo, os que resultam da reavaliação de títulos negociáveis e os que resultem de aumentos no valor de ativos a longo prazo. (...) Vários tipos de ativos podem ser recebidos ou aumentados por meio da receita; exemplos incluem caixa, contas a receber, mercadorias e serviços recebidos em troca de mercadorias e serviços fornecidos. A receita também pode resultar da liquidação de passivos.”
(Manual de Contabilidade Societária FIPECAFI, Atlas, p. 43/44)


E segundo definição jurídica:


“Receita constitui aumentativo quantitativo pactuado sobre um direito já existente no patrimônio, ou um acréscimo de um novo direito ao patrimônio, a redução de valor, ou a total eliminação de uma obrigação anteriormente existente no patrimônio, eis que o resultado de qualquer um desses fatores é um aumento na soma algébrica dos valores positivos (direitos) e negativos (obrigações) que constituem o patrimônio.”(Ricardo Mariz de Oliveira, “Fundamentos do Imposto de Renda”, Quartier Latin, 2008, p. 97)


Assim sendo, depreende-se que, enquanto faturamento engloba apenas os resultados das atividades ordinárias da empresa, receita abrange todo e qualquer incremento no ativo (podendo se dar inclusive por diminuição de um passivo).


De acordo com os pronunciamentos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), a receita é definida como “aumentos nos benefícios econômicos durante o período contábil sob a forma de entrada de recursos ou aumento de ativos ou diminuição de passivos que resultam em aumentos do patrimônio líquido e que não sejam provenientes de aporte dos proprietários da entidade.” (CPC 30).


O termo receita, portanto, representa o gênero, do qual decorrem diversas espécies e subespécies, como receita bruta e líquida, receita operacional e não operacional, receita de vendas de produtos e serviços, receita financeira, dentre outras, conforme legislação societária e fiscal (art. 187 da Lei 6.404/76 e art. 280 do RIR).


E da mesma forma que o faturamento, a atividade por detrás da receita (agora não limitada às atividades ordinárias da empresa) mostra-se essencial para delimitar o seu alcance em matéria tributária, pois não há receita sem uma mutação patrimonial, negócio jurídico.


Diante dessas manifestações, pode-se concluir que receita é uma vantagem auferida pela pessoa jurídica que se agrega ao ativo patrimonial sem reserva, condição ou compromisso com o passivo, e lhe pertence com sentido de permanência, revelando sua capacidade contributiva.


III.ii. PIS/COFINS sobre vendas inadimplidas: construindo a norma de incidência


O PIS tem previsão constitucional no artigo 239, tendo sido instituído pela Lei Complementar n.º 7/70 e atualmente possui dois regimes, o cumulativo, veiculado pela Lei n.º 9.718/98, e o não-cumulativo, objeto da Lei n.º 10.637/02, podendo incidir sobre a receita ou o faturamento.


No regime cumulativo incide sobre o faturamento mensal, o que corresponde à receita bruta (produto da venda de mercadorias e/ou da prestação de serviços), nos termos do artigo 3º da Lei n.º 9.718/98, devendo ser excluídas, no que interessa ao presente estudo, as vendas canceladas e os descontos incondicionais.


No regime não-cumulativo, após a EC n.º 20/98, incide sobre o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil (nos termos do artigo 1º da Lei n.º 10.637/02), igualmente não integrando a base de cálculo as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.


A COFINS tem previsão constitucional no artigo 195, I, “b”, tendo sido instituída pela Lei Complementar n.º 70/91 e atualmente igualmente possui dois regimes, o cumulativo, também veiculado pela Lei n.º 9.718/98, e o não-cumulativo, objeto da Lei n.º 10.833/03, da mesma forma podendo incidir sobre a receita ou o faturamento, em ambos os casos excluídas as vendas canceladas e os descontos incondicionais.


Apesar de prever a exclusão das vendas canceladas e dos descontos incondicionais, tanto o PIS como a COFINS não prevêem a exclusão das vendas inadimplidas, motivo pelo qual devemos ter rigor científico na construção de suas normas de incidência, observando os institutos, conceitos e formas de direito privado e o processo de acoplamento de sentidos na interpretação com utilização da intertextualidade.


Vimos, tópicos acima, que tanto faturamento como receita pressupõem um objeto, uma atividade praticada pela pessoa jurídica (mais restrita no caso do faturamento – produto da venda de bens ou serviços = receita bruta; ou mais ampla, no caso de todas as receitas), sendo esse o objeto da tributação: a atividade assim definida.


Ou seja, na incidência sobre o faturamento (receita bruta) tributam-se as atividades ordinárias da pessoa jurídica (produto da venda de bens ou serviços) e na incidência não-cumulativa (todas as receitas) tributam-se todas as atividades da pessoa jurídica independentemente de sua denominação ou classificação contábil.


Quando falamos em vendas inadimplidas, não podemos negar os efeitos patrimoniais constatados no balanço das empresas, decorrentes da observância de critérios e procedimentos contábeis (regime de competência) encampados pela legislação societária (Lei 6.404/76) e fiscal (no que diz respeito ao IRPJ).


Contudo, tais interferências ou tensões entre um sistema e outro não podem e não devem influenciar ou alterar as materialidades tributárias.


Cabe ressaltar, nesse sentido, que a própria legislação do IRPJ, a qual adota expressamente o princípio da competência na compostura de seu regime jurídico (intertextualidade expressa ou em forma de paráfrase, ou ainda intertextualidade esperada ou provocada, como deve ocorrer em matéria tributária), prevê que as vendas inadimplidas, reconhecidas e tributadas no resultado da empresa quando incorridas, serão excluídas no momento em que se tornarem irrecuperáveis,  tudo de forma a neutralizar os efeitos negativos dessas tensões entre os sistemas contábil/econômico e jurídico/tributário.


Do contrário, o que seria uma presunção admitida pelo direito (o princípio da competência trabalha com essa idéia) transformar-se-ia numa indevida e ilegal ficção jurídica.
Isso porque, a ficção assim transmudada não está contemplada na legislação do PIS e da COFINS, além do que feriria a capacidade contributiva e a isonomia, pois ao assim fazer, tributaria, ao invés de um faturamento ou uma receita, um decréscimo patrimonial, uma mutação negativa, onerando aquilo que não existe, que não revela grandeza econômica.
Lembramos, novamente, que o princípio da competência compreende o regime jurídico do IRPJ pela necessidade de se atrelar receitas e despesas num determinado período de tempo, espelhando, dessa forma, o lucro real.
O princípio da competência, contudo, não compreende e nem precisaria compreender o regime jurídico do PIS e da COFINS, não possuindo eficácia jurídica, já que suas materialidades abrangem o faturamento mensal, assim entendido as receitas (brutas ou totais) auferidas, seja no sistema cumulativo, seja no não-cumulativo.
Portanto, ambos os sistemas pressupõem entrada efetiva (receitas auferidas, e não incorridas), até porque não existe a incidência sobre a disponibilidade jurídica da receita, não se podendo falar em inadimplemento (perda irrecuperável) como fato jurídico tributário.
Por essa razão, utilizar o princípio da competência no regime jurídico do PIS e da COFINS, especialmente com o fim de justificar a incidência sobre vendas inadimplidas, seria fazer jus de uma indevida intertextualidade extrajurídica , apresentando-se como dialogismo contingente e inesperado .
Podemos construir a regra-matriz genérica do PIS e da COFINS, enquanto instrumento redutor de complexidades, da seguinte forma:
Hipótese de incidência Conseqüente jurídico
Critério material: realizar negócios jurídicos com auferimento de receita (bruta = faturamento; ou total das receitas = outras receitas)  Critério pessoal Sujeito ativo: União Federal
Critério temporal: período mensal  Sujeito passivo: pessoa jurídica que realiza negócio jurídico com auferimento de receitas tributáveis
Critério espacial: qualquer lugar do território nacional Critério quantitativo Base de cálculo: produto mensal das receitas (brutas ou totais) auferidas pela pessoa jurídica
  Alíquota: 0,65% e 3% (PIS e COFINS cumulativos); e 1,65% e 7,6% (PIS e COFINS não-cumulativos)
Em estrutura simplificada, temos o seguinte: dado o fato da realização de negócios jurídicos com auferimento de receita tributável, deve ser o recolhimento de PIS/COFINS calculado sobre o produto desses negócios jurídicos.
A interpretação que, por meio de normas individuais e concretas, contempla as vendas inadimplidas na hipótese de incidência do PIS e da COFINS , abusa e manipula as materialidades constitucionalmente delineadas dessas exações, sendo destituída de validade e caracterizando, ainda, evidente desvio de finalidade dos atos administrativos, com fins meramente arrecadatórios.
Quando se realiza a tradução de uma linguagem (da ciência contábil – regime de competência) para outra (jurídica), existe uma distinção de estrutura e de repertórios, não se podendo alterar, nessa transição, as materialidades dos tributos.
Do contrário, ao invés de seguir tendência mundial de prevalência da essência sobre a forma (no exemplo citado acima, decréscimo sobre acréscimo), promove-se exatamente o inverso, havendo o que se pode chamar de abuso das materialidades dos tributos pela oblíqua via das ficções.
Papel importante no controle da intertextualidade no processo interpretativo de produção normativa é exercido, ainda, pelos institutos, conceitos e formas definidos pelo direito privado que, uma vez internalizados pelo direito tributário, devem ser respeitados.
Isso porque, nesse processo de derivação e acoplamento de sentidos, o direito tributário acaba apropriando-se de institutos, conceitos e formas definidos pelo direito privado para alcançar e tributar determinadas riquezas pretendidas pelo legislador. Ou seja, os tributos alcançam materialidades muitas vezes definidas pelo direito privado.
Dessa forma, visualizando essa relação intertextual, o Código Tributário Nacional possui capítulo dedicado exclusivamente à “interpretação e integração da legislação tributária” (Capítulo IV), dispondo em seus artigos 109 e 110 que: “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”; e “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
Trata-se, portanto, de norma que visa proteger o contribuinte contra a manipulação dos institutos, conceitos e formas utilizados pelo direito privado, limitando competências tributárias (lato sensu).
Vale dizer, portanto, que o direito tributário não poderá chamar, exemplificativamente, de compra e venda o que não é compra e venda; de doação o que não é doação; de fatura o que não é fatura; de faturamento o que não é faturamento; de receita o que não é receita, não podendo estender, sob esse subterfúgio, as materialidades tributárias, salvo por meio das chamadas ficções jurídicas .
Por essas razões, se o princípio da competência é inerente ao IRPJ,  ao estendê-lo para o regime jurídico do PIS/COFINS, da mesma forma deve-se admitir a exclusão das vendas inadimplidas (perda no recebimento de créditos), a fim de não distorcer a base de cálculo, o que acabaria por infirmar a materialidade do tributo.


III.iii. Critério material x Base de cálculo


O critério material da hipótese de incidência, como sabemos, constitui o núcleo da regra-matriz e exige o verbo pessoal e de predicação incompleta, acompanhado por um complemento que permite a identificação do evento, signo presuntivo de riqueza que será objeto de tributação.


A base de cálculo, por sua vez, constitui o aspecto fundamental da estrutura de qualquer tipo tributário, e não só se destina a quantificar a obrigação como também, e principalmente, dimensionar a riqueza tributada, reveladora da capacidade contributiva, confirmando, infirmando ou afirmando o critério material.


Portanto, conforme nos ensina PAULO DE BARROS CARVALHO, a base de cálculo tem função de medir a proporção real do fato, compor a específica determinação da dívida e, finalmente, confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição contida no antecedente da norma.


Segundo JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO: “É natural, lógica, e imprescindível a vinculação da matéria tributária com a base imponível, pois esta simplesmente limita-se a medi-la. Deve manter consideração íntima com o objeto tributário e correlação com a capacidade econômica do contribuinte, inerente ao seu aspecto pessoal e intimamente conectada ao fato tributário previsto normativamente.”


No caso, a base de cálculo do PIS e da COFINS é mensurada pelo resultado econômico dos negócios jurídicos praticados pela empresa, motivo pelo qual, ao se falar em tributação das receitas decorrentes de negócios inadimplidos – portanto não auferidas – significa distorcer e infirmar o critério material da hipótese de incidência.


De modo que, além de inválida, ilegal e ilegítima, podemos concluir que a exigência das referidas contribuições em relação às chamadas vendas inadimplidas igualmente afronta o princípio constitucional da capacidade contributiva.


III.iv. Expectativa de revisão da matéria pela jurisprudência


Em que pese os precedentes desfavoráveis do STJ e o julgamento pelo STF em repercussão geral no RE n.º 586.482/RS, observamos que a questão ainda pode ser revista por esses próprios tribunais, caracterizando e contribuindo, como já vimos, no processo de constantes mutações constitucionais.


Isso porque, no âmbito do STJ, identificamos diversas aproximações nos debates ocorridos em recente julgamento sobre a inclusão dos descontos incondicionais na base de cálculo do ISS, veja-se: “se o desconto não é condicionado, não há base econômica imponível para fazer incidir o ISS sobre valor não recebido pelo prestador. 4. O desconto incondicionado, concedida por liberalidade do prestador sem qualquer imposição, reduzirá o valor do serviço, com reflexo para o Fisco que, em decorrência da liberalidade, receberá menos tributo. Conforme reconhece a doutrina, se a base imponível é o valor recebido pelo prestador, nada pode ser feito, senão considerar como base de cálculo o valor do serviço com o abatimento (...).” (EDcl no REsp 1.412.951/PE, DJ 07/02/2014).
E, mais especificamente sobre o tema, o STF indica que voltará a rever a questão no AgRg no RE com Agravo n.º 668.974/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, no qual houve recente reconhecimento de repercussão geral (07/03/2014), nos seguintes termos:
“(...) No regimental, a agravante alega a afronta direta aos preceitos constitucionais reveladores dos princípios da não cumulatividade e da capacidade contributiva. Aduz descompasso com precedentes do Supremo em que se reconheceu a repercussão geral de temas similares, igualmente envolvendo incidência tributária sobre venda de mercadorias e serviços inadimplidos.
(...)
Assiste razão à agravante. Ao contrário do assentado, não se trata apenas de interpretação de normas legais. Cuida-se de saber se a inadimplência absoluta do consumidor implica, ou não, violação aos princípios constitucionais da não cumulatividade e da capacidade contributiva na compensação do ICMS recolhido sobre prestações de serviços de comunicação. A matéria está a merecer o crivo do Colegiado Maior.
3. Em face da excepcionalidade do quadro, reconsidero a decisão atacada. Provejo o agravo para dar sequência ao extraordinário. (...)”
Em sua manifestação, o relator do recurso, ministro Marco Aurélio, considerou o tema “passível de repercutir em inúmeras relações jurídicas”. Ele observou distinções entre esse caso concreto e julgado no RE 586.482 (tratado neste trabalho), em que “o Pleno concluiu pela subsistência da obrigação quanto ao PIS e à Cofins nas situações de vendas inadimplidas”.
O Ministro afirmou que, embora exista semelhança no tocante à questão das vendas inadimplidas, naquele caso não se deliberou acerca de eventual violação ao princípio da não cumulatividade, haja vista a natureza própria das referidas contribuições. “Quanto ao imposto estadual, a controvérsia requer a consideração do aludido princípio, ante a condição que ostenta de imposto sobre o consumo”, ressaltou.
Para ele, a questão “envolve saber se a inadimplência é irrelevante, sob o aspecto jurídico-tributário, mesmo se resultar na oneração do comerciante em vez do consumidor final, como deve ser sempre em se tratando de tributo não cumulativo”.
Desse modo, considerando-se que não houve o necessário debate em torno da não-cumulatividade, também presente no PIS e na COFINS, esse novo julgamento poderá trazer a esperança de que a matéria seja revista também em relação às referidas contribuições sociais.

CONCLUSÕES

As discussões que se desdobraram em relação ao tema da incidência do PIS e da COFINS sobre as chamadas vendas inadimplidas acabaram, como acontece em muitos assuntos tributários, extravasando os limites jurídicos, o que prejudica o debate e traz falhas ou inconsistências no discurso.


O princípio contábil da competência não é critério jurídico da norma de incidência do PIS e da COFINS, mas apenas do IRPJ e da CSLL (que exigem a equiparação de receitas e receitas para se chegar ao lucro fiscal, base de cálculo dessas espécies tributárias).


Por isto, a incidência do PIS e da COFINS pressupõe a entrada efetiva das receitas, já que suas materialidades alcançam as receitas auferidas (e não em potencial), não existindo, ainda, incidência sobre a disponibilidade jurídica da receita, sob pena de se distorcer a base de cálculo e infirmar o critério material, afrontando, ainda, o princípio da capacidade contributiva.


Em relação aos argumentos deduzidos pela jurisprudência, não se mostram corretas afirmações tais como: (i) a inadimplência não constitui condição resolutiva da hipótese de incidência, já que tal fato, em verdade, está fora do campo de incidência; (ii) não poderia o intérprete excluir as vendas inadimplidas da base de cálculo das contribuições, por equidade, equiparando-as às vendas canceladas, já que estamos falando da própria conformação da regra-matriz; (iii) nascimento da relação jurídica juntamente com o fato jurídico tributário, que ocorreria com o registro do direito a crédito (conversão do evento em linguagem competente), pois em primeiro lugar o registro contábil da receita não é linguagem reconhecida pelo direito para a constituição de relação jurídico-tributária, e em segundo não é simplesmente o contrato de compra e venda que aperfeiçoa o fato gerador, como afirmado; (iv) a disponibilidade jurídica da receita seria presumida por lei, compondo o aspecto material da hipótese de incidência, etc.


Por fim, o tema intertextualidade no processo interpretativo em matéria tributária é fértil e pouco explorado, sendo extremamente útil na delimitação dos sentidos da mensagem legislada e definição dos conceitos tributários, bem como na análise da validade dos conteúdos normativos construídos pelo intérprete autêntico.


Veja-se, por exemplo, que a matéria comporta inferências no campo dos planejamentos tributários, já que exige interpretação integrativa com recursos da intertextualidade na fixação de conceitos como simulação, dissimulação, fraude à lei, abuso de direito, abuso de forma, negócio indireto e propósito negocial, todos de direito privado.


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Sobre o autor
Rodrigo Massud

Mestrando em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo elaborado no mestrado da PUC/SP.

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