SUMÁRIO: 1.A validade da discussão. 2.Nocões propedêuticas acerca dos conceitos de incidência e dos planos do Mundo Jurídico em Pontes de Miranda. 3. Constitutivistas X Declarativistas. 4. O lançamento como elemento desencadeador de exigibilidade do crédito tributário. 5. O lançamento por homologação. 6.Implicações da teoria pontena sobre prescrição, decadência e isenção tributárias.
1.A validade da discussão
A importância emprestada pela Ciência Jurídica aos temas de direito tributário justifica-se na medida em que incube a este ramo jurídico ordenar o antagonismo de interesses entre o Estado – Fisco e o contribuinte. A legislação da qual se extraem as normas jurídicas disciplinadoras desse conflito de interesses é em muitos pontos criticadas ora pela imprecisão técnica adotada pelo legislador, ora pela má interpretação de seus dispositivos. Os conceitos de fato gerador, obrigação, crédito e lançamento tributários não poderiam fugir a essa regra.
Longe da pretensão de definitividade, tampouco de exaustão, tenciona-se apresentar uma apreensão ponteana da temática, fazendo-se um paralelo com as teorias tradicionalmente postas, com suporte nas categorias universais de Teoria Geral de Direito, todavia, sem se olvidar da sistemática jurídico-positiva brasileira.
2. Noções propedêuticas acerca dos conceitos de incidência e dos planos do Mundo Jurídico em Pontes de Miranda.
Da incidência da norma sobre o fato (suporte fático, "tatbstand" ) nasce o fato jurídico. O fato jurídico passa a habitar o mundo do Direito. Este Mundo, construção lógica, compõe-se dos planos da existência, compartimento pórtico que reclama os elementos de suficiência do suporte fático; validade requer os elementos complementares; e eficácia; etapa de irradiação dos efeitos do fato jurídico.
Tomando como critérios os elementos do suporte fático e a repercussão nos supra mencionados planos, o jurista alagoano classificou em distintas espécies os fatos jurídicos (1).
A teoria de Pontes de Miranda é pertinente, uma vez que a fenomenologia da incidência tributária desde a ocorrência de seus fatos geradores, o nascimento da obrigação, crédito, etc., encadeiam-se numa seqüência que podem ser melhor entendidas dentro das categorias por ele teorizadas.A morte ou a compra e venda de determinado bem dão azo ao nascimento, respectivamente, do fato jurídico em sentido estrito ou o negócio jurídico. Após a juridicização por meio incidência de regras de direito privado, estes mesmos fatos constituir-se-ão em suporte fático para a incidência de regras tributárias. Todavia, o negócio ou fato jurídico em sentido estrito tomam, agora, as vestes de fato jurídico em sentido estrito de direito público, o fato jurídico tributário, ou fato gerador como quer o CTN.
Dada a configuração da hipótese de incidência do fato gerador a regra incide inesgotável e infalivelmente (art. 114 CTN).O fato jurídico tributário adentra ao mundo jurídico, passa pelo pórtico da existência e aporta diretamente o plano da eficácia estabelecendo o liame obrigacional entre o Fisco e o Contribuinte. Os elementos de Teoria Geral do Direito atestam que uma vez configurada a relação jurídica como irradiação dos efeitos do fato jurídico, estabelece-se o liame imputativo com correspectividade de direitos e deveres, ações e pretensões entre os figurantes da relação e, na hipótese de um vínculo obrigacional, como o é a tributária, o crédito (direito) nasceria lógica e temporalmente com o fato gerador. Porém prima facie, não é essa a ilação que se pode extrair do art. 142 do CTN. A partir daí, descortina-se um cenário de embate cujo protagonista é o ato jurídico administrativo do lançamento. Este teria efeito constitutivo ou declaratório do crédito tributário? Em outras palavras, o crédito nasceria com o fato gerador ou com o lançamento? Quais as conseqüências para os institutos da prescrição, decadência e isenção tributárias?
3. Constitutivistas X Declarativistas.
Os que defendem a natureza Constitutivista do lançamento apoiam-se na tradição da escola procedimentalista italiana capitaneadas por Allorio e Berliri. Allorio (2), em síntese, nega a própria existência da obrigação tributária se o crédito não tem exigibilidade. Por outro lado, Berliri, não destoa muito e assevera a inexistência da própria relação se exigibilidade não há, subsistiriam apenas certos efeitos preliminares traduzida numa proteção antecipada ao que será cobrado no futuro.
Na via oposta trafegam os que pregam pela natureza declarativa do lançamento. Com maiores ou menores dissenções, seus adeptos concordam que crédito e obrigação tributários irrompem simultaneamente no mundo jurídico, cabendo ao lançamento o papel secundário de concretizar a obrigação (Spitaler e Paulick) ou de liquidação ( A. D. Giannini) (3), entre outras.
4. O Lançamento como elemento desencadeador de exigibilidade do crédito tributário
Os elementos básicos de Teoria geral do Direito que ficaram gravados nos primeiros tomos do monumental Tratado de Direito Privado são capazes de esclarecer boa parte desta querela que encontra guarida tanto na legislação quanto na doutrina.
Apesar da falta de correição jurídica do legislador, uma interpretação ponteana da matéria assevera que o nascimento do crédito dá-se com o da própria obrigação, ambos dimanando do fato jurídico tributário. O crédito subsiste como núcleo primário da relação jurídica.
O lançamento constitui-se como outra espécie de fato jurídico na forma de ato jurídico stricto sensu (4) de direito público, ato administrativo de natureza dúplice declarativa-constitutiva. Declara o crédito preexistente com a ocorrência do fato gerador, além de constituir a exigibilidade do quantum debeatur. Nas palavras de Pontes de Miranda o lançamento tributário, apesar de ser ato jurídico próprio, é elemento integrativo (5), um plus frente ao do fato jurídico tributário, ou seja, aquele que traz a exigibilidade do tributo pelo Estado em face do sujeito passivo da obrigação. O art. 144 do CTN reforça essa tese dispondo que o lançamento "reporta-se à ocorrência do fato gerador e rege-se pela lei então vigente" (Declaratividade). O §1° do mesmo artigo, por outro lado, municia a porção constitutivista do ato quando possibilita a utilização da nova legislação no que concerne à administração tributária.
A dinâmica da juridicização assentada na existência do crédito a partir do fato gerador com a posterior exigibilidade dentro de um encadeamento de atos e fatos encontra eco em algumas vozes da doutrina. A exemplo, há Alberto Xavier, propugnador da teoria dos graus sucessivos de eficácia (6) ou Paulo de Barros Carvalho que demonstra irresignação: "Que obrigação seria essa, em que o sujeito ativo nada tem a exigir (crédito) e o sujeito passivo não está compelido a qualquer conduta? O isolamento do crédito em face da obrigação é algo que atenta contra a integridade lógica da relação, condição mesma de sua existência jurídica. Agora, se o legislador pretendeu dizer que havia um direito subjetivo de exigir a prestação (crédito), mas que o implemento dessa pretensão ficava na dependência de procedimentos ulteriores, o que se pode afirmar é que não utilizou bem a linguagem."(7)
5. O lançamento por homologação
O intérprete não pode olvidar do sistema positivo traduzido em normas, por isso urge que se aborde o caso do lançamento por homologação ( art. 150 CTN). Quando o contribuinte paga o tributo devido cumpre-se obrigação que tinha por base o crédito existente com o fato gerador. Ora, se o contribuinte paga é porque crédito já existe. Neste casos o crédito nasce com o fato gerador e prescinde do elemento integrativo do lançamento. Adrede, as palavras de Alberto Xavier são pertinentes: "Tenha-se desde logo a presente figura do lançamento por homologação,... , neste não é necessária a prática de um ato administrativo de lançamento antes do pagamento do tributo, de tal modo que a relação tributária se constitui e extingue independemente desse ato jurídico. Aqui é evidente que a eficácia constitutiva da obrigação resulta, por si só, do fato tributário.." (8)
6. Implicações da teoria ponteana sobre a prescrição, decadência e isenção tributárias.
As incongruências acerca de crédito e obrigação da forma como estão postos na doutrina e no CTN se prolongam alcançando os tradicionais institutos da prescrição de decadência. O art. 156 do Código Pátrio enquadra-os como formas de extinção do crédito tributário, o que é muito guerreado pela maioria dos estudiosos
A inércia do titular + o transcurso do tempo constituem-se como elementos nucleares para os fatos jurídicos em sentido estrito da prescrição e decadência. Esta fulmina o direito material. Contudo, boa parte da doutrina nega seu caráter extintivo, pois com fulcro no art. 142 c/c o art. 173 o que não fora lançado, portanto, não constituído, não pode se extinguir. Tal argumento não se sustenta uma vez que como já foi visto, o crédito nasce com a obrigação, veja-se o § 4° do art. 150 do CTN. O caso da prescrição segue a mesma fundamentação, ou seja, o direito de ação (pretensão judicial) se extingue e por via indireta fulmina o próprio crédito tributário. Não é outro o entendimento desposado por Carlos Augusto Jênier : "A decadência atinge, no plano da existência, o fato jurídico tributário, e, por conseqüência, determina a destituição de seus efeitos, dos quais, o principal é a relação jurídica tributária. A prescrição, contudo, não age no plano da existência; sua atuação é verificada no plano da eficácia, não atingindo, propriamente o fato jurídico tributário, mas apenas a a relação jurídica dela decorrente, retirando-lhe, a princípio, o atributo da exigibilidade." (9)
No que toca à isenção, o CTN dispõe equivocadamente acerca de sua natureza jurídica. A norma de isenção enquadrar-se-ia como de pré-excludente de juridicidade (10) de sede infraconstitucional na ótica ponteana, ou seja, são filtros posicionados às portas do mundo jurídico que impedem a incidência da regra sobre determinados fatos. Em outras palavras, sem incidência fato jurídico não há e, tampouco o crédito dele decorrente.
Ao cabo do exposto, salta aos olhos o encontros e desencontros doutrinários e legislativos. O CTN, matéria-prima do intérprete não é dotado de rigor jurídico o que acaba por levar a doutrina em sua esteira. Entretanto, visualizam-se exceções.
Um olhar ponteano sobre a temática nada mais é do que subsumir os conceitos jurídicos-positivos às categoria de Teoria Geral do Direito tão caras à Ciência. Todavia, apesar do rigor metodológico de Pontes de Miranda, uma tarefa hercúlea é desbravar os sertões (11) do direito tributário a propalar sua convicções. Em face de tamanha dificuldade, as palavras do mestre servem de bússola ":Interpretar leis é lê-las, entender-lhes e criticar-lhes o texto e revelar-lhes o conteúdo. Pode ela chocar-se com outras leis, ou consigo mesma. Tais choques têm de ser reduzidos, eliminados ; nenhuma contradição há de conter a lei. O sistema jurídico, que é sistema lógico, há de ser entendido em toda a sua pureza." (12)
NOTAS
1.Devido a delimitação do objeto deste estudo não se descerá aos pormenores da classificação ponteana. Todavia, dada a imprescindibilidade do tema, eis em apertada síntese a conceituação de cada espécie: fato jurídico em sentido estrito é o acontecimento da natureza, independe da conduta humana (a morte); ato-fato a vontade é irrelevante (descoberta de um tesouro ou o pagamento); atos jurídicos lato sensu que são os negócios jurídicos em que impera a autonomia da vontade (compra e venda) ou o ato jurídico stricto sensu, a vontade é essencial mas já com os efeitos delimitados em lei. Sobre o tema remete-se o leitor ao Tratado de Direito Privado, T. I do próprio Pontes de Miranda, ou a Teoria do Fato jurídico. Plano da Existência.do, também alagoano, Prof. Marcos Bernardes de Mello.
2. Apud. Alberto Xavier. Do lançamento Teoria Geral do ato do procedimento e do processo tributário., p. 485/9
3.Ibidem., págs 533 e 537.
4."Atos jurídicos stricto sensu, no direito público, são as reclamações, com as provocações e as interpelações, as comunicações de vontade, como a de que não vai cobrar imposto antes de determinada data.". Tratado das Ações, T. I, p. 22. Ora, o lançamento assume as feições da definição de Pontes de Miranda, como ato de interpelação da obrigação
5. "...atos integrativos, como os denominamos, não compõem o suporte fático do negócio jurídico e, portanto, não interferem quanto á sua validade ou eficácia, mas atuam no sentido de que se produza a sua eficácia final." Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. Plano da Existência., p.47. Onde se diz (negócio), interprete-se ato.
6. "Nascimento, atendibilidade, exigibilidade, realizabilidade e exequibilidade são, assim, apenas momentos distintos da dinâmica de uma única e só situação jurídica – a obrigação tributária.". Alberto Xavier, Do lançamento. Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário, p.588
7.Paulo de Barros Carvalho, Fundamentos Jurídicos da Incidência. p.226.
8.Do lançamento. Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário, p. 558/9.
9.Lançamento Tributário e Decadência. p. 85
10. Cf. Marcos Bernardes de Mello. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Existência., p.76/7
11.Sacha Calmon Navarro Coêlho. Curso de Direito Tributário Brasileiro, in dedicatória, p.V.
12.Tratado de Direito Privado. T.I, p. XII.
BIBLIOGRAFIA
MACHADO.Hugo de Brito. (coord.).Lançamento Tributário e Decadência. Fortaleza: Dialética e ICET, 2002.
MELLO.Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Existência. 3ªed. São Paulo: Saraiva,1999.
CARVALHO. Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 4ª ed.São Paulo:, RT, 1977.
________ Tratado das Ações, São Paulo, Ed.RT, 1970.
XAVIER. Alberto. Do Lançamento. Teoria Geral do Ato. Do procedimento e do processo tributário.2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.