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O direito sucessório do filho concebido por inseminação artificial post mortem

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Agenda 21/07/2015 às 14:12

5. O DIREITO SUCESSÓRIO DO FILHO CONCEBIDO POR INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM NO BRASIL E NO EXTERIOR

5.1. Introdução

O objetivo deste capítulo final é gerar uma conclusão sobre do posicionamento da legislação brasileira acerca do direito sucessório do filho concebido por inseminação artificial post mortem. Além de sugerir modificações na legislação atual para abranger o caso da melhor forma possível.

Como visto nos capítulos anteriores, o Código Civil não trata de forma satisfatória o processo de inseminação artificial, procurando apenas resolver a questão da paternidade sem procurar regulamentar a problemática, sendo necessário buscar em resoluções as respostas para algumas lacunas.

Além disso, a mesma lei garante o direito sucessório apenas se a criança nascida nessas condições for citada no testamento, excluindo-se totalmente a sua condição de herdeira legítima, apesar de o mesmo Código Civil a classificar com descendente do de cujus (BRASIL, 2002).

Em resumo, na legislação atual, para que a criança nascida por inseminação artificial post mortem tenha direito à herança são necessários três requisitos: que a fecundação in vitroseja homóloga ou heteróloga com expresso consentimento do marido ou companheiro; que essa criança esteja prevista no testamento e que ela seja concebida no prazo máximo de dois anos contados da morte de seu pai.

5.2. Posicionamentos doutrinários

Entre os doutrinadores, existem três pontos de vista diferentes. Há a corrente que concorda com a abordagem do Código Civil e duas que discordam, sendo uma que afirma que a criança não teria direito nem mesmo à sucessão testamentária e aqueles que afirmam que ela deveria ser incluída no rol de herdeiros necessários, como será visto a seguir.

5.2.1. Primeira corrente

A primeira corrente afirma que não se aplica o direito sucessório ao filho concebido por inseminação artificial após o falecimento de seu genitor, ou seja, ele seria incapaz de suceder tanto de forma legítima quanto testamentária.

Gama (2003, p. 1000), um dos defensores dessa corrente, explica sua posição da seguinte maneira:

No estágio atual do direito brasileiro não há como se admitir a legitimidade do acesso da viúva ou da ex-companheira (por morte do ex-companheiro) à técnica de reprodução assistida homóloga post mortem, diante do princípio da igualdade de direitos entre os filhos. Contudo, se a técnica for empregada, a paternidade poderá ser estabelecida com base no fundamento biológico e no pressuposto do risco, mas não para fins sucessórios, o que pode conduzir a criança prejudicada a pleitear reparação dos danos materiais que eventualmente sofrer.

Já com relação à inseminação artificial heteróloga, Gama (2003, p. 1000) escreve o seguinte:

Nos casos das técnicas de reprodução assistida heteróloga (unilateral), os fundamentos relacionados à paternidade-filiação e à maternidade-filiação são diferentes, porquanto apenas um dos cônjuges (ou companheiros) contribui com seu gameta, normalmente a mulher. O critério do vínculo que se estabelece entre a pessoa do casal que contribui com o seu material fecundante é o biológico, havendo origem na consanguinidade. [...]. Os pressupostos variam de acordo com a presença (ou não) do consentimento do marido (ou companheiro) no acesso da sua consorte à técnica de reprodução assistida heteróloga.

Em suma, para o autor, como o direito brasileiro não possui regulamentação específica sobre a inseminação artificial homóloga post mortem, não deveria ser permitido à mãe fazê-la em respeito ao direito sucessório dos outros filhos, já que a criança poderia entrar com uma ação judicial pleiteando a reparação dos danos por não ter participado da partilha dos bens. Além disso, mesmo se a mãe a realizar, para evitar o conflito acima mencionado, a paternidade deveria ser considerada apenas no campo biológico, não no sucessório.

Por outro lado, o autor afirma esse mesmo raciocínio não se aplica à inseminação artificial heteróloga, já que ela é realizada com apenas os gametas da mulher. Ou seja, a criança não deveria ser considerada filha do falecido.

Como foi analisado no capítulo 2, onde inclusive foram relatados outros doutrinadores que também defendem essa mesma tese, a proibição da prática da inseminação artificial post mortem não possui razão de ser, já que a própria Constituição Federal autoriza a realização da adoção post mortem, além de conferir proteção à família monoparental (BRASIL, 1988).

A questão da falta de regulamentação específica poderia ser facilmente resolvida, de acordo com Venosa (2007), com a criação de uma lei que regulamente de forma minuciosa a questão. Dessa forma, esse posicionamento parece ser incorreto.

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5.2.2. Segunda corrente

Para aqueles que defendem a segunda correte, o filho nascido de uma inseminação artificial post mortem deverá ser considerado como herdeiro necessário e, dessa forma, tem o direito de participar da sucessão legítima.

Almeida (2003), um dos que defendem a tese, justifica sua opinião afirmando que o Código Civil tratou do tema de maneira equivocada, pois, para ele, o legislador atual apenas repetiu o que estava contido no Código Civil de 1916, quando não existia a possibilidade de inseminação artificial, no qual possibilita que alguém que esteja morto tenha um filho.

Além disso, o doutrinador afirma que não dar à criança o seu direito à sucessão seria o equivalente a não considerar legítimo à receber a herança um filho concebido em uma relação extraconjugal. Como explicitado a seguir:

Os filhos nascidos de inseminação artificial homóloga post mortem são sucessores legítimos. Quando o legislador atual tratou do tema, apenas quis repetir o contido no Código Civil anterior, beneficiando o concepturo apenas na sucessão testamentária porque era impossível, com os conhecimentos de então, imaginar-se que um morto pudesse ter filhos. Entretanto, hoje a possibilidade existe. O legislador, ao reconhecer efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o prurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o hereditário. Essa sistemática é reminiscência do antigo tratamento dado aos filhos, que eram diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no nascimento. Nem todos os ilegítimos ficavam sem direitos sucessórios. Mas aos privados desse direito também não nascia relação de filiação. Agora, quando a lei garante o vínculo, não se justifica privar o infante de legitimação para recolher a herança. Isso mais se justifica quando o testamento tem aptidão para ser herdeiro. (ALMEIDA, 2003, p. 104).

De fato, conceder esse direito ao filho de uma relação fora do casamento correspondeu um dos maiores avanços do Código Civil de 2002 em relação ao de 1916. Portanto, a princípio, os legisladores deveriam ter o mesmo raciocínio com relação ao filho concebido por inseminação artificial post mortem.

Porém, os doutrinadores dessa tese esquecem de analisar as consequências de se atribuir o status de herdeiro legítimo à criança nascida nessas condições perante os outros herdeiros, os quais já adquirem a posse e a propriedade dos bens por causa do princípio da saisine. Apenas legitimar essa condição poderia representar um atentado contra o direito que essas pessoas já adquiriram.

Dessa forma, esse pensamento somente seria válido se fossem estabelecidas certas condições para que se atribuísse a condição de herdeira legítima à criança nascida pelo método de fertilização in vitro após a morte de seu genitor, por exemplo, a inexistência de outros descendentes do de cujus.

5.2.3. Terceira corrente

Os defensores da terceira corrente são aqueles que concordam com a posição adotada no Código Civil, ou seja, para eles o filho concebido por inseminação artificial post mortem possui direito à sucessão; porém, esse direito é válido apenas a título de herança testamentária.

Para essa parte da doutrina, esse caráter estritamente legal dessa corrente é muito importante para dar segurança jurídica aos herdeiros, já que eles correriam o risco de perderem o seu quinhão na herança.

5.3. O direito sucessório do filho concebido por inseminação artificial post mortem na legislação estrangeira

Após o estudo sobre os três diferentes pontos de vista existentes entre os doutrinadores no Brasil, vale fazer uma comparação com aquilo que se é discutido, acerca desse assunto, em outros países pelo mundo.

Começando esse estudo pela França, onde não é permitida a prática da inseminação artificial homóloga post mortem. Se ela for realizada, a criança só seria considerada filha de sua mãe, ou seja, ela não teria pai e, dessa forma, não teria direito à herança do mesmo.

Na Espanha, ao contrário do que acontece em terras brasileiras, existe regulamentação para a questão das técnicas de reprodução assistida. No caso da concepção artificial homóloga post mortem, a regra é que o material fecundado deve ser implantado no útero da mãe até a data de falecimento do marido, caso contrário a filiação não é reconhecida e a criança não terá direito à sucessão (LIMA JÚNIOR, 2013).

No entanto, o marido pode determinar, através de escritura pública ou testamento, assim como no Brasil, que o seu material genético possa ser utilizado mesmo depois de sua morte, o que, nesse caso, garantiria os direitos sucessórios da criança.

Na Inglaterra, assim como em terras espanholas, é permitida a realização da fecundação assistida post mortem. Porém, lá não existe nenhuma proteção aos direitos sucessórios da criança concebida por esse tipo de fecundação, a não ser que o marido o deixe garantido expressamente em testamento (LIMA JÚNIOR, 2013).

Em Portugal existe um dispositivo jurídico que regula a reprodução humana assistida, a Lei 32/2006 que entrou em vigor em janeiro de 2007. Segundo essa norma, é vedada a utilização de material genético para inseminação post mortem, ainda que feita com prévia autorização do marido. Há, inclusive, sanções de natureza penal em caso de descumprimento:

Artigo 44.º Contra-ordenações

1. Constitui contra-ordenação punível com coima de (euro) 10000 a (euro) 50000 no caso de pessoas singulares, sendo o máximo de (euro) 500000 no caso de pessoas colectivas;

a) A aplicação de qualquer técnica de PMA sem que, para tal, se verifiquem as condições previstas no artigo 4.º;

b) A aplicação de qualquer técnica de PMA fora dos centros autorizados;

c) A aplicação de qualquer técnica de PMA sem que, para tal, se verifiquem os requisitos previstos no artigo 6.º;

d) A aplicação de qualquer técnica de PMA sem que o consentimento de qualquer dos beneficiários conste de documento que obedeça aos requisitos previstos no artigo 14.º

2. A negligência é punível, reduzindo-se para metade os montantes máximos previstos no número anterior (PORTUGAL, 2006, não paginado).

Ainda sobre essa Lei portuguesa, Lima Júnior (2013, não paginado) escreve que:

[...] com o intuito de proteger os interesses da criança, não tornando incerta sua paternidade, estabelece no art. 23, que em caso de violação da norma e realização da inseminação post mortem, deverá ser atribuída a paternidade ao falecido companheiro ou cônjuge, exceto se, à data da inseminação a mulher tiver contraído novas núpcias ou se encontrar vivendo em união estável há pelo menos dois anos com homem que haja consentido o procedimento hipótese em que ele será considerado o pai.

Já com relação à Itália, há muitas restrições com relação à aplicação de técnicas de inseminação artificial por causa da grande influência que a Igreja católica exerce naquele país.

As leis italianas proíbem, por exemplo, a doação de sêmen e de óvulos, barrigas de aluguel e pesquisas que envolvam embriões. No caso da fecundação in vitro, as normas autorizam apenas que pessoas casadas legalmente ou que comprovem uma união estável tenham acesso a esse tipo de método para terem filhos e, mesmo assim, utilizando-se apenas de seus próprios materiais genéticos. Além disso, na Itália a lei veda o congelamento de embriões para utilização posterior, o que torna impossível a inseminação artificial post mortem.

A situação encontrada na Itália é completamente oposta a que se pode analisar nos Estados Unidos. Este país é o único no mundo que não proíbe a venda de sêmen e óvulos humanos, que é feita livremente pela internet através de sites especializados que oferecem, segundo Lima Júnior (2013, não paginado), “[...] verdadeiros ‘cardápios’ de referências genéticas, descrevendo qualidades, etnias e até características de produção universitária e profissional.”

Os Estados Unidos são o país mais avançado com relação à regulamentação da inseminação artificial homóloga e heteróloga, com mais de trinta estados possuindo leis próprias acerca do assunto. (LIMA JÚNIOR, 2013).


6. CONCLUSÃO

Após todas as análises feitas, podemos chegar a uma conclusão final de que, em primeiro lugar, é preciso a criação de uma lei específica para regular a questão da sucessão post mortem, pois o atual Código Civil, como bem observa Almeida (2003), não estava preparado para as atuais evoluções tecnológicas.

O resultado disso é um Código que se preocupa apenas em declarar em quais situações uma criança concebida por inseminação artificial pode ser declarada como filha legítima e, mesmo dando esse status à criança, a retira todo direito de ser declarada como herdeira legítima, o que parece ser uma contradição.

De fato a questão não é tão simples de ser resolvida. Como foi visto, vários países adotam diferentes posturas a respeito do tema. E mesmo dentro do Brasil, existem três correntes doutrinárias distintas. Mas isso não impede um esforço de se procurar a melhor solução para o caso.

Começando com o questionamento se a inseminação artificial post mortem pode ou não ser feita. Como foi escrito diversas vezes, ela deve ser permitida tomando-se como base o princípio constitucional do livre planejamento familiar, a proteção que a própria Carta Magna dá à família monoparental e a ausência de estudos científicos comprovando que possíveis lesões psicológicas em crianças nascidas nessas condições.

Partindo-se da premissa que a fecundação in vitro realizada após a morte do homem pode ser realizada, cabe a análise do direito sucessório da criança nascida nessas condições.

Não existem motivos para que o Código Civil afaste dessa criança o acesso à legítima, deixando-a apenas a parte testamentária. Porém, para que ela tenha esse direito, ela deve possuir o status de herdeira necessária. Para isso, tem que ser observados dois requisitos.

Vale lembrar que essas condições se aplicam apenas à criança nascida pela inseminação homóloga, pois no caso da heteróloga é utilizado sêmen de um terceiro, e não seria correto afirmar que o casal teria poderes para congelar esse material genético para utilizarem quando bem entenderem.

O primeiro requisito diz respeito à autorização expressa e por escrito do marido para que seu material genético seja extraído e manipulado. Se essa autorização não for concedida, a condição de filiação não será perdida, embora deva-se afastá-la da legítima, com a finalidade de preservar o direito adquirido pelos outros herdeiros

O próximo requisito é a existência ou não de outros descendentes do de cujus. Se o falecido tiver outros filhos, deve-se preservar a posse por eles adquirida, através da saisine, dos bens que foram de seu pai. Nesse caso caberia à criança apenas a parte testamentária.

Porém, caso o falecido não tiver outros descendentes, deveria ser dado a ela a parte da legítima que caberia aos ascendentes, já que um filho é mais importante do que os pais do de cujus para o direito das sucessões. Uma prova disso é a ordem estabelecida no artigo 1829 do Código Civil (BRASIL, 2002).

Embora não seja requisito para determinar se a criança teria ou não acesso à legítima, deve ser estipulado um prazo contado a partir da morte do marido para que a mãe utilizasse esses embriões congelados, não necessariamente de dois anos como estabelece a lei, a fim de evitar um custo dispendioso por parte das clínicas de reprodução com gametas que não serão aproveitados.

Não há motivos para se retirar o status de herdeiro necessário do filho concebido por inseminação artificial post mortem. Apenas estabelecendo certos requisitos pode-se dar esse direito a essas crianças nascidas nessas condições sem o risco de atentar contra o direito adquirido por outros possíveis herdeiros. Tudo isso poderia ser melhor regulado se no Brasil existisse uma lei específica sobre o tema como requerem alguns doutrinadores.

Sobre o autor
Guilherme Vieira Portela

Aluno de graduação do 10º período do curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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