TRÁFICO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS DIANTE DA ADOÇÃO INTERNACIONAL.
1) O TRÁFICO
O Protocolo de Palermo é o instrumento legal internacional que trata do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças. Completa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e deverá ser interpretado em conjunto com a mesma. Foi elaborado em 2000, tendo entrado em vigor em 2003 e sido ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.017 de 12/03/2004, que o promulgou como “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças”.
Trata-se do primeiro instrumento global juridicamente vinculante com uma definição consensual sobre o tráfico de pessoas, qual seja:
Art. 3º a) A expressão "tráfico de pessoas" significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a);
c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo;
d) O termo "criança" significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.
Essa definição tem o fim de facilitar a convergência de abordagens no que diz respeito à definição de infrações penais nas legislações nacionais para que possa haver uma cooperação internacional eficaz na investigação e nos processos em casos de tráfico de pessoas. Um objetivo adicional do protocolo é proteger e dar assistência às vítimas de tráfico, com pleno respeito aos direitos humanos.
Depois do tráfico de drogas e armas, o tráfico de pessoas é o mais lucrativo do crime organizado, cerca de 1,2 milhões de crianças são vendidas por ano no mundo.
Os crimes acontecem em maiores proporções em países menos desenvolvidos, devido ao poder aquisitivo das famílias, que se tornam vítimas fáceis para os criminosos, acreditando ser melhor para a criança uma “família rica”, como prometem os agentes desse crime, ou até aceitando dinheiro em troca da criança por não terem condições de criá-la.
O tráfico de crianças está diretamente associado a uma exploração posterior por outras pessoas, geralmente serão forçadas a ganhar dinheiro trabalhando. No caso de recém-nascidos e de meninas, crianças ou adolescentes, a satisfação das pessoas que as controlam é exercida de outra forma, serão vítimas de tráfico com fins de adoção ou casamento. As formas de exploração podem ser: exploração sexual para fins comerciais (para a prostituição ou a pornografia); casamento; trabalho doméstico; adoção; trabalho forçado; mendicância; qualquer outra atividade ilícita (como o roubo); qualquer tipo de trabalho que coloque em perigo a saúde ou a vida da criança.
2) HISTÓRICO DA ADOÇÃO INTERNACIONAL
A adoção internacional se popularizou após a Segunda Guerra Mundial, em face do grande número de crianças órfãs, as quais a própria família biológica não tinha condições de acolher. Inúmeras crianças da Alemanha, Grécia, China e outros países foram adotadas por americanos e europeus.
Milhares das crianças adotadas após a Segunda Guerra Mundial foram levadas do seu país de origem sem a documentação necessária à regularização da cidadania. É a partir desse ponto de fragilidade que surgem os primeiros atos de tráfico de crianças, valendo-se, em muito, da falta de controle e de burocracia; fez-se, por isso, necessária a criação de normas para garantir uma adoção segura e proteger o melhor interesse da criança.
As mudanças legislativas tiveram início no final da década de 80, ante o crescente e incontrolável tráfico. Nessa época, foi descoberta uma das maiores quadrilhas de tráfico internacional de crianças que atuava, principalmente, nos estados do Sul do Brasil e vendia suas vítimas num esquema ilegal de adoção para casais da Europa, da América e, em sua maioria, de Israel, a preços milionários. O Brasil chegou a ficar conhecido como “Exportador de crianças”.
O esquema era liderado pela curadora do Juizado de Menores de Curitiba à época, que agia como uma ponte entre famílias estrangeiras interessadas em levar crianças brasileiras sem muita burocracia. Mulheres disfarçadas de assistentes sociais procuravam por grávidas e as convenciam a entregar seus bebes assim que nascessem. As mães eram levadas a acreditar que poderiam visitar seus filhos sempre que quisessem e que, se elas mudassem de ideia mais tarde, ainda poderiam ter seus bebês de volta. Já os casais adotantes acreditavam que a intermediária apenas ajudava a agilizar o procedimento legal para adoção no Brasil, que a quantia paga era para gastos realizados com documentação.
Tinha um verdadeiro exército de enfermeiros, médicos, parteiras, funcionários do judiciário e da imigração, motoristas e compradores de bebês em sua folha de pagamento, que atuavam nos três estados do Sul. Os casais estrangeiros eram levados para uma elegante casa de campo nos arredores de Itajaí, onde poderiam passar o dia e conhecer os recém nascidos trazidos de vários locais.
Segundo a organização não governamental (ONG) Desaparecidos do Brasil, nos anos 80 e 90, aproximadamente 19.071 crianças brasileiras foram adotadas por casais americanos e europeus, contudo, sua situação após a adoção era totalmente desconhecida.
Quando uma criança é traficada pode ter destinos diversos: em alguns casos ela é vendida para uma família que a adota e a recebe como seu herdeiro consanguíneo, porém, em outros casos, crianças e adolescentes são traficados para realizar algum tipo de trabalho forçado ou são forçados a se prostituir, a mendigar e roubar, enquanto outras são vítimas do tráfico de órgãos.
Hoje, a ONG Desaparecidos do Brasil ajuda centenas de israelenses traficados a encontrarem suas famílias biológicas no Brasil, como o caso de Ron Yehezkel.
O menino, que cresceu como israelense, judeu, aos poucos foi desvendando sua verdadeira naturalidade. Teve conhecimento de sua certidão de nascimento na adolescência, na qual constava Pelotas como naturalidade. De acordo com seus pais, o registro realizado no Rio de Janeiro seria uma coincidência, pois a mãe estaria em viagem ao Brasil no momento de seu nascimento. No entanto, Yehezkel continuava se sentindo deslocado, diferente de sua família de pele extremamente clara.
Surgiram boatos de que seria adotado, o que o levou a procurar em meio aos pertences particulares de seus pais, chegando ao termo de adoção. Ron é filho de uma brasileira sobre a qual pouco se sabe. Maria Lemos é o nome que aparece no documento que passa a filiação do bebê para os pais judeus. Porém, ele também foi lavrado na capital carioca e os indícios levam a crer que pode ser falso. Ao procurar mais detalhes sobre sua história, descobriu que existiam muitos na mesma situação, vítimas da quadrilha brasileira.
3) EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
Diante desse cenário de crescente tráfico, a comunidade internacional percebeu a necessidade de cooperação entre os países para combater essa prática, de uma legislação mais sólida, pormenorizada, e de um procedimento mais rígido e burocrático de adoção. Essas mudanças tinham como objetivo atender ao princípio do melhor interesse da criança.
Surgiu, então, o Estatuto da Criança e do Adolescente (recentemente modificado pela lei 12.010/09) que trouxe mudanças à lei de adoção e mostra, em seu artigo 239, a preocupação em se realizar a adoção internacional sem o cumprimento das exigências legais e acabar acarretando o tráfico de crianças e adolescentes:
Art. 239: Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança e adolescente para exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro.
Pena – reclusão de 4 a 6 anos e multa.
Estabelece, também, uma das medidas mais eficazes contra o tráfico de crianças em seu art. 85, proibindo a saída de crianças e adolescentes do país na companhia de estrangeiro domiciliado e residente no exterior sem prévia autorização judicial.
Posteriormente, foi realizada a Convenção de Haia, em 1993, que apresenta, em seu artigo 1º, alínea b, a prevenção ao tráfico como um de seus principais objetivos:
Art. 1º, b: Instaurar um sistema de cooperação entre os Estados Contratantes que assegure o respeito às mencionadas garantias e, em consequência, previna o sequestro, a venda ou o tráfico de crianças.
A Organização das Nações Unidas também demonstrou sua preocupação com relação ao tráfico internacional de crianças no art. 35 da Convenção dos Direitos da Criança:
Art. 35. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas, nos planos nacional, bilateral e multilateral, para impedir o rapto, a venda ou o tráfico de crianças, independentemente do seu fim ou forma.
Em 1994, com o objetivo de regular os efeitos civis e penais do tráfico de menores, foi assinada a Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de menores, onde foram estabelecidos mecanismos para proteger toda criança e adolescente vítima do tráfico, criando medidas de prevenção e punição para os traficantes.
Com tantas mudanças no ordenamento jurídico, torna-se possível concluir que, realmente, foram criados obstáculos para a prática do tráfico de crianças. A criação de órgãos intermediadores (CEJAI’s) para a realização da adoção diminuiu a prática dos falsos intermediadores; o processo de adoção é bem mais complexo e burocrático, com todo o acompanhamento psicológico do adotando e dos pretendentes, o estágio de convivência e a fiscalização mesmo após deixar o país; dentre outras medidas.
Toda essa complexidade no processo de adoção é uma forma de proteção das crianças que, no passado e ainda hoje, são vítimas do tráfico internacional de crianças, do tráfico de órgãos, exploração sexual, entre outros abusos. Na Guatemala, inclusive, existem leis que obrigam a comprovação do vínculo genético da mãe e do filho que será colocado para adoção. Essa medida modificou drasticamente o número de crianças disponibilizadas para a adoção internacional, dificultando o tráfico de crianças.
4) CONCLUSÃO
Há quem se pergunte se a adoção internacional facilitaria a prática do tráfico. Acredita-se que quem tem a intenção de traficar a criança ou adolescente, não procuraria um meio tão difícil, complexo e fiscalizado. Quem se dispõe a passar por todo esse processo estaria realmente disposto a amar, cuidar e proteger o adotado.
No entanto, o Estado deve fiscalizar de forma bastante efetiva esse processo de adoção internacional, evitando qualquer irregularidade, e garantindo às crianças e aos adolescentes adotados a preservação de seus direitos, com respeito ao princípio do melhor interesse, proteção integral e, acima de tudo, o da dignidade da pessoa humana. Em países que não é o Estado que controla e realiza esse procedimento da adoção, as denúncias de tráfico são muito maiores.
É importante mencionar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) formada em 2012 com o objetivo de investigar situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Foram investigados diversos casos de adoções internacionais ilícitas por estrangeiros que não estavam no Cadastro Nacional de Adoção, diversos casos em que os procedimentos estabelecidos em lei não foram respeitados. Confirmou-se que os valores cobrados pela intermediação na adoção de cada infante variara de acordo com a maior ou menor semelhança com o biótipo europeu. Casos em que abrigos, assistentes sociais, enfermeiras e até juízes participavam.
Apesar de todos os esforços, o tráfico de crianças segue aumentando e já representa um terço dos casos de tráfico de pessoas no mundo, segundo relatório do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC).
Na África e no Oriente Médio, os menores representam a maioria das vítimas de tráfico de pessoas e em países como Índia, Egito, Angola ou Peru podem alcançar 60% do total de casos, indica a UNODC neste relatório publicado a cada dois anos.
5) REFERÊNCIAS
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BARROS, Maria Eduarda Silva. Aspectos da adoção internacional. Disnponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/Ado%C3%A7%C3%A3o%20internacional%2006_02_2012.pdf> Acesso em julho 2015
CARVALHO, Adriana Pereira Dantas. Adoção internacional no ordenamento jurídico brasileiro e a possibilidade de tráfico de crianças e adolescentes. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 117, out 2013. Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13706&revista_caderno=12 >. Acesso em junho 2015.
Desaparecidos do Brasil. Tráfico Internacional de Crianças - mercado Bilionário. Disponível em: <http://www.desaparecidosdobrasil.org/procuro-minha-mae/trfico-internacional-de-crianas---mercado-bilionrio> Acesso em junho 2015.
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FIGUEIREDO. Luiz Carlos de Barros. Adoção Internacional: a Convenção de Haia e a normatividade brasileira – uniformização de procedimentos. Curitiba: Juruá, 2005.
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JESUS. Damásio de. Tráfico Internacional de mulheres e crianças: Brasil:aspectos regionais e nacionais. São Paulo: Saraiva, 2003.