1) Breve Introdução. 2) Normas Fundamentais, Princípios, Valores e a Jurisdição. 2.1) Paradigma Constitucional. 2.2) Princípio da Demanda e Impulso Oficial. 2.3) Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional. 2.4) Arbitragem. 2.5) Métodos Autocompositivos. 2.6) Duração Razoável do Processo. 2.7) Boa-fé. 2.8) Paridade e Contraditório. 29) Contraditório na matéria conhecível de ofício. 2.10) Positivação infraconstitucional de critérios hermenêuticos. a) Fins Sociais e bem Comum. b) Dignidade da Pessoa Humana. c) Proporcionalidade e Razoabilidade. d) Eficiência. 2.11) Publicidade e Fundamentação. 2.12) Ordem Cronológica. 2.13) Tempus Regit Actum. 3) Jurisdição e Condições da Ação. 4) Competência Nacional. 5) Cooperação Internacional. 5.1) Auxílio Direto. 5.2) Carta Rogatória
1) Breve Introdução
Depois de longa tramitação e expectativa, tem advento o novo Código de Processo Civil. O sinal de que o Código de 1973 principiava a ficar vetusto era visível nas alterações pontuais já em número significativo que lhe vinham sendo feitas, tendo passado por pelo menos duas grandes alterações e várias outras de menor monta.
O CPC Buzaid, de 1973, era e ainda é um bom diploma processual, mas é tecido para o seu tempo. Após sua implantação, a feição da tutela jurisdicional que passou a ser exigida pela sociedade mudou significativamente, carecendo de um diploma que fornecesse uma tutela com uma nova visão de “tempo do processo”, e que contemplasse mecanismos alternativos à solução de conflitos diante de uma Justiça cada vez mais morosa.
O tempo do processo sem dúvida foi o grande motivo de pressão por mudança. A celerização da comunicação com a internet e o celular[1], as relações de massa[2] e a tutela de novos tipos de direitos[3] geraram um descompasso entre o tempo em que a tutela podia ser prestada e o em que ela deveria ser prestada.
Da mesma forma, o CPC 1973 tinha um esquadro onde as relações se passavam, em tese, entre sujeitos mais próximos da situação de paridade, vale dizer, seu gabarito eram relações privadas entre sujeitos com relativa igualdade de condições diante do processo e envolvendo direitos disponíveis, de ordem privada, em regra.
Com a Constituição de 1988, houve significativo incremento das obrigações estatais o que implicou maior quantidade de relações entre Estado e administrado e aumento da máquina administrativa. Tanto pelas demandas dos administrados, buscando fazer valer estes novos direitos, como ações envolvendo direitos subjetivos dos próprios servidores, se viu crescer exponencialmente as demandas envolvendo entes públicos, onde, como regra, esta presente a indisponibilidade dos direitos.
Maior quantidade de demandas decorrentes de novos direitos e da difusão de seu conhecimento; percepção do fator tempo diferenciada, influenciada por meios tecnológicos; e incremento das ações envolvendo o Estado são a tônica da necessidade de mudanças, que foram sendo feitas pontualmente.
Entrementes, a possibilidade de emendas em um diploma processual é limitada, sob pena de transformação do seu texto em “colcha de retalhos”. Isso já começava a ocorrer com o CPC 1973, dificultando sua aplicação e muito o aprendizado. O indício foi sentido.
Passaremos doravante a descortinar o novo CPC que entrará em vigor em 2016. Embora em linhas gerais mantenha muitas características do CPC Buzaid, tem inovações em vista das quais temos de nos adaptar, e isso depende de que, desde já, tomemos contato com o novo Código.
Por conta disso, à semelhança do que já fiz quando do advento do Código Civil em 2003[4], passo agora a uma apreciação do novo Código Civil, buscando trazer pontos de vista que dezessete anos de labuta na área jurídica me conferiram.
A abordagem não se fará por glosa de cada dispositivo, mas procurará manter-se fiel aos capítulos e divisões, inclusive para facilitar a assimilação da topologia do novo Código, destacando o que de mais relevante se revelar, e procurando efetuar uma comparação com o CPC de 1973.
2) Normas Fundamentais, Princípios e Valores
Já ao princípio é bem visível a mudança de ótica entre os dois Códigos. O novo CPC traz em seu intróito a menção de princípios e regras gerais que iluminam sua aplicação, coisa que não existe no CPC de 1973.
A ausência de menção de regras gerais e princípios no CPC de 1973 nunca foi óbice a que fossem reconhecidos e aplicados alguns, por força do reconhecimento da doutrina e da jurisprudência. Todavia, a expressa menção é representativa do indicativo de uma matriz menos privatista, uma vez que alguns dos princípios e regras versam justamente sobre uma visão que enxerga o processo não só como um mecanismo de solução do conflito inter partes, mas também como um serviço estatal relevante.
É emblemático observar que o CPC de 1973 não trata diretamente de principiologias ou regras de orientação e valores, limitando-se a ingressar direto na tratativa da Jurisdição e da ação. A opção por mencioná-los no novo CPC lhes dá o caráter de vinculatividade e torna inequívoca a opção por eles. Faremos um apanhado destes princípios, regras e valores.
2.1) Paradigma Constitucional: Nunca houve dúvida da submissão das normas processuais infraconstitucionais ao texto constitucional. A norma constitucional é o vetor de orientação hermenêutica, dentro da concepção clássica da pirâmide Kelseniana. Podemos afirmar, inclusive, na esteira do que já fizeram ilustres autores, que há um processo constitucional, como um conjunto de regras de topologia constitucional e que são aplicáveis indistintamente aos diversos ramos do processo.
Estas regras principiam pelas normas insertas no artigo 5º, da CF/88, na condição de direitos e garantias fundamentais e são complementadas pelas normas específicas do capítulo destinado ao Poder Judiciário.
A condição de que o texto constitucional ilumina a interpretação e aplicação do CPC é ditada no artigo 1º, onde consta que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.”
2.2) Principio da Demanda e Impulso oficial: O novo CPC mantém os princípio da demanda e do impulso oficial. O primeiro está intimamente relacionado à condição de inércia da jurisdição, a qual, de seu turno, tem imbricações com a imparcialidade, que é característica fundamental da atividade jurisdicional e corresponde a pressuposto processual subjetivo relativo ao juiz.
Vai de longe o tempo em que se reconheceu que as condições de provocador da atividade jurisdicional e de julgador não poderiam ser condensadas na mesma pessoa, pela potencial perda da imparcialidade. A mera probabilidade de que isso ocorresse já é motivo para que o impedimento ocorra, pois é inegável que o conhecimento prévio do fato implicaria em algum grau, ainda que subconsciente, de pré-julgamento, simpatia, ou antipatia para com a pretensão de uma das partes. Assim nasceu a regra segundo a qual a iniciativa da demanda deve caber à parte mediante propositura da ação, ainda que esta, a parte, seja um órgão do próprio Estado.[5]
No mesmo dispositivo, porém, consta a ressalva de que, paralelamente, incide o princípio do impulso oficial. Segundo este, após iniciado o processo pelo exercício do direito de ação, de par com os direitos subjetivos em voga, titularizados pelas partes, há, também, o interesse publico em ver a demanda resolvida, compelindo o julgador a fazer o processo andar rumo ao seu deslinde natural, seja que espécie de tutela for. Representa um contraponto ao princípio da demanda e decorre da presença de uma verdadeira angularização da relação processual na qual se insere o Estado como titular, também, de direitos e obrigações ainda que de índole puramente “processual”.[6]
A redação do artigo 2º do novo CPC não difere muito da redação do artigo 262 do CPC de 1973. No primeiro consta que “o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei” ao passo que no segundo o texto diz que “o processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.”
Qual o motivo da diferente redação? Primeiro, o novo CPC não regula somente o processo civil, mas, como o diz o artigo 15 do novo Código, também de forma supletiva os processos eleitoral, trabalhista e administrativo. Em segundo lugar, o número de exceções à atividade oficiosa do novo código é maior, de forma que se justifica a menção expressa da presença de exceções.
2.3) Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional: O artigo 3º, caput, do novo Código traz a consagração, em nível infraconstitucional, do princípio da inafastabilidade do controle Jurisdicional, segundo o qual nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito será afastada da apreciação do controle jurisdicional.
Dito princípio encontra consagração constitucional no artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88, sendo o fundamento constitucional do direito de ação.
É importante salientar que o direito de ação, uma vez que adotada a teoria eclética da ação, que concebe a categoria das condições da ação, não implica necessariamente no direito de obter a tutela jurisdicional pretendida com a pretensão manejada. O direito de ação no caso implica direito a não ter sua postulação açambarcada; é um direito de pedir livremente, e todo pedido formulado, coreto ou não, conforme ou não aos pressupostos e condições deverá ter uma manifestação do Judiciário. Ai reside a inafastabilidade. Já para o acolhimento da pretensão vertida no pedido e obtenção do bem da vida concretamente colimado, é mister que o exercício do direito de ação tenha sido exercido em conformidade às condições previstas; que a relação processual nascida deste exercício seja hígida, o que será avaliado sob o prisma dos pressupostos processuais; e que o mérito seja favorável à parte.[7]
Qual o significado de constar de um diploma infraconstitucional citado princípio? O mais imediato impacto é que a invocação deste princípio agora passa a legitimar também a interposição de Recurso Especial.
2.4) Arbitragem: A arbitragem tem menção no CPC de 1973 no artigo 267, inciso VII, aparecendo, a convenção de arbitragem, como impeditivo a que o mérito seja apreciado pelo Judiciário.
A arbitragem foi instituída pela Lei nº 9.307/96. Cuida-se de instituto que teve larga aceitação nos sistemas do commom law, mas que não graça tanto prestigio no sistemas de origem romano-canônica (civil law), predominantes na América Latina.[8]
O novo Código limita-se a afirmar que a arbitragem será admitida na forma da lei em seu art. 3º, parágrafo 1º.
2.5) Métodos Autocompositivos: Os parágrafos segundo e terceiro do artigo 3º, tratam dos meios de composição consensuais. Primeiro, há uma determinação de que sempre que possível os conflitos sejam resolvidos de forma consensual. A meu ver, trata-se de uma exortação inócua, pois qualquer pessoa que labutou na seara jurídica conhece o axioma de que um acordo ruim é quase sempre melhor que uma sentença boa. Já aqueles que estão, ou estiveram na condição de julgadores, como é o caso deste autor, bem conhece o fato de que a sentença sempre desagrada uma das partes e não raro a duas.
Sendo notório que a solução consensual é sempre melhor, já que construída pelas partes que assimilam as perdas mutuas como algo que decorre de suas vontades, mecanismos destinados a implementar este tipo de tratativa vem tendo continua valorização no período mais recente do processo civil, citando-se o exemplo da Lei nº 9.099/96.
Três formas de se obter solução consensual despontam. O acordo judicial no curso do processo levado a cabo pelo juiz; a mediação e a conciliação, estas duas conduzindo ao acordo homologado.
O acordo judicial promovido pelo juízo tem azo na audiência de conciliação, cuja efetiva designação, embora prevista no CPC de 1973, depende de caso a caso.[9]
No que concerne às figuras do mediador e do conciliador, o próprio CPC novo indica qual o critério diferencial no artigo 165. O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, ao passo que mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.
O artigo 3º, parágrafo 3º, do novo Código traz a exortação de que “conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
A previsão da utilização da conciliação e mediação é bem vinda ao passo que a formula de exortação é inócua. Inclusive, são medidas que carecem de implementação de estrutura adequada.
A exegese dos parágrafos 2º e 3º deve ser a de que a previsão da solução consensual autoriza a tentativa de conciliação, inclusive com designação de audiência em todo e qualquer procedimento onde seja possível a solução via acordo.
2.6) Duração Razoável do Processo: Como ressaltado, o fator tempo tornou-se crítico nas últimas décadas, e pode ser apontado como principal causa de defasagem entre a tutela perquirida pela sociedade e aquela deferida pelo CPC 1973.[10]
Por conta da introdução do inciso LXXVIII do artigo 5º da CF/88 operada pela Emenda Constitucional nº 45, passou a figurar, no texto constitucional, como direito fundamental que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Pergunta-se, qual o tempo razoável? Qual duração que pode ser tolerada de um processo? E o que este dispositivo e a redação do artigo 4º do CPC de novo trazem de fato e concretamente para a parte?
A rigor, o citado dispositivo ao dizer que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” faz uma exortação inócua, pois carente de parâmetros e de medidas concretas que confiram mecanismos para suprir a demasia de demora quando ela ocorrer.[11]
Não menos inócua é a exortação do artigo 6º para que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Ora, quer se queira ou não, processo é antagonismo, antítese. Ilusão vã acreditar que os contendores venham colaborar uns com os outros. Inutilidade no texto.
2.7) Boa-fé: Diversamente, ao creditar às partes e a qualquer pessoa que intervenha no processo o dever de comportar-se de acordo com a boa-fé, não se tem uma disposição vazia.
A boa-fé, não só subjetiva, como objetiva, tem ganhado reconhecimento ao longo das últimas décadas como um valor que norteia e permeia todo Direito, traduzindo-se, na prática, na necessidade de um comportamento lhano, reto, destituído do escopo de invocar-se o próprio direito subjetivo, material ou processual, de forma abusiva ou embuída de espírito emulativo.
Esta regra geral encontrará desmembramento normativo nos artigos 77 a 81 adiante vistos amiúde.
É importante referir que este dever abrange a todos os que participam do processo, incluídos terceiros, como as testemunhas e também (e principalmente) o julgador.[12]
2.8) Paridade e Contraditório: O art. 7º do novo diploma processual apregoa que “é assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.”
A parità delle armi no processo é um axioma fundamental que dispensa previsão normativa para ser entendido como regra fundamental, e sua simbologia encontra-se inserta na figura da balança como figura que espelha a justiça.
A rigor, de tal expressão e importância é esta regra que deveria constar como cânone constitucional e estar inserta no artigo 5º, da CF/88, mas com redação diversa da preconizada pelo novo CPC, que não foi muito feliz pela generalidade e imprecisão.
É que esta igualdade não é absoluta e pode ser excepcionada pela própria lei quando motivos relevantes o autorizem para assegurar a igualdade real entre as partes. Permeado pela noção do contraditório, o processo se caracteriza por, em regra, a cada ato de um aparte corresponder um da outra. Mas por vezes, há faculdades que são exclusivas de uma ou outra parte, de forma que, dependo do tipo de demanda e da condição da parte, a igualdade deixa de ser absoluta.
Logo, o que deve ser entendido é que, na ausência de previsão legal em sentido diverso, as partes devem ser tratadas em grau de absoluta igualdade e paridade, especialmente em vista dos direitos processuais fundamentais, a que assim podemos chamar aqueles relacionados a atos relativos à preservação do contraditório e da ampla defesa.
Já o contraditório este é direito fundamental previsto constitucionalmente no artigo 5º, inciso LV, da CF/88. A noção de contraditório é tão cara ao processo moderno que há mesmo doutrina que qualifique o processo como “o procedimento em contraditório”. Esta visão reflete o papel do contraditório como o principal fator de concessão de legitimidade ao processo e é esta legitimidade que lhe dá institucionalização como instância natural de resolução do conflito.[13]
Outro ponto relevante desta concepção reside na possibilidade de criação de uma teoria ampla do processo, abarcando processo não judicial.[14]
Mas o que se extrai de relevante desta disposição do artigo 7°? Ela impõe ao magistrado que, na ausência de disposição legal a respeito, deva tomar sempre medida que resguarde o contraditório, mesmo tomando medida não positivada. Importante notar que resguardar contraditório deve ser entendido como possibilidade de contraditório, pois se o direito é disponível e a parte capaz, pode muito bem optar por não agir. Esta assegurada possibilidade não necessariamente a efetividade.
Como seqüência, o artigo 8º reforça que “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.” Novamente “ouvida” deve ser entendido como deferida possibilidade a que tanto ocorresse. Há, portem, três exceções.
A primeira concerne à tutela provisória de urgência, cuja previsão encontra-se nos artigos a partir do artigo 294, e que será adiante vista.
A segunda diz respeito à tutela de evidência, novidade do artigo 311, igualmente vista mais adiante.
E a terceira é a do artigo 701, que diz respeito à ação monitória no novo CPC.
Comportamentos que violem a paridade de armas e o contraditório, uma vez que previstos em lei infraconstitucional, legitimarão, agora também, em tese, o manejo do Recurso Especial, com invocação direta deste dispositivo.
2.9) Contraditório na matéria conhecível ex officio: Ainda voltado à disciplina do contraditório, o artigo 10 diz que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
No CPC de 1973, a matéria conhecível de ofício é composta basicamente pelas condições da ação, pressupostos processuais[15], decadência e a prescrição[16], além das nulidades previstas no CC, mas de aplicação geral.[17]
Hoje, por força da cláusula constitucional do contraditório, o procedimento de deferi-lo antes de qualquer decisão já é uma praxe consolidada. Entretanto, não raro ocorrer de o julgador conhecer diretamente da questão, quando autorizada a atuação oficiosa, sem que as partes tenham sido instadas a se manifestarem especificamente sobre o ponto.
O dispositivo em questão deixa claro que toda vez que o julgador se deparar com hipótese de julgamento de questão, ainda que possa atuar de ofício e não tenha havido manifestação das partes a respeito, a prolação de decisão somente poderá ocorrer após ter sido conferido prazo para manifestação das partes.
2.10) Positivação infraconstitucional de critérios hermenêuticos: O artigo 8º apresenta largo alcance em termos de inovação legal. Diz, referido artigo, que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”
Como se observa, o dispositivo elenca verdadeiros critérios hermenêuticos que podem levar ao afastamento da aplicação de exegeses estritas e literais. A rigor, a possibilidade de aplicação destes critérios como norteadores da decisão implica possibilidade de afastamento da legalidade formal, permitindo a flexibilização do conteúdo da decisão mesmo diante de dispositivos legais expressos.
a) Fins Sociais e Bem Comum: São conceitos abertos, permeáveis a certo grau de subjetivismo de parte do julgador.
Ambos estão relacionados à tomada em linha de conta de que fatos e circunstâncias que aparentam eficácia inter partes na verdade quase sempre, em alguma medida, tem repercussões em vista de terceiros, e muitas vezes as decisões tomadas à vista de uma demanda individual podem ter significativas repercussões sociais. Sintetizando, representam a dimensão coletiva, potencial ou efetiva, da repercussão da decisão que decorrer de demandas atomizada.
Mas onde encontramos um critério minimamente objetivo para discriminar o que seriam os fins sociais da lei? Em regra, a legislação é infensa ao uso de fórmulas abertas ou que possam dar largo espectro para subjetivismo. Os fins últimos colimados costumam figurar como princípios sem reconhecimento positivado, funcionando como normas de superdireito (Lex legum) não positivadas. Apesar disso, podemos encontrar alguma referência a elas no ordenamento.
Creio que um bom orientador está nos artigos 1 e 3º da CF/88[18]. Óbvio, porém, que estes são indicadores genéricos. A determinação do que sejam os fins sociais da lei e o bem como não refoge a um alto grau de casuística a ser analisado caso a caso, à luz das circunstâncias concretas, com múltiplas variantes.
Na prática, a invocação do bem comum e dos fins sociais servirá para que o julgador possa, de forma fundamentada, e considerando as repercussões diretas e indiretas da decisão a ser tomada, seja em relação aos próprios litigantes ou terceiros, afastar a aplicação de disposições legais a priori cabíveis, a fim de evitar soluções que sejam legais sob o prisma formal, mas iníquas materialmente falando[19].
b) Dignidade da Pessoa Humana: É elemento que tem assento constitucional, tendo previsão no artigo 1º, inciso III, da CF/88 na condição de “fundamento” da Republica Federativa do Brasil.
Cuida-se, igualmente, de um conceito aberto, permeado por ingerências e construções culturais e históricas. Ao falarmos de dignidade da pessoa humana na acepção que a menciona o novo CPC, temos de tomar em linha de conta nosso momento histórico e o conjunto de conquistas sociais e individuais que o caracterizam; os valores promovidos pela sociedade ocidental e os valores cultivados peculiarmente no Brasil.[20]
Grosso modo, e considerada esta premissa, pode se afirmar que a dignidade da pessoa humana se materializa em um conjunto de condições que permite a cada indivíduo ter asseguradas sua liberdade, propriedade, liberdade de acesso ao conhecimento e de expressar-se, e condições materiais mínimas, dentro de um clima de redução máxima da interferência despótica de terceiros. Neste contexto, reconhecidos aspectos da vida de cada um que têm reflexos coletivos, a individualidade, como expressão do livre arbítrio, é o que deve ser preservado.
Assim como nos itens anteriores, o que se tem aqui é uma cláusula derrogatória da legalidade estrita. E ela opera com duplo efeito, positivo e negativo. De um lado, o julgado deve abster-se de produzir comando decisório que comprometa a cláusula de dignidade da pessoa humana. De outro deve em cada caso buscar promovê-la, podendo, em casos excepcionais, e sopesados os valores em eventual confronto (legalidade/objetividade x dignidade da pessoa humana/subjetividade) propender para aquela solução que assegura o segundo.
Cumprirá ao julgador, dando azo à observância aqui ainda mais necessária do artigo 93, inciso IX, da CF/88, fundamentar substancialmente a opção pelo afastamento da legalidade formal estrita, e indicando concretamente em quais e por quais aspectos de sua decisão se buscou afastar o comprometimento da dignidade da pessoa ou promovê-la.
Apesar de ainda um conceito aberto, que defere certo grau de discricionariedade, a dignidade da pessoa humana tem espetro delimitatório mais palpável que os anteriores.
c) Proporcionalidade e Razoabilidade: Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade figuram dentre os denominados princípios constitucionais implícitos[21], o que é de se lastimar, pois denota a falta de visão do constituinte de 1988, já que ambos representam vetores exegéticos da mais alta relevância[22].
Ambos são universalmente reconhecidos e legitimam o afastamento da legalidade estrita e formal. Grassa certa confusão entre ambos dada a similitude de conceitos associados, mas é possível estabelecer-se uma dicotomia.
Pode se dizer que a razoabilidade esta mais associada à pertinência da aplicação de uma norma face ao caso concreto e se traduz em uma regra que pode ser definida como a necessidade de aplicação do bom senso.
Enquanto a razoabilidade está ligada à aplicação ou não da norma, a proporcionalidade esta vinculada à modulação de efeitos da norma.
Ambas buscam adequar o meio a fim, mas enquanto a razoabilidade diz com a escolha dos meios, a proporcionalidade diz com a sua intensidade (daí o conceito de modulação).
De há muito estes princípios apareciam como norteadores na aplicação do ordenamento, especialmente da norma material. Agora, temos uma positivação como balizadores da aplicação da norma processual, o que facilitará o seu manejo como elementos da causa de pedir e legitimadores de recurso especial.
d) Eficiência: Enquanto que os princípios da legalidade e da publicidade já faziam parte do glossário da atividade jurisdicional, notadamente o segundo, o princípio da eficiência é novidade assaz importante.
Razões de ordem histórica e cultural obnubilaram a percepção de um aspecto de suma importância, qual seja, o de que a jurisdição é também um serviço público, que tem destinatários e uma finalidade precípua a ser atingida, in casu a pacificação social pela criação de uma instância “civilizada” de resolução do conflito.
Este serviço público é prestado através de duas espécies de atividades. Uma atividade fim que é a prestação jurisdicional. A outra, atividade de apoio de ordem eminentemente administrativa. Enquanto que o cabimento do princípio da eficiência é inconcusso no caso das atividades de apoio, no que diz respeito à atividade fim, que é jurisdicional, sempre ficou, sua aplicação, obscurecida, pois o artigo 37, caput, da CF/88 teria como destinatário somente as atividades administrativas, dada a topologia de sua inserção no texto constitucional.
Mas há, nesta premissa, rematado equivoco. A ratio essendi da aplicação do princípio da eficiência está presente em todas as atividades do Estado, sendo irrelevante a sua natureza. Motivo alguma autoriza as diferenças existentes entre as atividades tipicamente executivas (que materializam a maioria dos atos administrativos), e as jurisdicionais a afastar a aplicação da eficiência como princípio nortedor destas últimas também. E isso se deve à constatação de que em ambas está presente uma atividade do Estado voltada à satisfação de necessidades do administrado/jurisdicionado, que é quem custeia estas atividades e tem direito a um serviço publico eficiente.
Porque a res publica a todos pertence e por todos é custeada, mas a ninguém especificamente pertence, de forma que devem ser extraídas as máximas possibilidades dos recursos públicos; e porque a atividade jurisdicional também tem os mesmos destinatários e provedores de recursos, também esta última deve pautar-se por entregar a prestação mais abrangente e eficiente com o uso da menor quantidade de recursos possível, o que é a essência definidora da eficiência. [23]
Logo, é muito bem vinda a menção da eficiência como princípio que deve nortear a aplicação da legislação processual civil.
Mas sob o pronto de vista prático, o que representa a positivação do princípio da eficiência no âmbito do processo civil, e de forma indireta, nos outros ramos processuais que o tomam por subsídio?
A invocação confere ao julgador a possibilidade de executar adaptações procedimentais no escopo de conferir maior eficácia a cada recurso, humano ou material, havendo enorme gama de medidas que a casuística possibilita, tendo como balizador a necessidade de que estas medidas não venham a ferir outros cânones de igual ou superior importância, como o seja, v.g, o contraditório. Isso no que diz respeito à condução do processo, pois certamente que, com sobejas, razões, e com mais razão ainda, se deverá buscar dar aplicação ao princípio na atuação dos serviços de apoio, que tem natureza de atividades administrativas.
2.11) Publicidade e Fundamentação: Apesar de o artigo 8º já mencionar a publicidade como princípio a ser observado, o artigo 11 determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.”
Tanto a publicidade dos julgamentos como a necessidade de fundamentação das decisões encontra assento constitucional, logrando amparo no artigo 93, inciso IX, da CF/88.[24] Comecemos pelo segundo aspecto.
A fundamentação das decisões a meu juízo é direito de tal envergadura que, sem sombra de dúvida, deveria constar do rol do artigo 5º da CF/88. Constitui grotesco amadorismo do constituinte que ali não figure. O motivo para isso é simples. A tutela jurisdicional é a depositária do poder de atuar diante de concreta ameaça ou lesão a direito. Volta-se à preservação de todos os direitos subjetivos reconhecidos. Na medida em que se tolerassem decisões sem a fundamentação, a garantia materializada pela tutela jurisdicional simplesmente deixa de existir. Abre-se larga margem ao subjetivismo, que é, em regra, inimigo da Justiça.
O novo CPC avança, conforme veremos mais adiante, na qualificação da fundamentação adequada, dirimindo, com parâmetro legal, várias questões que hoje ainda são suscitáveis de surgir quando à adequada fundamentação das decisões.
A redação do dispositivo é, no entanto, acanhada e incompleta. Isso porque é sabido que há processos para os quais a publicidade é restrita às partes e seus advogados em vista da presença do strepitus fori. Tais são, por exemplo, as causas envolvendo relações familiares. A redação deveria ter o mesmo contorno daquela da Constituição, pois a lógica é que o texto infraconstitucional tenha sempre maior detalhe que o texto constitucional.
2.12) Ordem Cronológica: O artigo 12 do novo CPC traz uma inovação que terá significativa repercussão e que vem em muito boa hora. Cuida-se de vinculação da ordem de julgamentos à cronologia da conclusão[25] para julgamento.
A medida é importante para evitar situações relativamente comuns, onde os processos mais volumosos ou problemáticos vão tendo seu julgamento relegado.[26] Uma vez que o direito a uma tutela célere e tempestiva foi guindado a alçada de direito constitucional e consta do novo Código, deve haver o firme compromisso do julgador em por fim ao processo. Deve ser abolida a postura segundo a qual, quando em voga direitos privados, o processo é interesse somente das partes. Há em todo processo o interesse que também é público, e também é do Estado Juiz, de resolução rápida do conflito, interesse este que não se limita somente ao escopo de evitar o acúmulo de processos, mas que deve ser tomado em linha de conta em cada processo em curso. O juiz deve ver o processo como um inimigo a que se deve dar renhido combate.
A rigorosa observância de cronologia de conclusão para julgamento cria mais um mecanismo de controle que opera em fase crucial do processo, impedindo a sua estagnação.
A lista de cronologia deve ter ampla publicidade, havendo determinação também de sua disponibilização na internet. Mas há o estabelecimento de exceções à regra que permitirão o julgamento sem que ela seja vinculativa. Elas estão previstas no parágrafo segundo deste artigo e são:
a) As sentenças proferidas em audiência[27], homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido: As primeiras por óbvio contemplam questões já em curso e a audiência tanto pode ser conciliatória como de instrução. No caso das primeiras, não ocorrendo acordo, pode ser reconhecida situação de extinção do feito sem apreciação meritória, ou pode ser caso onde dispensada a instrução, e, neste caso, pode o julgador passar a conhecer direto das questões meritórias.
As homologações de acordo podem contemplar questões já postas em juízo ou não, no segundo caso havendo apenas pedido de homologação de acordo que foi entabulado extra judicialmente[28].
A improcedência liminar do pedido introduzida pelo novo Código será adiante vista.
b) O julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos: Compreendem ações onde, em regra, há questões predominantemente de cunho legal, e que, uma vez estabelecido o paradigma de julgamento (adiante visto), podem ser julgadas conjuntamente, havendo simplificação da decisão que é repetida para todas. Estas espécies de situações costumam ocorrer mais comumente em demandas envolvendo o Estado ou direitos do consumidor em relações de massa.
c) O julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas: Adiante visto. Neste caso a exceção justifica-se por conta do fato de que um julgamento paradigma poderá ser usado para resolução de vários casos. A rigor, há uma verdadeira extensão de efeitos do julgado.
d) As decisões proferidas com base nos arts. 485 e 932: Compreendendo as decisões que põe fim ao processo sem apreciação do mérito e julgamentos monocráticos pelo relator.
e) O julgamento de embargos de declaração: Como complementação da decisão (caso conhecidos e providos), estão isentos de ordem, devendo ser feita a apreciação na primeira oportunidade.
f) O julgamento de agravo interno: Interponível das decisões monocráticas do relator.
g) As preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça: As preferências são aqueles estabelecidas pontualmente pela própria legislação processual, seja codificada seja extravagante. As metas do CNJ constam de programas estabelecidos especialmente no desiderato de promover com prioridade o julgamento de processos mais antigos.
h) Os processos criminais, nos órgãos jurisdicionais que tenham competência penal: Os feitos criminais tem precedência de julgamento dado o notório interesse publico neles presente e a submissão da pretensão punitiva a prazos de prescrição.
i) A causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada: Comportando apreciação caso a caso e com demonstração efetiva de qual situação de fato implica, por sua natureza ou por suas conseqüências presumíveis, urgência.
A ordem cronológica após inserção do feito na lista de conclusões poderá ser alterada em caso de reabertura da instrução ou conversão do julgamento em diligência[29], devendo ser considerada para efeitos de precedência a nova inclusão em pauta de julgamento posteriormente. Desacolhido o pedido da parte a respeito de mudança na lista, torna o processo ao seu lugar nela.
Outra hipótese de exceção à ordem cronológica e que terá por conseqüência a inserção do feito em primeiro lugar na lista a barca as hipóteses de anulação de decisão sem necessidade de reabertura de instrução e a do artigo 1040, inciso II, do novo CPC, que diz respeito aos recursos especiais e extraordinários repetitivos, sendo no caso o inciso II, dirigido à revisão de acórdão recorrido na origem que contrarie o paradigma estabelecido no julgamento repetitivo. Ou seja, compreende o caso de rejulgamento por conta de contrariedade ao acórdão que decorre do julgamento paradigma.
2.13) Tempus regit actum: No capitulo II, relativo à aplicação das normas processuais, é mantido o princípio do tempus regit actum, ou seja, da irretroatividade da norma processual.
Estabelecida mudança legislativa, a norma opera pro futuro, somente em vista de situações que lhe sejam posteriores à vigência.