- Introdução
Nos dias atuais, com o avanço da medicina, somos presenteados pela ciência da reprodução humana assistida. Pessoas que não tem condições físico-biológicas de serem pais, de terem filhos, através dessas técnicas passam a ter a possibilidade de realizar o sonho da paternidade ou maternidade. E o direito deve reconhecer e fomentar tais técnicas, que visam, quando bem utilizadas e dentro de certos limites, a felicidade da família.
A afirmação do planejamento familiar (art. 226 § 7º da CF) traz consigo o reconhecimento de um direito constitucional de ser pai ou mãe, através do critério natural ou artificial (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 634). Assim como a contracepção, a concepção, seja natural ou artificial, encontra-se inserido no direito ao planejamento familiar, do qual todas as famílias podem se valer (FERRAZ, Ana Cláudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas conseqüências nas relações de família. Juruá. p. 157). Trata-se do princípio da autonomia reprodutiva, que decorre ainda da dignidade, liberdade e privacidade (SARMENTO, Daniel. Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. LumenJuris, p. 43-44), bem como do direito à saúde.
Em outras palavras, a adoção dos procedimentos e técnicas de reprodução assistida encontra guarida nos direitos constitucionais ao planejamento familiar e à saúde, bem como no princípio da autonomia privada e dignidade da pessoa humana.
Todavia, o direito à reprodução assistida não é absoluto, merecendo limites, notadamente aqueles previstos na bioética e em outros valores consagrados constitucionalmente. Exemplo é a resolução 2168/17 do CFM que estabelece normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Proíbe a resolução, por exemplo, que as técnicas de reprodução assistida sejam aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (sexagem) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças do filho que venha a nascer (art. I, inciso 5)[1][2]. Proíbe que em casos de gravidez múltipla decorrente das técnicas de reprodução assistida, se utilize de procedimentos que visem a redução embrionária (art. I, inciso 8), proibindo, ainda, que a fecundação através de técnicas de reprodução assistida tenha qualquer outra finalidade que não a procriação humana (art. I, inciso 6). Por outro lado, admite a seleção de embriões que foram diagnosticados com alterações genéticas causadoras de doenças (art. VI, inciso 1).
Aliás, a resolução 2168/17 do CFM diz qual o papel da reprodução assistida. Aduz a dita resolução (art. I, inciso 1) que as técnicas de reprodução assistida têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação. Conforme a Resolução do CFM (art. II, inciso 1), todas as pessoas capazes que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de reprodução assistida, inclusive pessoas solteiras e casais homoafetivos (art. II, inciso 2), demonstrando, assim, a amplitude de pessoas que podem se valer de tal técnica.
Assim, quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas, cabível a utilização da reprodução assistida. Em outras palavras, as técnicas de reprodução assistida são válidas e podem utilizadas para fins terapêuticos em casos de infertilidade ou esterilidade, podendo, ainda, ser utilizadas para evitar que doenças genéticas graves sejam transmitidas pelos pais à sua descendência (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP). Todavia, conforme art. I, inciso 2, Resolução 2168/17, admite-se a utilização de tal técnica por pessoas saudáveis (sem problemas de infertilidade ou esterilidade), que dentro da sua autonomia reprodutiva e livre planejamento familiar, pretendem se utilizar de tais técnicas de reprodução artificial, no momento mais oportuno de suas vidas. Também poderão ser pacientes pessoas que, por conta de tratamentos ou desenvolvimento de doenças, poderão vir a ter um quadro de infertilidade ou esterilidade futuro.
E estabelece a Resolução 2168/17 do CFM, inclusive, a idade máxima das candidatas à gestação de reprodução assistida, sendo de 50 anos (art. I, inciso 3, § 1º). As exceções ao limite de 50 anos serão determinadas pelo médico responsável, através de fundamentos técnicos e científicos, após o esclarecimento quanto aos riscos envolvidos (art. I, inciso 3, § 2º). Afinal, no art. I, inciso 3, diz a Resolução que as técnicas de reprodução assistida podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o paciente ou o possível descendente. Assim, mesmo que o limite de idade tenha sido estabelecido para o bem da mulher e de sua eventual prole, tal limite não deve ser rígido. Provado mediante prova médica cabal (laudo, parecer, etc.), caso a caso, que não há comprometimento para a saúde da mulher e/ou dos filhos que venha a ter, não há porque se impedir a utilização da técnica, sob pena de afronta à norma constitucional do planejamento familiar.
Enfim, a matéria é regulada pela resolução 2168/17 do CFM (na relação ética médico-paciente), pelo provimento CNJ 63/2017 (que dispõe sobre o registro de nascimento de filhos havidos de reprodução assistida) e também é minimamente regulada pelo CC. Todavia, a temática, como dito, induvidosamente possui base constitucional. E é principalmente com base na Carta Magna que devemos interpretar a reprodução assistida como instrumento de felicidade da família. Assim, a resolução do CFM, que não tem força de lei, mas garante os princípios básicos de utilização das técnicas reprodutivas (MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Bioética e Biodireito. 3ª ed. Atlas. p. 233), bem como o provimento do CNJ (que trata especificamente do registro civil) e a regulação do CC, não devem ser visualizados como um teto normativo, mas sim o piso normativo da matéria.
Por isso que esses regramentos merecem, em determinadas hipóteses, uma interpretação extensiva, o uso da analogia, ou mesmo dos princípios gerais de Direito, notadamente dos princípios constitucionais, especialmente o princípio do planejamento familiar, da autonomia reprodutiva, direito à saúde, liberdade, intimidade e dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, sendo as técnicas de reprodução assistida emanações dos direitos fundamentais à saúde, ao planejamento familiar e à dignidade da pessoa humana, eventuais restrições à técnica de reprodução assistida, para se legitimarem, devem encontrar suporte científico ou jurídico. O direito à reprodução por técnicas de fecundação artificial não possui, por óbvio, caráter absoluto. Contudo, eventuais medidas restritivas de acesso às técnicas de reprodução assistida, só se justificam diante do risco de dano efetivo a bens jurídicos relevantes, o que demandará, muitas vezes, a análise do caso concreto[3].
2. Reprodução Assistida Homóloga
A fecundação artificial homóloga é aquela em que é usado somente o material biológico dos pais - pacientes das técnicas de reprodução assistida. Não há a doação por terceiro anônimo de material biológico (espermatozoide, óvulo ou embrião).
O Código Civil se limita a tratar da presunção de paternidade (presunção pater is est) na reprodução assistida homóloga, aplicável tal presunção no casamento e também na união estável[4], mesmo porque é inequívoco que os companheiros podem se valer de tal técnica de reprodução. Conforme o art. 1597 do CC: presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.
Há a necessidade de autorização prévia, escrita e expressa – consentimento livre e esclarecido informado (Resolução CFM, art. I, inciso 4), de todos os envolvidos, para a reprodução assistida homóloga. Para a submissão às técnicas reprodutivas, deverá haver o consentimento de todos os envolvidos no projeto parental, devendo o consentimento ser livre, esclarecido, escrito e expresso (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP)[5]. Caso tais requisitos não sejam satisfeitos, referida presunção de paternidade deixa de existir. Todavia, há quem defenda que nessa hipótese não se afastará a possibilidade de investigação de paternidade para o reconhecimento da filiação com base no critério biológico[6] (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito das famílias. 8ª ed. Juspodivm. p. 596-598). De outro lado, pode-se compreender que por ausência de vontade procriacional, incabível o reconhecimento da filiação, se tratando de situação análoga ao doador anônimo, onde a ascendência genética é incapaz de perfilhar o fruto da reprodução assistida[7].
Inclusive, pode a reprodução assistida homóloga ser realizada post mortem, após a morte do marido, valendo-se do seu material biológico criopreservado (art. 1597 III do CC), ou se valendo de embrião criopreservado (art. 1597 IV CC). Embora não prevista na lei, ante o princípio da igualdade, também é possível a reprodução assistida homóloga post mortem, quando seja a mulher a falecida (art. VIII da Resolução CFM 2168/17 e art. 17 § 2º do Provimento 63/2017 do CNJ), nesse caso, se valendo, por óbvio, da técnica da gestação de substituição[8]. Enfim, é possível a fecundação e/ou implantação post mortem, desde que haja expresso consentimento autorizando-o, de todos os envolvidos no projeto parental (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP). Para utilização do material genético ou de embrião excedentário após a morte do marido, há a necessidade de autorização prévia, escrita e expressa – consentimento livre e esclarecido informado de todos os envolvidos (Resolução CFM, art. I, inciso 4, art. V, inciso 3,e art. VIII)[9][10], pois não se pode presumir a vontade de ser pai após a morte[11]. Caso tais requisitos não sejam satisfeitos, referida presunção de paternidade deixa de existir. Todavia, há quem defenda que nessa hipótese não se afastará a possibilidade de investigação de paternidade para o reconhecimento da filiação com base no critério biológico[12] (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito das famílias. 8ª ed. Juspodivm. p. 596-598). De outro lado, pode-se compreender que por ausência de vontade procriacional, incabível o reconhecimento da filiação, se tratando de situação análoga ao doador anônimo, onde a ascendência genética é incapaz de perfilhar o fruto da reprodução assistida[13].
Admite-se a reprodução homóloga em outras hipóteses como a separação de fato ou divórcio (ou o fim da união estável), ou seja, para a utilização do material biológico (do ex-marido) ou embrião excedentário há a necessidade de consentimento informado de todos os envolvidos[14] (Resolução CFM, art. I, inciso 4, e art. V, inciso 3). E como dito, caso tais requisitos não sejam satisfeitos, referida presunção de paternidade deixa de existir[15]. Todavia, há quem defenda que nessa hipótese não se afastará a possibilidade de investigação de paternidade para o reconhecimento da filiação com base no critério biológico[16] (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito das famílias. 8ª ed. Juspodivm. p. 596-598). De outro lado, pode-se compreender que por ausência de vontade procriacional, incabível o reconhecimento da filiação, se tratando de situação análoga ao doador anônimo, onde a ascendência genética é incapaz de perfilhar o fruto da reprodução assistida[17].
A retratação do consentimento não pode se dar quando já iniciada a implantação dos embriões.
3. Reprodução Assistida Heteróloga
A reprodução assistida heteróloga se dá quando há a doação por terceiro anônimo de material biológico ou há a doação de embrião por casal anônimo (Resolução CFM, art. IV e art. V, inciso 3). Perceba que a reprodução humana heteróloga pode ser unilateral (material genético de um doador) ou bilateral (material genético de dois doadores ou doação de embrião)[18]. A reprodução assistida heteróloga é espécie de filiação socioafetiva (art. 1593 do CC[19]).
A resolução do CFM (art. IV, inciso 3) fala especificamente na idade limite do doador (50 anos) e da doadora (35 anos) de material genético. A resolução 2168/17 permite a doação de material genético pelo homem e também pela mulher (art. IV, inciso 9). Permitida, inclusive, à mulher, a doação do seu material genético na situação identificada como doação compartilhada (art. IV, inciso 9): quando doadora e receptora, participando como portadoras de problemas de reprodução, compartilham tanto do material biológico quanto dos custos financeiros que envolvem o procedimento de reprodução assistida. Assim, a mulher (em processo de reprodução assistida) pode doar óvulos (de forma anônima) para outra mulher anônima (também em processo de reprodução assistida) que não produz mais óvulos, em troca de custeio de parte do tratamento pela receptora em favor da doadora. Embora não esteja expresso, pode haver a doação compartilhada de óvulos por uma mulher (de forma anônima) em tratamento de reprodução assistida, a qualquer paciente anônimo (dois homens que formam um casal homoafetivo ou mesmo um homem solteiro – Resolução CFM, artigo II, inciso 2) em tratamento de reprodução assistida, em troca do custeio financeiro do tratamento[20].
Persiste a possibilidade de doação de embriões excedentários criopreservados (Resolução CFM, art. V, inciso 3).
Frise-se que vigora na espécie o princípio do anonimato (sigilo)[21], impedindo que seja conhecida a identidade dos doadores dos materiais genéticos e de embriões, bem como dos receptores, não devendo os doadores conhecerem os receptores e vice-versa (resolução CFM – art. IV, incisos 2 e 4)[22]. A resolução do CFM estabelece que em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando- se a identidade civil do doador (art. IV, inciso 4).
Estabelece, ainda, a resolução do CFM que a doação deve ser sempre gratuita (art. IV, inciso 1).
Limita-se o Código Civil a tratar da presunção de paternidade (presunção pater is est) na reprodução assistida heteróloga, aplicável, como visto, ao casamento e união estável. Conforme o art. 1597 do CC: presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Há a necessidade de autorização prévia, escrita e expressa – consentimento livre e esclarecido informado (Resolução CFM, art. I, inciso 4) de todos os envolvidos, para a reprodução assistida heteróloga. Para a submissão às técnicas reprodutivas, deverá haver o consentimento de todos os envolvidos no projeto parental, devendo o consentimento ser livre, esclarecido, escrito e expresso (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP)[23]. Tal consentimento informado configura um reconhecimento prévio ou uma “adoção antenatal”[24] (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 10ª ed. p. 402), gerando presunção de paternidade socioafetiva (art. 1593 do CC), de natureza absoluta, não sendo cabível a impugnação da paternidade com base no critério biológico[25] (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito das famílias. 8ª ed. Juspodivm. p. 601). Todavia, não havendo autorização, não haverá se falar em paternidade daquele que não consentiu, pois não há vínculo biológico, tampouco socioafetivo (MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5ª ed. Forense. p. 531-532)[26].
No tocante à técnica de reprodução assistida heteróloga post mortem, como não contemplada expressamente na lei (o CC trata no art. 1597 tão somente da reprodução post mortem homóloga), tampouco na Resolução CFM (a Resolução CFM, ao tratar no artigo VIII da reprodução post mortem parece tratar somente da reprodução homóloga), defende-se em doutrina, ao contrário do que ocorre com a reprodução homóloga, a inviabilidade da técnica de reprodução heteróloga post mortem (ALBUQUERQUE FILHO, Carlos Cavalcanti. Fecundação artificial post mortem e direito sucessório. Anais do Congresso do IBDFAM). Há quem defenda apenas a ausência de presunção de paternidade na reprodução heteróloga post mortem (MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5ª ed. Forense. p. 531). Para outra parte da doutrina, é possível a utilização de reprodução assistida heteróloga post mortem, desde que haja expresso consentimento autorizando-o de todos os envolvidos no projeto parental (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP); (DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. RT. p. 117); (LEITE, Eduardo de Oliveira. Bioética e Presunção de Paternidade. Considerações em torno do Art. 1.597 do Código Civil. In Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 17-40)[27]. Para os que a admitem, a utilização da técnica de reprodução assistida heteróloga post mortem pode ser realizada, ante o princípio da igualdade, também quando da morte da mulher, desde que haja expresso consentimento autorizando-o de todos os envolvidos no projeto parental, nesse caso, se valendo, por óbvio, da técnica da gestação de substituição[28]. Nesse caso, haveria a necessidade de autorização prévia, escrita e expressa – consentimento livre e esclarecido informado de todos os envolvidos (Resolução CFM, art. I, inciso 4) [29][30], pois não se pode presumir a vontade de ser pai após a morte[31], quanto mais quando o material genético é de outrem. Esse caso configuraria uma espécie de filiação socioafetiva póstuma, em um paralelo, guardadas as devidas diferenças, com a adoção póstuma (art. 42 § 6º ECA). Todavia, caso tais requisitos não sejam observados, não haverá se falar em paternidade daquele que não consentiu, pois não há vínculo biológico, tampouco socioafetivo[32].
Admite-se a reprodução heteróloga em outras hipóteses como a separação de fato ou divórcio (ou o fim da união estável), ou seja, para a utilização da técnica de reprodução assistida heteróloga há a necessidade de consentimento informado de todos os envolvidos[33]. Nesse caso, configurar-se-ia uma espécie de filiação socioafetiva por ex-cônjuges e ex-companheiros, em um paralelo, guardadas as devidas diferenças, com a possibilidade que o ECA (art. 42 § 4º) admite, de adoção por ex-cônjuges e ex-companheiros. E como dito, caso tais requisitos não sejam observados, não haverá se falar em paternidade daquele que não consentiu, pois não há vínculo biológico, tampouco socioafetivo[34].
A retratação do consentimento não pode se dar quando já iniciada a implantação dos embriões.
A técnica de reprodução assistida heteróloga (art. 1597 V do CC) pode perfeitamente ser utilizada pelos cônjuges ou companheiros, hetero ou homoafetivos[35] (Resolução CFM, art. II, inciso 2[36] e ADI 4277 e ADPF 132/STF). Como dito, a concepção, seja natural ou artificial, encontra-se inserido no direito ao planejamento familiar, do qual todas as famílias podem se valer.
A possibilidade do solteiro se valer de tal técnica será analisado a seguir. Também a seguir será analisada a possibilidade de pessoas sem vínculos conjugais se valerem de tal técnica.
4. Monoparentalidade programada
É questionável se a mulher solteira pode se valer da inseminação artificial heteróloga. Trata-se da monoparentalidade programada[37]. Há quem vede tal técnica às mulheres solteiras. Os fundamentos são diversos. A uma porque não se pode admitir o nascimento de filhos sem pai (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 644). Não se pode condenar o filho à orfandade unilateral. Em razão do princípio do anonimato, a criança nasceria sem poder conhecer seu pai, sendo, portanto, incabível, ante o melhor interesse da criança, que tem direito à biparentalidade. A duas porque embora haja o reconhecimento da família monoparental, não se pode incentivá-la. A três porque não se admite a reprodução assistida por mera conveniência.
Para outra parte da doutrina, tem-se admitido, eis que possível a adoção por uma pessoa solteira, além de ser reconhecida constitucionalmente a família monoparental, que goza da mesma proteção de todas as demais formas de família, ante o princípio da igualdade entre as entidades familiares. Ao admitir a adoção póstuma e a inseminação post mortem a legislação acaba por admitir a formação da monoparentalidade (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 5ª ed. p. 201). Ademais, a situação não difere muito das mães viúvas, das mães solteiras ou daqueles filhos que mesmo com a paternidade reconhecida são abandonados afetivamente pelo genitor. Aliás, a resolução 2168/17 do CFM admite expressamente a utilização da reprodução assistida por pessoas solteiras (art. II, inciso 2). E não se trata de utilização de tal técnica por mera conveniência, mas sim com o desiderato de estabelecer família, de ter filho, de ser mãe, mesmo não encontrando um parceiro para tanto. Trata-se da busca da felicidade pessoal através do projeto familiar monoparental. Aplica-se o princípio do planejamento familiar que traz consigo o reconhecimento de um direito constitucional de ser pai ou mãe, através do critério natural ou artificial (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 634). E a lei 9263/96, que trata do planejamento familiar, estabelece no artigo 2º: para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Invoca-se o direito constitucional de ser mãe e o princípio da autonomia reprodutiva, não cabendo restrições a tais valores em razão do sexo ou do tipo de entidade familiar. Ante o direito a ter filhos, como direito fundamental, não há que se criar qualquer impedimento às técnicas que resultem na ausência de um dos genitores, como ocorre na inseminação artificial de mulheres solteiras (BARBOZA, Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização in vitro. Renovar, p. 37-38). Cabível a extensão do acesso às técnicas de reprodução assistida aos solteiros, pois o reconhecimento da família monoparental como entidade familiar, somado com a tutela do planejamento familiar, a monoparentalidade se projeta como direito fundamental, atrelado à dignidade da pessoa humana (WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. RT. p. 216). E mais, não há incompatibilidade do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente com a monoparentalidade programada, se a genitora solteira reúne todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto, pois o direito de dar a vida só poderia ser cerceado ou limitado se a pessoa não apresentasse condições psíquicas para se ocupar de uma criança ou se a intenção de gerar fosse imoral, ilícita ou, ainda, desvirtuasse o princípio da paternidade responsável (BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Renovar. p. 81-86). A família deste novo século não se define mais pela triangulação clássica pai, mãe e filho. O critério biológico, ligado aos valores simbólicos da hereditariedade, deve ceder lugar à noção de filiação de afeto, de paternidade social ou sociológica (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 5ª ed. p. 201). Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho – o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e sentir-se, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e Casamento em evolução. Revista Brasileira de Direito de Família. IBDFAM/Síntese. nº 1. p. 8).
Se a possibilidade da inseminação artificial heteróloga por parte da mulher solteira guarda controvérsias, o que dirá do homem celibatário que pretende se valer de tal técnica. Defende-se que por identidade de razões, cabível a família monoparental projetada pelo homem solteiro, em razão do princípio da igualdade. Ademais, o homem solteiro também pode adotar e a entidade familiar formada por ele e seus descendentes possui estatura constitucional (família monoparental). Lado outro, a resolução CFM expressamente permite a reprodução assistida por pessoas solteiras (art. II, inciso 2), independente do sexo. É evidente que nesse caso, a gestação depende da doação temporária do útero, como expressamente previsto na resolução 2168/17 (artigo VII).
5. Coparentalidade
A reprodução assistida não ocorre somente entre pessoas homo ou heteroafetivas que sejam casadas ou vivam em união estável. A reprodução assistida pode ser utilizada por pessoas sem qualquer vínculo conjugal, mas que tenham um intento comum: o desejo de terem um filho. Explica-se: ao contrário da monoparentalidade programada, em que uma pessoa solteira (homem ou mulher) quer ter um filho sem um parceiro (se valendo, portanto, da reprodução heteróloga e muitas das vezes da gestação em substituição), na coparentalidade duas pessoas querem ter um filho em comum, embora não sejam casados ou vivam em união estável. Nesses casos, a parceria, que pode envolver uma relação amorosa ou não, uma relação sexual ou não, se dá tão somente para a realização de um sonho comum: a geração de um filho.
A coparentalidade é a relação estabelecida entre duas pessoas que deliberam pela efetivação de um projeto parental, dividindo as funções de pai e/ou mãe, atribuindo, aprioristicamente, as responsabilidades de cada um (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Juspodivm. 10ª ed. p. 636). Para tanto, costuma-se realizar um pacto ou acordo, chamado pela doutrina de contrato de geração de filho: trata-se de um contrato expresso ou tácito, entre um homem e uma mulher ou entre duas pessoas, para gerarem um filho, formando-se apenas uma família parental, sem que daí decorra necessariamente uma relação amorosa ou conjugal. Com a compreensão jurídica de que maternidade e paternidade são funções exercidas, a paternidade/maternidade e a conjugalidade puderam ser vistas e engendradas em campos separados. Assim, o tripé que sempre esteiou o Direito de Família, sexo/casamento/reprodução, ficou totalmente alterado. O casamento deixou de ser o legitimador dos atos sexuais e não é mais necessário sexo para haver reprodução. Em outras palavras, ter filhos, criá-los e educá-los não está necessariamente atrelado a uma relação conjugal ou amorosa. Há pessoas que não querem ter filhos e só querem estabelecer uma relação conjugal; outras querem estabelecer uma família conjugal e parental. E há outras que querem ter filhos sem estabelecer relação conjugal. Com o desenvolvimento das técnicas da engenharia genética tornou-se possível estabelecer parcerias de paternidade/maternidade, formando-se apenas uma família parental. A diferença em relação às famílias comuns, é que em vez de se escolher um parceiro para uma relação amorosa ou conjugal, escolhe-se um parceiro apenas para compartilhar a paternidade/maternidade, por meio da combinação de um ato reprodutivo, na maioria das vezes por meio de técnicas de reprodução assistida. Essa nova categoria de família, facilitada pela internet, surgiu como uma alternativa a adoção, à inseminação artificial nas quais não se sabe quem é o doador do material genético, e ao útero de substituição em que se terceiriza a gravidez. Não há lei que regulamente esta matéria. Entretanto, os princípios constitucionais do melhor interesse da criança/adolescente, paternidade responsável, pluralidade das formas de família, responsabilidade, todos sob a égide do macro princípio da dignidade humana, autorizam a liberdade e autonomia dos sujeitos constituírem suas famílias conjugais e parentais da forma que melhor entenderem (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões. Saraiva. p. 184).
Perceba que dentre tantas espécies de famílias, temos a família conjugal, formada a partir da conjugalidade, a exemplo do casamento e união estável. E temos a família parental, que se estabelece a partir dos vínculos de parentescos, sejam consanguíneos, socioafetivos ou por afinidade. Família parental é o gênero que comporta várias espécies, tal como a família coparental. Coparentalidade ou família coparental, se constitui por pessoas que não estabelecem uma conjugalidade. Apenas se encontram movidos pelo interesse e desejo em fazer uma parceria de paternidade/maternidade. Na maioria das vezes o processo de geração de filhos se vale de técnicas de reprodução assistida.
Parcela da doutrina critica a coparentalidade, por ser uma irresponsabilidade intencionada na base da relação humana em que a responsabilidade é mais exigida: a paternidade. Mais que irresponsabilidade, seria um gesto de supremo egoísmo, pelo total descaso pelos interesses, pela segurança e proteção da criança gerada (SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Coparentalidade: egoísmo dos genitores, sofrimento dos filhos. In http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/coparentalidade-egoismo-dos-genitores-sofrimento-dos-filhos/).
Todavia, há quem defenda a família coparental. A família não é mais um fim em si mesmo, mas um instrumento de realização da pessoa humana. Não é mais a pessoa que deve servir à família, mas a família que deve servir à pessoa. Assim, há pessoas que querem se casar, ou viver em união estável, mas não querem ou não podem ter filhos, formando apenas uma família conjugal. Há pessoas que querem ter filhos, mas sem conjugalidade, ou sem sexualidade, ou seja, querem apenas constituir uma família parental. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Coparentalidade abre novas formas de estrutura familiar. In: https://www.conjur.com.br/2017-ago-13/processo-familiar-coparentalidade-abre-novas-formas-estrutura-familiar). Daí surge a coparentalidade, viabilizada muitas vezes pela reprodução assistida. Não há vedação para tanto. A resolução do CFM permite a utilização das técnicas de reprodução assistida a pessoas sem vínculo conjugal atual, ao permitir a reprodução post mortem (art. VIII). Além disso permite a utilização das técnicas de reprodução assistida a pessoas solteiras (art. 2, inciso II). Portanto, não há vedação à utilização das técnicas de reprodução assistida a pessoas sem vínculos conjugais. Impera, nesse caso, os princípios constitucionais da autonomia reprodutiva, da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana, autorizando a liberdade dos sujeitos constituírem famílias parentais.
E não há se falar em violação ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. No mundo globalizado, plural e multifacetado, associado à distinção entre famílias conjugais e parentais, têm aumentado o número de filhos que nascem dessas novas famílias. Não há nenhuma ilegalidade ou ilegitimidade nessas relações. Não há mais filhos ou famílias ilegítimas desde a Constituição da República de 1988. Fazer filhos, planejados ou não, desejados ou não, e independentemente da forma que foi gerado, significa antes de tudo, responsabilidade, um dos mais importantes princípios do Direito de Família, que necessariamente está atrelado ao princípio da afetividade. Em um Estado laico, as pessoas devem ser livres para escolher seguir os caminhos do seu desejo e constituir a família como bem entender. O Estado só deve interferir se essas constituições ferirem direitos alheios. Mas em quê as famílias diferentes das tradicionais interferem ou prejudicam terceiros? Em nada, absolutamente nada. Novas estruturas parentais e conjugais estão em curso. Muitas outras, que ainda nem conseguimos imaginar, virão. Não precisamos temê-las, se vêm em nome do amor. E, se o amor é o que dá sentido à nossa existência, estimula nossa vida psíquica, moral, espiritual, ter filhos sem um amor conjugal é tão legítimo quanto ter um amor conjugal sem ter filhos. Os filhos decorrentes da coparentalidade serão felizes, ou infelizes, como quaisquer outros filhos de famílias tradicionais. Sofrerão bullying como qualquer outra criança ou adolescente. Infelizes são os filhos de pais infelizes, que brigam eternamente, que manipulam, são violentos, fazem alienação parental etc. Os filhos, independentemente de sua origem, serão felizes é na medida do amor e dos limites que receberem dos seus pais (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Coparentalidade abre novas formas de estrutura familiar. In: https://www.conjur.com.br/2017-ago-13/processo-familiar-coparentalidade-abre-novas-formas-estrutura-familiar).
6. Gestação em substituição
Também chamada de doação ou cessão temporária de útero, conforme a resolução 2168/17 do CFM (art. VII) é possível a gestação de substituição quando exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética, em caso de união homoafetiva ou pessoa solteira. Ou seja, não se pode utilizar tal técnica por mera conveniência. Aliás, a resolução (art. VII, incisos 1 e 2) só admite que a gestação de substituição se dê, de forma gratuita, em pessoas pertencentes à família de um dos parceiros, num parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe e filha; segundo grau – irmã, avó e neta; terceiro grau – tia e sobrinha; quarto grau – prima, tia-avó e sobrinha-neta[38]), sendo que os demais casos estarão sujeitos à autorização do CRM[39]. Em todos os casos, deve ser respeitada a idade limite, para a doadora do útero, de até 50 anos (art. I, inc. 3 § 1º). Todavia, as exceções ao limite de 50 anos serão determinadas pelo médico responsável, através de fundamentos técnicos e científicos, após o esclarecimento quanto aos riscos envolvidos (art. I, inc. 3 § 2º).
No caso de cessão temporária de útero, deve ser elaborado um pacto de gestação que garantirá transparência e consentimento em relação ao ato a ser praticado (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP). Como uma técnica de reprodução assistida, há a necessidade de autorização prévia, escrita e expressa – consentimento livre e esclarecido informado (Resolução CFM, art. I, inciso 4), de todos os envolvidos. A Resolução do CFM (art. VII, inciso III) estabelece que deverá ser assinado na doação temporária de útero um termo de compromisso entre os pacientes e a doadora temporária (que receberá o embrião em seu útero), mediante consentimento livre, esclarecido e informado, estabelecendo claramente a questão da filiação da criança. Deverá, ainda, constar no prontuário médico a garantia do registro civil da criança pelos pacientes (autores do projeto parental), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez, bem como a aprovação do cônjuge ou companheiro, apresentada por escrito, se a doadora temporária do útero for casada ou viver em união estável.
A possibilidade de uso de útero alheio elimina a presunção mater semper certa est, que é determinada pela gravidez e pelo parto. Em consequência também cai por terra a presunção pater est, que deriva do fato de que o pai é o marido da gestante e parturiente. Assim, nas hipóteses de gravidez por substituição, ainda que seja a gestante quem recebe a declaração de nascido vivo, imperioso é assegurar aos verdadeiros pais (autores do projeto parental) o direito de registrarem o filho[40][41] (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 10ª ed. p. 404). O provimento 63/17 do CNJ (art. 17 § 1º) estabelece que na gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.
7. Investigação da Origem Genética
O princípio do anonimato, embora importante para o sucesso e fomento da técnica de reprodução assistida heteróloga, não possui valor absoluto, podendo ser relativizado em determinadas hipóteses.
Apesar de assegurado o sigilo sobre a identidade do doador, não se pode deixar de pontuar o cabimento, em determinadas hipóteses excepcionais, da ação de investigação de origem genética contra ele, não para determinar o vínculo parental-filial, mas sim para conhecer a ancestralidade para fins de proteção e preservação da personalidade, da vida e da saúde. De qualquer modo, somente terá guarida esta ação de investigação de origem genética em situações especialíssimas, nas quais, através de ponderação de interesses, esteja evidente a necessidade de proteção de determinados interesses do filho, a sobrepujar o anonimato da reprodução assistida heteróloga, como, por exemplo, no caso de tratamento de saúde que necessite de informações genéticas do doador (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 652-653).
Como dito, tal ação é meramente declaratória, não possuindo efeitos filiatórios, sem que deste conhecimento decorram quaisquer direitos e obrigações entre doador e pessoa concebida (SCALQUETTE, Ana Claudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. Tese de Doutorado da USP). Não se busca o reconhecimento da filiação (art. 17º § 4º do Provimento 63/17 do CNJ) e nem poderia[42], apenas visa o conhecimento da ancestralidade genética, como direito da personalidade.
Inclusive, a resolução 2168/17 do CFM estabelece que em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador (art. IV, inciso 4). A resolução preserva assim o direito à saúde do filho e a identidade civil do doador.
Há quem defenda que o único efeito dessa investigação de ascendência genética seja aquele previsto, analogicamente, no art. 41 do ECA, ou seja, os impedimentos matrimoniais. Assim, a investigação judicial da ascendência genética seria apenas suficiente a, como ocorre em relação à adoção, estabelecer impedimentos matrimoniais em razão dos vínculos biológicos (LÔBO, Paulo. Socioafetividade no Direito de Família. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Ano X. n. 5. IBDFAM. p. 19). Todavia, a resolução do CFM parece se preocupar, de certa forma, com os impedimentos matrimoniais de origem eugênica (incesto), estabelecendo que as clínicas, centros ou serviços onde é feita a doação devem manter um registro com dados clínicos, características e uma amostra de material celular dos doadores (art. IV, inciso 5). E mais: na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) tenha produzido mais de duas gestações de crianças de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes. Um(a) mesmo(a) doador(a) poderá contribuir com quantas gestações forem desejadas, desde que em uma mesma família receptora (art. IV, inciso 6).
8. Direito Sucessório
As técnicas de reprodução assistida geram intensos debates em sede de direito sucessório. Conforme o art. 1.798 do CC, legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. A pergunta que se faz é o exato sentido do termo concepção?
Há quem defenda que a concepção equivale somente a nascituro (AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides de. Inventários e partilhas. p. 41), pois embrião ainda não implantado não se equipara a filho concebido, pois sem possibilidade de progressão fora do útero. Há quem defenda que a concepção artificial, realizada através das técnicas de reprodução assistida, mesmo que realizadas após a morte do titular da herança, geram direito sucessório, sob pena de afronta ao princípio da igualdade filiatória (DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. RT. p. 118).
Sob minha ótica, à luz do princípio da igualdade entre os filhos (art. 227 § 6º CF), sendo o direito à herança de base constitucional (art. 5º XXX CF), a concepção, para o art. 1798 do CC, pode ser dar de forma natural ou artificial, esta através das técnicas de reprodução assistida[43]. A partir da incidência da igualdade constitucional entre os filhos, não se pode subtrair do embrião laboratorialmente concebido, e ainda não implantado, o direito à sucessão (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. p. 95-96). Portanto, quando da morte do titular da herança (data da abertura da sucessão), legitimam-se a suceder tanto os nascituros (estes concebidos natural ou artificialmente e já em formação no útero materno), quanto os embriões ainda não implantados (criopreservados) mas já concebidos artificialmente. Evidentemente que o recebimento da herança só ocorrerá se embrião for implantado no útero materno e venha a nascer com vida, tal qual acontece com os nascituros, que embora legitimam-se a suceder, só recolhem a herança caso venham a nascer com vida (legitimação condicional). O direito de reclamar a herança (ação de petição de herança) prescreverá em 10 anos (art. 205 do CC), contados do nascimento com vida (art. 189 do CC – teoria da actio nata), embora haja impedimento/suspensão da prescrição em favor do absolutamente incapaz (art. 198 I CC).
Em outras palavras, não havendo diferenciação entre a concepção uterina ou laboratorial, é forçoso concluir que ambas estão abarcadas no art. 1798 do CC, em homenagem ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos. A outro giro, se não havia concepção, ou seja, em se tratando apenas de material genético congelado (leia-se: óvulos ou espermatozoides criopreservados), sem que tenha ocorrido a concepção laboratorial (leia-se: embrião criopreservado) ao tempo da morte do titular da herança, não há que se falar em direito sucessório, porque as situações são absolutamente distintas, não havendo assim violação ao princípio da igualdade filiatória (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Sucessões. Atlas. p. 82-84). Assim, nos demais casos em que ocorre a concepção artificial post mortem, não há se falar em direito sucessório, salvo quando beneficiado em testamento a prole eventual (1799 I CC), devendo haver, nesse caso, a concepção (artificial) em 2 anos da abertura da sucessão (art. 1800 § 4º CC), sob pena de ineficácia da cláusula testamentária.