1 INTRODUÇÃO
O ponto de partida do tema aqui apresentado deve ser estabelecido na obrigatoriedade, instituída pelas Constituições contemporâneas, de fundamentação das decisões, garantia contra o arbítrio e a discricionariedade do juiz, e exigência que se concretiza por meio da aplicação das fontes do Direito, entre as quais se insere o precedente judicial, fonte do Direito consubstanciada em um padrão decisório a ser repetido.
A recente incorporação do precedente, originário do common law, e lá existente há mais de mil anos, ao sistema processual brasileiro, de tradição civil law, logo, atrelado à lei escrita, pode explicar a incompreensão do instituto pela comunidade jurídica pátria, em que é ausente uma aplicação satisfatória do precedente judicial.
Muito embora o raciocínio jurídico, compreendido como o processo hermenêutico de construção de sentido para as normas jurídicas, e os modos de justificação da decisão sejam semelhantes em ambos os sistemas, a maneira como o legislador atua em cada um deles, ao codificar o Direito no civil law e ao ser mais reticente no common law, dando espaço à criação jurisprudencial, justifica o grau de familiaridade com o precedente (BUSTAMANTE, 2012, p. 115).
Com efeito, o civil law é marcado pela codificação do Direito romano efetuada pelos glosadores, conjugada à Revolução Francesa de 1789, insurreição que outorgou importância máxima e alcance amplo à lei, de forma a evitar que o Judiciário, advindo da aristocracia, desvirtuasse os ideais revolucionários (ATAÍDE JÚNIOR, 2012, p. 23).
Por sua vez, o common law foi erigido desde o início sobre o case law, e a Revolução Gloriosa de 1688 não foi caracterizada pela desconfiança no Judiciário, inexistindo motivos para subjugar o poder do magistrado ao Parlamento (ATAÍDE JÚNIOR, 2012, p. 29).
Com a crise da legalidade, acentuada no século XXI, o Direito deixa de ser visto como um conjunto puro de regras, passando a incorporar também princípios, cuja concretização envolve a construção de sentido ao caso concreto. Assim, nesse contexto de decadência do positivismo, o Direito volta a ser descrito como uma prática social racional, e não mais como uma ordem criada num ato único e necessariamente arbitrário; logo, torna-se insuficiente a aplicação da fonte do Direito consubstanciada nas regras jurídicas produzidas pelo legislador para fundamentar as decisões (BUSTAMANTE, 2012, p. 116 e 122).
Além da remodelagem da lei, que passou a exigir a construção de sentido das normas, a efervescência do direito jurisprudencial no civil law se deu também por outras razões, entre as quais o constitucionalismo, o qual minou o dogma da lei ao conferir efeito vinculante às decisões emanadas no controle de constitucionalidade; o advento do Estado Social (Welfare State), a partir de quando surgiu um modelo de legislação baseado em normas programáticas (de textura extremamente abertas), cuja responsabilidade pela formação e adjudicação foi confiada ao Judiciário; o surgimento de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, de forma a permitir a adaptação do Direito às mudanças sociais e às particularidades do caso concreto, e cuja aplicação também demanda o poder criativo da magistratura; e o crescente número de causas repetitivas, que vêm eclodindo em virtude de transformações da sociedade, cada vez mais plural e complexa, e que exigem entendimento único para a mesma questão jurídica (ATAÍDE JÚNIOR, 2012, p. 44-62).
Procurando garantir estabilidade, previsibilidade e igualdade diante das decisões, foi contemplado, pelos países de tradição romano-germânica, o precedente, originário do common law. Esse sistema jurídico, ao conceder eficácia vinculante às teses jurídicas de Tribunais (stare decisis), confere integridade ao sistema, pois é garantida a aplicação de um mesmo entendimento a casos análogos incidentes em qualquer jurisdição (ATAÍDE JÚNIOR, 2012, p. 35).
Espelhando essa tendência, o precedente, seja vinculante ou não, vem sendo utilizado há algum tempo como fundamentação das decisões judiciais brasileiras, e, com o advento da Lei n. 13.105/2015, a qual instituiu o Novo Código de Processo Civil, cuja vigência dar-se-á em 17 de março de 2016, o instituto adquiriu maior importância, como será pontuado no segundo capítulo.
Para se compreender como o precedente deve ser manipulado de forma eficaz, é imprescindível estudar como ocorre, no common law, o manejo do instituto em apreço, tarefa que abrange a apreensão dos conceitos de ratio decidendi, obiter dictum, distinguishing e overruling, pormenorizados ao longo do terceiro capítulo.
Desse modo, o objetivo do presente trabalho é justamente a compreensão da correta sistematização do precedente, que será baseada nos ensinamentos do common law, já que inexiste, no ordenamento jurídico pátrio, uma aplicação pátria satisfatória do instituto. Com a vigência do Novo Código de Processo Civil, essa fonte do Direito passará a ser uma constante no meio jurídico, o que torna essencial o domínio do conteúdo aqui exposto.
2. O PRECEDENTE NO SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO
Neste capítulo serão pontuadas, inicialmente, as principais técnicas, vigentes no Direito processual brasileiro, que adotam o precedente (padrão decisório a ser repetido) como fonte do Direito, seja ele vinculante ou não. Após, elencar-se-ão as mais importantes inovações do Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015) que incorporaram o instituto. O conhecimento sobre a existência dessas diversas técnicas ratificará a necessidade de dominar o manejo do precedente, habilidade que será instruída no capítulo terceiro.
Deve ser esclarecido, desde já, que embora as técnicas processuais brasileiras abordadas tenham denominações heterogêneas (súmulas, uniformização da jurisprudência, jurisprudência dominante) e sejam passíveis, diferentemente do precedente do common law, de vinculação ou não, todas prestigiam, essencialmente, métodos cunhados em um padrão decisório a ser repetido, devendo, por isso, serem orientadas pelos procedimentos vislumbrados no common law.
2.1 Técnicas do sistema processual brasileiro que prestigiam o precedente
As principais técnicas já conhecidas que prestigiam precedentes no sistema jurídico brasileiro são (1) as súmulas, vinculantes (art. 103-A da CR[1]) ou de caráter persuasivo (art. 479 do CPC[2]); (2) as decisões definitivas do STF no controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, §2º da CR[3]; par. único do art. 28 da Lei n. 9.868/99[4] e art. 10, §3º da Lei n. 9.882/99[5]); (3) as decisões que deferem liminar em ADIN, ADECON e ADPF (arts. 11, §1º e 21 da Lei n. 9.868/99[6] e art. 5º da Lei n. 9.882/99[7]); (4) as decisões do STF acerca de repercussão geral (arts. 543-A, §5º e 543-B, §2º do CPC[8]); (5) as decisões do STF em Recurso Extraordinário, versando sobre causas repetitivas (art. 543-B, §§ 3º e 4º do CPC[9]); (6) as decisões do STJ em Recurso Especial, versando sobre causas repetitivas (art. 543-C, §7º e 8º do CPC[10]); (7) as decisões dos Tribunais de Justiça em sede de controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal contestados, única e exclusivamente, em face da Constituição estadual (art. 125, §2º da CR[11] c/c o princípio da simetria); (8) a súmula impeditiva de recursos (art. 518, §1º do CPC[12]); (9) a decisão monocrática do relator com base no art. 557, caput e §1º-A do CPC[13]; (10) o julgamento de mérito sem citação pelo juiz de primeiro grau com base no art. 285-A do CPC[14]; (11) o afastamento do reexame necessário com base no art. 475, §3º do CPC[15]; (12) a decisão monocrática do relator com base no art. 544, §4º, II, b e c do CPC[16]; (13) a impugnação de título executivo judicial com base nos arts. 475-L, §1º[17] e 741, par. único do CPC[18]; (14) a decisão do relator com base no art. 120, par. único do CPC[19], entre outras.
2.2 Inovações do Novo Código de Processo Civil que prestigiam o precedente
Exsurgiu, no Novo Código de Processo Civil, importância vultosa aos precedentes. Com efeito, a Exposição de Motivos do Anteprojeto do Novo Código, após informar o problema da existência de posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, deixa claro que foi prestigiada a criação de “[...] estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que venham a decidir os tribunais superiores e até de segundo grau, e se estabilize”, salientando a função paradigmática que os Tribunais Superiores devem desempenhar (BRASIL, 2015b).
De fato, o art. 926 da Lei n. 13.105/2015 determina que aos tribunais cabe uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente; em seguida, o art. 927 resolve que os juízes e tribunais deverão observar (i) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (ii) os enunciados de súmula vinculante; (iii) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial; (iv) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e (v) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (BRASIL, 2015a).
Quanto ao incidente de resolução de demandas repetitivas, o chamado IRDR, o art. 978 do Novo Código (BRASIL, 2015a) torna obrigatória a existência de um órgão, indicado no regimento interno do tribunal, para o julgamento do incidente, ao qual caberá fixar tese jurídica. Esta, nos termos do art. 985, será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos ou aos casos futuros que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem ou venham a tramitar na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive no âmbito dos juizados especiais (BRASIL, 2015a).
Ato contínuo, no art. 988 da Lei n. 13.105/2015 há previsão de cabimento de reclamação para, entre outros, garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade e garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência (BRASIL, 2015a).
De maneira convergente, o Novo Código, abarcando técnicas de manejo dos precedentes, que serão a seguir explanadas, é resoluto ao determinar que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, se, nos termos do inciso V do §1º do art. 489, “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” e, de acordo com o inciso VI do mesmo dispositivo, “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (BRASIL, 2015a).
Outra passagem que ratifica a tônica dada ao correto manejo do precedente no Novo Código de Processo Civil se encontra na seção sobre os Recursos Extraordinário e Especial, no art. 1.029, §§ 1º e 2º (BRASIL, 2015a), segundo os quais, respectivamente:
§ 1o Quando o recurso fundar-se em dissídio jurisprudencial, o recorrente fará a prova da divergência com a certidão, cópia ou citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que houver sido publicado o acórdão divergente, ou ainda com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, com indicação da respectiva fonte, devendo-se, em qualquer caso, mencionar as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados (Grifos nossos).
§ 2o Quando o recurso estiver fundado em dissídio jurisprudencial, é vedado ao tribunal inadmiti-lo com base em fundamento genérico de que as circunstâncias fáticas são diferentes, sem demonstrar a existência da distinção (Grifos nossos).
3. DA UTILIZAÇÃO DO PRECEDENTE AO CASO EM JULGAMENTO NO COMMON LAW
Esclarecido que houve a incorporação do precedente no civil law com o objetivo de reparar deficiências de estabilidade, previsibilidade e igualdade surgidas no sistema, e destacadas as técnicas do sistema processual brasileiro que adotam o instituto, com atenção às principais inovações do Novo Código de Processo Civil, torna-se agora imprescindível estudar como se dá o manejo dessa fonte do Direito no common law, diante da ausência de uma aplicação pátria satisfatória do precedente judicial.
Inicialmente, cabe esclarecer que o precedente, na tradição anglo-saxônica, se fundamenta na rejeição aos casuísmos, tendo o condão de preservar a integridade do Direito, ilustrada, por Dworkin, com a imagem de um romance em cadeia (chain novel), em que cada julgador é o escritor de uma parcela ou capítulo em construção (DWORKIN, 1985, p. 159). Nesse contexto, todo escritor fica adstrito a criar um texto que seja coerente com o que os seus predecessores já escreveram, respeitando a história institucional da aplicação daquele precedente.
A responsabilidade pela continuidade é notável, e a interpretação acaba por se constituir em uma fusão de horizontes: “[...] no que respeita aos precedentes, a interpretação se dá com a fusão do horizonte do intérprete com o horizonte do todo da prática jurídica estabelecida até então.” (RAMIRES, 2012, p. 100). Logo, o todo da tradição se apresenta ao juiz com alguma autoridade, com a qual deve se haver.
Percebe-se, então, que não há grau zero na interpretação, ou seja,
[...] a compreensão da resposta a um caso concreto não é uma ‘primeira palavra’, que se dá no vazio. Cada interpretação está inserida no mundo histórico. Quando o intérprete se vê diante da tarefa de compreender algo, ele não pode atribuir sentidos aleatoriamente, como se nada estivesse a guiá-lo, como se a história se iniciasse e terminasse com suas palavras (RAMIRES, 2012, p. 95).
Nada obstante a vinculação ao passado, o ambiente do common law não é caracterizado pela repetição mimética do que foi dito. Existem técnicas, descritas a seguir, que concedem ao julgador certo grau de maleabilidade, possibilitando-lhe afastar um precedente tanto porque não é aplicável ao caso quanto porque já está ultrapassado.
3.1 A decomposição do precedente: ratio decidendi (ou holding) e obiter dictum
No common law, a cada caso submetido a julgamento, o juiz deve pesquisar se já houve pronunciamento judicial sobre o tema[20] e, constatando a existência, realizar um processo de decomposição do precedente.
Camargo (2012, p. 559) explica como se dá esse processo:
A decomposição tem o objetivo de separar a essência da tese jurídica ou razão de decidir (ratio decidendi no direito inglês ou holding no direito norte-americano) das considerações periféricas (obiter dicta), pois é apenas o núcleo determinante do precedente que vincula (binding precedent) o julgamento dos processos posteriores.
Logo, a ratio decidendi é a regra de direito que foi posta como fundamento da decisão, enquanto obiter dicta (ou, no singular, obiter dictum), são as afirmações e argumentações que, embora possam ser úteis para a compreensão da decisão, não constituem parte de seu fundamento jurídico.
Para auxiliar a compreensão da diferença entre ratio decidendi e obiter dictum, segue um exemplo apresentado por Muscari (1999, p. 82-83):
O art. 53 do Código de Defesa do Consumidor impede que, nos contratos de compra e venda de imóveis, seja estabelecida a perda total das prestações em benefício do credor, caso haja inadimplemento do adquirente. Num contrato celebrado no ano de 1998 houve inadimplemento por parte do compromissário comprador. A construtora pleiteia em juízo a resolução do contrato e a perda das prestações que o adquirente moroso desembolsou até então. Questão relevante, no caso sub judice, é saber se o Código do Consumidor incide nos contratos celebrados antes do seu advento. O tribunal afirma que, veiculando normas de ordem pública, a Lei Federal 8.078/1990 pode reger negócios pretéritos. E vai além, frisando que, mesmo que se entendesse inaplicável o Código de Defesa do Consumidor, face a anterioridade do compromisso, a perda das prestações teria natureza penal compensatória, havendo lugar para a redução a que alude o art. 924 do CC. Supondo que estivéssemos no sistema norte-americano, apenas a tese da efetiva aplicabilidade do Código do Consumidor aos contratos pretéritos seria obrigatória. A ratio decidendi seria: veiculando normas de ordem pública, a Lei Federal 8.078/1990 incide em negócios celebrados antes do seu advento. A aplicabilidade do art. 924 do CC foi afirmada de passagem, apenas para enriquecer a fundamentação e demonstrar que, ainda que não se aplicasse o Código de Defesa do Consumidor, estaria afastada a possibilidade de perda integral das prestações; seria um obiter dictum, portanto.
Marinoni (2011, p. 222) elucida que “A ratio decidendi, no common law, é extraída ou elaborada a partir dos elementos da decisão, isto é, da fundamentação, do dispositivo e do relatório.” Portanto, não se confunde com a coisa julgada material descrita no dispositivo, que dá segurança jurídica às partes, nem com a fundamentação; é uma regra extraída da interpretação de um conteúdo mais amplo, que abarca todas as informações de fato e direito da decisão, de modo que “[...] não é de estranhar que a ratio decidendi nunca tenha sido ligada às decisões favoráveis à parte vencida [...], ou mesmo às decisões favoráveis ao vencedor, mas que não são necessárias para se chegar à solução do caso.” (MARINONI, 2011, p. 245).
O autor noticia que no common law fala-se em julgados com duas rationes, mas deixa claro que cada uma das rationes propicia, individualmente, o mesmo resultado, que beneficia o autor ou que beneficia o réu; assim, não se fala em duas rationes quando há um argumento favorável ao vencido e outro ao vencedor (MARINONI, 2011, p. 241)[21].
Verifica-se, também, que a formação da ratio pode se dar de maneira paulatina, pois “[...] se percebe muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de um único julgado, salvo se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos interessados.” (NUNES, 2011, p. 38).
A tarefa de interpretar o precedente e estabelecer o seu alcance para casos futuros é reconhecidamente um problema enfrentado pelos juristas do common law. “A dificuldade [...] decorre exatamente do fato de que, mesmo na common law, os precedentes judiciais nunca são elaborados para resolver casos futuros.” (RAMIRES, 2010, p. 70).
Como já se disse, mesmo que a ratio decidendi exprima uma matéria de direito, deve-se pensá-la como faticidade, pois não há como “[...] descolar o texto da situação concreta que lhe deu origem.” (RAMIRES, 2010, p. 71). Assim sendo, é evidente que a norma jurídica não é a mesma coisa que o texto do precedente, que está sempre atrelado a um fato.
Existem diferentes métodos para se destacar a ratio decidendi[22], prática a ser exercida pelo operador que aplica ou afasta o precedente, quando a decisão paradigma não delimitar os contornos da regra.
A Teoria de Wambaugh, ou teste de inversão, disciplina que a ratio decidendi é a regra geral sem a qual o caso teria sido decidido de outra maneira (FERREIRA DA SILVA, 1996, p. 51). Contudo, quando o caso em análise possuir dois fundamentos que, isoladamente, conduzem à mesma solução, o teste de inversão faria com que as proposições sempre fossem obiter dicta (MARINONI, 2011, p. 224-225).
A teoria dos fatos materiais, defendida por Goodhart, propõe que a ratio decidendi seja determinada começando de maneira negativa, excluindo-se o que ela não é, e depois identificando os fatos tratados pelo juiz como materiais ou fundamentais, “[...] que são considerados imprescindíveis para que se possa decidir um caso e cuja presença caracteriza aquela situação e outras futuras.” (FERREIRA DA SILVA, 1996, p.51)[23].
Bustamante, ao construir uma teoria sobre precedentes judiciais, explica que a ratio decidendi é obtida por meio de “[...] uma elucidação das premissas normativas tomadas como etapas de justificação de uma decisão judicial.” (BUSTAMANTE, 2011, p. 277).
O autor propõe como ferramenta para a reconstrução das premissas normativas o uso de silogismos jurídicos (estruturados em premissa maior – fatos – decisão judicial)[24], modelo que “[...] decompõe claramente todos os passos seguidos na argumentação jurídica e explicita cada uma das normas adscritas seguidas pelo juiz no caso paradigmático.” (BUSTAMANTE, 2011, p. 278).
Bustamante atenta para o fato de que, para que o precedente seja utilizado como parâmetro para casos futuros, as premissas devem ser compostas por enunciados gerais e universais, de forma que
[...] os conceitos e normas gerais empregados na justificação de um caso X puderem também ser empregados na solução do caso Y e de todos os demais que se apresentem como semelhantes nos aspectos considerados relevantes pelas normas adscritas na enunciação das razões ou fundamentos da decisão tomada no caso X (BUSTAMANTE, 2012, p. 275).
Contudo, o autor informa que o método silogístico para a extração da ratio decidendi, baseado no procedimento lógico-dedutivo, não é suficiente, já que existem decisões judiciais que não derivam logicamente do Direito. Assim, o raciocínio jurídico deve ser complementado por passos não-dedutivos (que caracterizam ‘saltos’, ou ‘transformação’), sendo papel do juiz justificar tais passos (BUSTAMANTE, 2011, p. 280).
O autor elenca quatro formas de decisão-transformação: (1) o juiz estabelece outras normas (também universais) que aclaram, concretizam ou determinam o significado da hipótese de incidência; (2) o juiz exclui determinado universo de casos da hipótese de incidência de uma norma; (3) o juiz cria uma nova hipótese de incidência normativa, v.g., por meio da analogia; e (4) o juiz soluciona conflitos entre normas (BUSTAMANTE, 2011, p. 281).
Cada um dos ‘saltos’ será traduzido por uma premissa intermediária, que constituirá uma ratio decidendi adicional, passível de ser utilizada em casos posteriores. Logo, cada vez que o juiz efetua uma transformação do Direito, introduz “[...] uma premissa intermediária na cadeia de razões necessária para partir da regra abstrata em direção à norma concreta [...]” (BUSTAMANTE, 2012, p. 282).
É nesse sentido que Cross e Harris (CROSS; HARRIS[25], apud MARINONI, 2011, p. 231) propõem que “[...] a ratio decidendi de um caso é qualquer regra de direito expressa ou implicitamente tratada pelo juiz como passo necessário para alcançar sua conclusão, tendo em vista a linha de raciocínio por ele adotada, ou uma parte de sua instrução para o júri.”
Ramires (2010, p. 121) sugere a aplicação da teoria de Gadamer, baseada na primazia da pergunta, para se extrair a ratio decidendi. Segundo o filósofo alemão, a base para o saber é a pergunta (GADAMER, 1997, p. 473). Logo, para o intérprete compreender o caso, deve encontrar a pergunta para a qual o texto do precedente foi resposta (RAMIRES, 2010, p. 125).
Para ilustrar, e esclarecer por fim como se decanta a ratio decidendi, é relevante transcrever o exemplo redigido por Ramires (2010, p. 126-130), que toma como ponto de partida a decisão do STF no HC 82424/RS. Nesse processo, discutiu-se se um sujeito que publicara livros com conteúdo discriminatório contra judeus praticara ou não o crime de racismo, exsurgindo o HC como precedente em casos de acusações de racismo antissemita.
Suponha-se que um juiz deva decidir sobre um caso no qual o réu é o proprietário de uma editora que publica livros diversos, de caráter histórico ou excêntrico, e, nessa condição, tenha editado e comercializado as obras Brasil, Colônia de Banqueiros, de Gustavo Barroso, e O Judeu Internacional (The International Jew), de Henry Ford. Por serem livros de conteúdo notoriamente antissemita, foi denunciado pelo Ministério Público como incurso no artigo 20, §2º, da Lei nº 7.716/89. A defesa, por sua vez, sustenta que uma condenação, ali, feriria a livre manifestação do pensamento, garantida no artigo. 5º, IV da Constituição Federal.
[...]
A primeira coisa que o juiz imaginário percebe é que a conduta do acusado se amolda com perfeição ao que ficou dito na ementa daquele julgamento: “Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comunidade judaica [...] constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade.” [...] ele busca saber detalhes sobre o julgamento. Descobre, em primeiro lugar, que os livros Brasil, Colônia de Banqueiros e O Judeu Internacional (The International Jew) eram justamente dois daqueles que o paciente do HC 82424/RS, Siegfried Ellwanger, havia editado e comercializado. Parecem, assim, aumentar os padrões de identificação entre os dois casos, a indicar que devam ter respostas semelhantes.
Ao mesmo tempo, porém, o juiz percebe uma distinção entre os casos, que pode ser importante. Ellwanger havia editado livros antissemitas de sua própria autoria (como Holocausto: Judeu ou Alemão? – Nos bastidores da mentira do século), além de obras inéditas de outros autores; o réu hipotético, ao contrário, apenas reeditou obras bem conhecidas de autores consagrados no Brasil e no mundo [...]. Além disso, a editora de Ellwanger era dedicada exclusivamente à publicação e divulgação de textos filonazistas; a casa editorial do réu hipotético, por sua vez, publicava uma linha diversificada de obras, sendo aquelas duas apenas um par de espécimes isolados dentre varias curiosidades históricas.
[...]
Quando todo o quadro é levado em consideração, o juiz chega à conclusão que os casos não são iguais, muito embora o réu hipotético tenha editado e comercializado os mesmos livros que Ellwanger. [...]
O princípio da (correta) decisão do HC 82424/RS é a vedação do discurso de ódio (hate speech), por exigência da dignidade da pessoa. As ações de Ellwanger eram as de um nazifacista. Ele não dispunha da liberdade de expressão para divulgar suas ideias porque o que pretendia era disseminar a perseguição sistemática aos judeus. [...]
No caso hipotético de um editor eventual de livros conhecidos que tenham algum conteúdo antissemita, porém, não se pode dizer exatamente o mesmo. [...]
Assim se ilustra a lógica da pergunta e da resposta. As perguntas do julgador do caso presente à decisão do caso precedente o levaram a descobrir a pergunta para a qual aquele texto era a resposta. E com isso, chegou à conclusão de que os dois casos apresentavam perguntas diversas. [...]
Nota-se, então, que a extração da ratio decidendi exige a reconstrução do raciocínio expresso e implícito aplicado ao caso, devendo-se buscar uma regra universalizável, mas sempre contextualizada aos fatos do paradigma.
3.2 A identificação de causas iguais e o distinguishing
Depois de identificada a ratio decidendi de um precedente, o operador deve definir se o caso em julgamento é suficientemente igual ao precedente, demandando resposta judiciária idêntica, ou, ao contrário, se o caso em análise não é suficientemente igual, devendo, portanto, ser decidido de maneira diversa, como ocorreu no caso hipotético recém citado.
Esse ato de comparar, constatar disparidade e afastar a aplicação obrigatória do precedente é denominado de distinguishing, uma das espécies das judicial departures, gênero dos casos de afastamento de uma regra jurisprudencial[26].
O afastamento do precedente, saliento, não provoca seu abandono. A norma permanece válida; todavia, não é aplicada em determinado caso concreto. Marinoni (2011, p. 327-328) alerta que o “[...] poder para fazer o distinguishing está longe de significar sinal aberto para o juiz desobedecer a precedentes que não lhe convêm.” Explica que a existência de fatos diferentes não enseja a inaplicabilidade imediata do precedente; o juiz deve “[...] argumentar para demonstrar que a distinção é material, e que, portanto, há justificativa para não se aplicar o precedente.” (MARINONI, 2011, p. 328).
Segundo Camargo (2011, p. 565),
Para que dois casos sejam considerados iguais, não é necessário que a igualdade seja absoluta, isto é, em todos os aspectos, em todos os detalhes. Diante de um novo caso, é preciso identificar o ponto efetivamente nuclear do precedente invocado, de modo a possibilitar ou não o seu enquadramento ao caso em exame, pois, como sempre há uma ou outra minúcia a distinguir dois processos, a imposição da condição de ocorrência exata, total e irrestrita similitude entre novo caso e caso paradigma inviabilizaria totalmente o sistema de respeito aos precedentes. Como há diferenças que são irrelevantes para a comparação da questão jurídica, estas devem ser desprezadas.
Aclara o autor que a obrigatoriedade de tratamento igual incide quando os dois casos são juridicamente iguais, nada obstante sejam diferentes em alguns aspectos fáticos irrelevantes:
[...] imagine-se a existência de um precedente que imponha a divisão de despesas em um condomínio atípico, ou seja, em um condomínio informal de casas que estão todas na mesma região. Se um Tribunal optar por ordenar a divisão de despesas neste caso, idêntico tratamento deve ser dispensado para demandas futuras que tratem da mesma questão, ainda que nos casos subsequentes o condomínio informal seja, por exemplo, de lojas comerciais ou de escritórios. É que é indiferente se o condomínio atípico existe entre casas ou entre lojas comerciais ou escritórios, pois o que deve ser comparado é se havia ou não o condomínio informal (CAMARGO, 2011, p. 565-566).
Na mesma linha, Ramires (2010, p. 137) exorta o emprego de uma visão principiológica para se fazer distinções entre casos. Esclarece que não é a semelhança de fatos, a rigor, que determina a aplicabilidade de um precedente, sob o risco de se hiperintegralizar o Direito (incidente quando um caso com alguma especificidade e restrição acaba se tornando um parâmetro geral para casos subsequentes que não guardam suficientes padrões de identificação com ele); em verdade, são os princípios norteadores do caso a fonte para se estabelecer o campo gravitacional do precedente.
O juiz que compreender o princípio envolvido no julgamento do HC 82424/RS não vai condenar por crime de racismo o hipotético editor de excentricidades ou o jornaleiro que tiver O Judeu Internacional disponível em sua banca de revistas. Não obstante, ele não deixará de usar o HC 82424/RS como indício formal de uma aplicação principiológica do direito para condenar pelo mesmo tipo penal o autor de um artigo de jornal que negue o holocausto e responsabilize os judeus por todos os males do mundo. E veja-se que a ementa do julgamento falava em “escrever, editar, divulgar e comerciar livros”, mas não em publicar artigos de jornal (RAMIRES, 2010, p. 136).
Com essa visão principiológica, as distinções são feitas quando efetivamente há diferença; caso contrário, a parte sofreria uma distinção sem uma diferença que a justificasse (RAMIRES, 2010, p. 143-144).
Deve-se deixar claro que esse método de distinções, que prioriza os princípios ao invés dos fatos, de maneira alguma está a afirmar o afastamento dos fatos na operacionalidade do precedente, indo de encontro com o que já se afirmou alhures. Com efeito, a ratio decidendi deve ser extraída tomando-se por base os fatos do precedente, mas a sua extensão não será automática quando encontrar fatos semelhantes, mas sim princípios semelhantes, advindos muitas vezes de circunstâncias diversas.
Aprofundando o tema, apresento o método para manejar o distinguishing descrito por Bustamante (2012, p. 473), segundo o qual o instituto advém quando, no momento da aplicação do precedente:
(1) ou se estabelece uma exceção anteriormente não reconhecida – na hipótese de se concluir que o fato sub judice pode ser subsumido na moldura do precedente judicial citado; ou (2) se utiliza o argumento contrario para fixar uma interpretação restritiva da ratio decidendi do precedente invocado na hipótese de se concluir que o fato sub judice não pode ser subsumido no precedente.
Na primeira modalidade, denominada pelo autor de ‘redução teleológica’, ocorre uma diminuição das situações compreendidas na hipótese de incidência do precedente por razões de equidade, constatadas pelo aplicador ao interpretar o caso concreto, detentor de circunstâncias adicionais não previstas no paradigma. Logo, o intérprete deve afastar a regra ampla do precedente, isto é, deve aplicar a técnica de redução de significado da norma, quando constatar uma situação excepcional cujo tratamento baseado na ratio decidendi do paradigma torná-la-ia injusta, segundo suas experiências históricas (BUSTAMANTE, 2012, p. 474-479).
Pela via do argumento a contrario, diferentemente, “ [...] conclui-se que os fatos sub judice não podem ser subsumidos na regra jurídica cuja aplicação se pretende evitar no caso concreto.” (BUSTAMANTE, 2012, p. 488). Aqui, não se faz uma exceção à hipótese de incidência do precedente. Conclui-se, desde o início, que a situação em análise nunca foi acobertada pela ratio decidendi do paradigma, devendo, portanto, ser regulada de maneira diversa.
Marinoni também descreve as duas modalidades de distinguishing: afirma que, numa primeira visão, o distinguishing é uma declaração negativa, isto é, declara, depois de efetuada uma distinção fática convincente, que “[...] o direito evidenciado no precedente não deve regular o caso sob julgamento.” (MARINONI, 2011, p. 329).
Na outra hipótese, o distinguishing atua sobre casos cujos fatos estão presentes no precedente, mas aos quais se somam novas circunstâncias, provocando, consequentemente, pequenas correções na hipótese de incidência (MARINONI, 2011, p. 329-330).
3.3 A técnica de revisão do precedente: o overruling
O overruling, outra espécie de judicial departures, além de afastar a aplicação do precedente ao caso concreto, objetiva infirmar a validade da regra paradigma. Logo, “[...] as razões que o justificam devem ser ainda mais fortes que as que seriam suficientes para o distinguished.” (BUSTAMANTE, 2012, p. 388).
Nos países de tradição do common law, o overruling é realizado por uma Corte superior em relação a um precedente seu ou das Cortes inferiores (ATAÍDE JÚNIOR, 2012, p. 94).
Acompanhada de uma elevada carga de argumentação jurídica, a revisão do precedente pode ocorrer, segundo Wambier (2009, p. 135-136), “[...] quando se detecta a necessidade de mudança, ou porque (a) se considera agora, a norma errada; ou porque (b) se considera agora a norma errada, embora ela não estivesse errada quando foi criada.”
Consoante Marinoni (2011, p. 391 e 402), são hábeis para justificar a revogação de um precedente a falta de congruência social e o surgimento de inconsistência sistêmica, bem como o chamado ‘erro’ ou ‘equívoco’.
Um precedente deixa de corresponder aos modelos de congruência social no momento em que se distancia das vigentes proposições morais, políticas e de experiência. Deixa de ter consistência sistêmica quando não guarda coerência com outras decisões. E, por fim, é considerado errado somente na hipótese de um equívoco evidente, “[...] de modo a dar à Corte a nítida ideia de que a perpetuação do precedente constituirá uma ‘injustiça’.” (MARINONI, 2011, p. 392 e 402).
Completa o autor afirmando que a revogação de um precedente depende da
confrontação entre os requisitos básicos para o overruling – ou seja, a perda da congruência social e o surgimento de inconsistência sistêmica – e os critérios que ditam as razões para a estabilidade ou para a preservação do precedente – basicamente a confiança justificada e a prevenção contra a surpresa injusta. (MARINONI, 2012, p. 393)
No mesmo sentido, numa visão do romance em cadeia de Dworkin, Bustamante (2012, p. 388) alerta que, independentemente da tradição jurídica ou da força do precedente no caso concreto, “[...] sempre que um juiz ou tribunal for se afastar de seu próprio precedente, este deve ser levado em consideração, de modo que a questão do afastamento do precedente judicial seja expressamente tematizada.”
O overruling pode ter retrospective effects (efeitos pretéritos) ou prospective effects (efeitos para o futuro). Quando se atribui efeitos pretéritos (ex tunc), o jurisdicionado é julgado com base em regra nova, inexistente quando agiu ou se omitiu de maneira indevida, sendo surpreendido com novo padrão de conduta (CAMARGO, 2012, p. 569). Como explica Wambier (2009, p. 135), “[...] a parte sucumbente vai ser ‘punida’ não porque deixou de cumprir um dever que tinha, mas porque deixou de cumprir um dever criado depois de ocorrida a sua conduta”.
Por outro lado, quando se aplica o overruling com efeitos prospectivos, o novo entendimento vigerá da data da decisão para frente (ex nunc), ou de outro marco temporal futuro (pro futuro), estabelecido pelo tribunal (CAMARGO, 2012, p. 570).
4. CONCLUSÕES
Muito embora surgidos em circunstâncias políticas e culturais diferentes, o civil law e o common law, principais sistemas jurídicos da família ocidental do Direito, dinamizam um intercâmbio de institutos e conceitos. O fenômeno é hoje uma tônica no Direito brasileiro, de tradição civil law, mas que incorporou de maneira aprofundada o precedente, fonte do Direito mais rotineiramente usada no common law.
Já presente no âmbito das súmulas e do controle de constitucionalidade, o feito foi intensificado pelo Novo Código de Processo Civil, o qual estabeleceu um elenco de precedentes a serem observados por juízes e tribunais; prestigiou a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e, simultaneamente, ampliou as hipóteses de cabimento da reclamação para garantir a observância das teses jurídicas estabelecidas. Ainda, ao longo do novo Codex foram pontuadas as corretas técnicas de manejo dessa fonte do Direito, a qual deve sempre ser acompanhada pela análise das circunstâncias fáticas que ensejaram a criação do paradigma.
Diante da sedimentação do uso do precedente, torna-se imprescindível, aos operadores do direito brasileiro, dominar o correto manejo dessa fonte do Direito, habilidade que deve ser baseada nas técnicas utilizadas no common law, já que inexiste uma aplicação pátria satisfatória do precedente judicial.
Conforme a prática anglo-saxônica, o primeiro passo ao se manusear um precedente é decantar dele a ratio decidendi, isto é, a razão de direito aplicada no julgamento, que deve consubstanciar uma regra universalizável, mas sempre contextualizada aos fatos do paradigma. Com as obiter dictum não se confunde, já que estas espelham as afirmações e argumentações que, embora possam ser úteis para a compreensão da decisão, não constituem parte de seu fundamento jurídico.
Depois de identificada a ratio decidendi de um precedente, o operador deve definir se o caso em julgamento é suficientemente igual ao precedente, demandando resposta judiciária idêntica, ou, ao contrário, se o caso em análise não é suficientemente igual, devendo, portanto, ser decidido de maneira diversa.
Esse ato de comparar, constatar disparidade e afastar a aplicação obrigatória do precedente é denominado de distinguishing, uma das espécies das judicial departures, gênero dos casos de afastamento de uma regra jurisprudencial. A existência de fatos diferentes não enseja a inaplicabilidade imediata do precedente; em verdade, são os princípios norteadores do caso a fonte para se estabelecer o campo gravitacional do instituto.
Por fim, o overruling, outra espécie de judicial departures, além de afastar a aplicação do precedente ao caso concreto, objetiva infirmar a validade da regra paradigma. Acompanhada de uma elevada carga de argumentação jurídica, a revisão do precedente pode ocorrer ou porque (a) se considera, agora, a norma errada; ou porque (b) se considera agora a norma errada, embora ela não estivesse errada quando foi criada.
O escopo do presente trabalho foi salientar a existência de diversas técnicas processuais brasileiras que prestigiam métodos cunhados em precedentes e, consolidada essa constatação, justificar a necessidade da adoção, pelos operadores do direito pátrio, de uma correta teoria do precedente judicial.
Embora a prática brasileira seja caracterizada pelo uso defeituoso dessa fonte do Direito, extrapolaria os objetivos deste artigo abranger essa análise. Logo, o que se pretende é alertar para a necessidade de se incorporar uma teoria do precedente judicial ao sistema processual brasileiro, cujo conteúdo oriente a maneira de se extrair a regra de direito (ratio decidendi) e determine sua força vinculante, delineando, também, os passos para a modificação das teses jurídicas estabelecidas (distinguishing e overruling).
REFERÊNCIAS
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