Sumário: Introdução. 1. Notas sobre o Estado Democrático de Direito. 2. As garantias constitucionais no Direito brasileiro. 3. Fundamentação da decisão judicial no contexto democrático. 4. Natureza jurídica de garantia da fundamentação da decisão e consequências práticas. 5. O renovado dever de fundamentação das decisões no Novo Código de Processo Civil brasileiro. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Estudaremos, nas páginas que seguem, o instituto da fundamentação das decisões judicias no Estado Constitucional, analisando seu tratamento na Constituição da República de 1988, em seu artigo 93 e inciso IX, bem como sua renovação no artigo 489 do Novo Código de Processo Civil brasileiro, sancionado em 2015.
Para tanto, procederemos à breve análise do Estado Democrático de Direito, em prol de evidenciar a importância do instituto da fundamentação para esse tipo de Estado e o papel exigido do juiz enquanto parte do desenvolvimento do Estado Moderno. A evolução estatal desde o Absolutismo – no qual imperavam decisões arbitrárias e sem o mínimo controle legal, onde Estado e governante se confundiam em uma só pessoa; passando pelo Estado Liberal – contexto no qual originou-se o Estado de Direito e o constitucionalismo, cuja evolução desaguou no Estado Social que, aprimorado, tornou-se o Estado Democrático de Direito que conhecemos.
Depois, estudaremos as garantias constitucionais no direito brasileiro, tomando tais lições como premissas para a caracterização da fundamentação das decisões judiciais como instrumento efetivador das normas processuais constitucionais previstas como direito fundamental e quais as consequências em se adotar como garantia o dever de fundamentação (que é um direito fundamental da parte e um dever fundamental do juiz).
Por fim, completaremos o desenho da fundamentação destrinchando todas as previsões contidas no artigo 489 do novo código de processo, que atualizou o instituto e o adequou, enquanto garantia, às necessidades processuais atuais dos operadores do direito, aumentando sua efetividade e evidenciando sua necessidade para a democratização do processo.
Esse caminho é necessário para traçar, de forma lógica e histórica, o porquê da importância em se assegurar plenamente o direito fundamental à uma decisão constitucionalmente adequada.
Seu papel no Estado Democrático de Direito e seu novo tratamento na lei processual elucidam o caráter imperativo de sua efetivação e a gravidade no desrespeito em sua aplicação plena.
1. NOTAS SOBRE O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado Democrático de Direito como hoje o concebemos passou por um longo processo de evolução, uma evolução secular, que se iniciou ainda quando das revoltas liberais, do século XVII e XVIII na Europa, sobretudo na Inglaterra e na França, que desencadearam na Revolução Gloriosa, de 1689 e na Revolução Francesa, de 1789, e nos fizeram (humanidade) ultrapassar a linha do Estado Absolutista e adentrar na esfera do Estado Liberal, que implementou o Estado de Direito e o constitucionalismo.
No Estado de Direito, o governante se curva aos limites impostos pela lei, que é caracterizada pelo reconhecimento da igualdade formal dos indivíduos por meio da generalidade de seu comando normativo e, no âmbito dos Poderes do Estado, há uma explicita separação entre suas funções.
Assim, o Estado de Direito referenda a limitação da ação estatal por uma ordem geral e abstrata, previsora de sanções em caso de descumprimento. Além de promover conceitos liberais, como, por exemplo, a propriedade privada e o mercado livre.
A partir do final do séc. XIX e começo do séc. XX, o Estado Liberal muda com as novas demandas sociais, que passam a exigir um papel mais ativo do Estado com relação à efetivação dos direitos fundamentais e sociais. A política do welfare state é incorporada na implementação de políticas públicas e o Estado deixa de ser mínimo, para ser interventor. Aqui, a lei passa a ser instrumento de ação estatal em prol da efetivação da realidade à ordem jurídica. O Estado Social de Direito passa a imperar.
Já no Estado Democrático de Direito, a novidade é a busca pela igualdade material entre os indivíduos e a obrigatoriedade de justificativa do Estado quando da intervenção na vida do particular, que deve ser constitucional e legal.
Assim, a qualidade de vida individual e coletiva é tema de políticas, tendo a lei papel transformador da realidade, concretizando uma ruptura com a ordem anterior. O constitucionalismo e o pós-Segunda Guerra são contextos paradigmas para o surgimento do Estado Democrático de Direito, no qual exige-se um núcleo garantidor das conquistas civilizatórias, cujos pilares são a democracia e os direitos fundamentais.
Esse novo papel do Estado-garantidor surtiu inúmeros efeitos na atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Entre os efeitos jurídicos que podemos citar, como consequência do constitucionalismo contemporâneo, a judicialização da política (como parte do protagonismo judicial, gerando transferência de poderes) é um dos mais analisados pelos pesquisadores, no qual o Poder Judiciário toma as vezes do Legislativo ou Executivo na implementação de políticas públicas. Isso poderá ocorrer quando o juiz tem sua inércia retirada por uma ação judicial que se vincula a uma causa de pedir caracterizada por ser uma política pública, que exige investimento retirado do orçamento público para satisfação de algum direito fundamental (exemplo clássico é o pedido de tratamento de saúde ou a compra de medicamentos com respaldo no direito à saúde enquanto direito de todos e dever do Estado).
De qualquer maneira, no Estado Democrático de Direito, o Estado permanece limitado pela Constituição e pela lei e o princípio da separação de Poderes se aprimora, adequando-se às exigências democráticas. Dentre tais exigências podemos citar a existência de um controle interno em cada esfera de Poder (checks and balances – freios e contrapesos), surgido dos Estados Unidos e importado por vários países; e um controle externo, feito pela sociedade (accountability), que pode irradiar efeitos em várias esferas, tanto sociais, quanto políticas ou jurídicas.
No Direito, uma das formas de controle externo das ações do Estado por seu Poder Judiciário é a fundamentação adequada das decisões judicias, objeto de estudo nesse artigo. É por meio dela que as partes e a sociedade podem verificar se o juiz de fato analisou todas as questões de fato e de direito pertinentes à sua decisão.
2. AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO
As garantias constitucionais, no Brasil (e de forma simples), correspondem àquelas provisões constitucionais assecuratórias de determinados direitos fundamentais[1]. Elas podem ser, de acordo com José Afonso da Silva[2]: o reconhecimento constitucional de algum direito fundamental, sendo o compromisso de respeito à existência de tais direitos; as prescrições que vedam determinadas ações do poder público, que são os direitos constitutivos da personalidade do indivíduo; ou, a proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia, que são os recursos jurídicos destinados a efetivar os direitos que asseguram.
Assim, as garantias dos direitos fundamentais podem distinguir-se por serem garantias gerais ou garantias constitucionais. As garantias gerais são aquelas que asseguram a eficácia social dos direitos fundamentais, referindo-se à organização da comunidade política, que forma a estrutura da sociedade democrática. Já as garantias constitucionais, podem ser gerais ou especiais.
Serão gerais quando forem concernentes ao mecanismo de checks and balances, de forma a impedir o arbítrio por parte de qualquer deles, são imposições positivas ou negativas aos órgãos do Poder Público.
Serão especiais quando possibilitarem limitações técnicas às ações dos órgãos estatais ou dos particulares, sendo instrumentos para garantir direitos políticos, sociais, individuais ou coletivos. Ou seja, as garantias especiais são os direitos secundários que tutelam um direito principal. São o próprio direito público subjetivo, que garante o cumprimento dos direitos fundamentais individuais, coletivos, sociais e políticos em concreto.
Essa concepção de garantia é própria do Estado Democrático de Direito. Nele, direitos substantivos fazem parte de um núcleo político constitucional em prol de efetivar a democracia econômica, social e cultural a partir da rigidez constitucional, que possibilita a atuação do Estado direcionada para o cumprimento da justiça constitucional, proibindo, dessa forma, o retrocesso e instituindo parâmetros de interpretação a todos os outros diplomas normativos. Tais parâmetros de interpretação deverão estar expostos no corpo da decisão judicial, sendo demonstrados por meio de sua adequada fundamentação.
Assim, as garantias constitucionais servem, sobretudo, como ferramenta para afastar o caráter simbólico dos dispositivos constitucionais determinantes de direitos fundamentais e inseri-los no mundo real, prático e tangível, dando-lhes caráter de alta constitucionalidade. É esse caráter que encontraremos no instituto da fundamentação da decisão judicial.
3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL NO CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
A garantia de fundamentação das decisões judicias tem origem na cláusula do devido processo legal, enquanto consequência do Estado Democrático de Direito. Ela é uma decorrência lógica desse princípio maior.
O tema da fundamentação se reveste de magnitude ímpar, gerando diversos trabalhos doutrinários e artigos científicos e sua importância foi renovada com a aprovação do novo código de processo civil.
Nesse diapasão, sua importância é verificada tanto de forma extraprocessual quanto endoprocessual.
Dessa maneira, e de forma extraprocessual, importa por ter nítida ligação com os princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, expressando a ampla exigência de controlabilidade da atividade dos órgãos do Estado. Qualifica o controle e a efetiva intervenção do juiz sob a vida do indivíduo em prol do direito à obtenção de uma tutela judicial, preservando a democracia da ação do Estado. Assim, a fundamentação dá legitimidade à decisão, sendo elemento essencial do Estado constitucional contemporâneo.
De forma endoprocessual, importa quando atua de modo que as partes tenham ciência da delimitação exata da coisa julgada e dos pontos em que incide a preclusão. Ela é, antes de qualquer coisa, garantia que possibilita sua adequada revisão em instância superior ou no plano do controle de constitucionalidade, dando característica de recorribilidade à decisão.
A fundamentação da decisão do juiz é, assim, o ponto de maior importância para os interessados na lide, sendo sua maior referência na verificação do respeito aos atos defensivos presentes no processo. Afinal, a causa de pedir qualifica o pedido e a ratio decidendi qualifica o decisum[3].
Vale ressaltar a importância do instituto no contexto do Estado Democrático de Direito, quando pensamos na fundamentação das decisões judiciais como forma de contraprestação ou controle social das decisões do juiz, ou seja, a chamada accountability, sendo uma forma efetiva de a sociedade verificar a legitimidade do processo judicial.
Nesse sentido, quando afirmamos que o discurso jurídico é racional, e, portanto, adequadamente fundamentado, não nos referimos à racionalidade das ciências da natureza. O discurso racional é fundamentado, pois é aquele que “presta contas”. Imprescindível para a efetivação da democracia no processo judicial.
Cabe ao juiz a aplicação direta e efetiva da norma ao caso concreto. Isso traduz-se no fato de que a interpretação e aplicação do direito feita por ele exige a demonstração adequada do raciocínio e das razões consideradas para o resultado escolhido, devendo, assim, sua interpretação ser adequadamente motivada em prol de evitar atos arbitrários e contrários ao Estado Constitucional.
A fundamentação tem importância ainda mais evidente ao pensarmos que é por meio do juiz que o Poder Judiciário exercerá controle sobre os Poderes Executivo e Legislativo, na teoria dos checks and balances do Estado Democrático de Direito. Surgindo o instituto como forma de evitar decisões arbitrárias de intervenção do Estado na vida do indivíduo.
Da mesma maneira, é ao juiz que incumbe o papel de busca da melhor e mais adequada resolução de conflitos no processo judicial, protegida pelo escudo da constitucionalidade e munida da garantia de fundamentação, momento no qual o Estado é chamado para dirimir uma pretensão (individual ou coletiva) resistida, interferindo, assim, na vida privada das pessoas, e mantendo a paz social.
{C}4. NATUREZA JURÍDICA DE GARANTIA DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO E CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS
Com o estudo das garantias constitucionais e a clara importância da fundamentação da decisão para o contexto democrático brasileiro, podemos incluir a fundamentação das decisões judiciais como uma garantia constitucional especial garantidora de um direito fundamental individual, esse direito fundamental individual concerne ao princípio da proteção judiciaria, por meio do devido processo legal.
A Constituição da República do Brasil de 1988 prevê, em seu artigo 93, inciso IX[4] a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais como instrumento para a efetivação do devido processo legal, do acesso à justiça e da prestação jurisdicional efetiva.
De forma inovadora, e enaltecendo o instituto da fundamentação, previu, a norma constitucional, a sanção de nulidade da decisão não fundamentada ou inadequadamente fundamentada. Importância evidenciada quando da leitura do artigo 489 do Código de Processo Civil sancionado este ano (2015) no Brasil.
Dessa forma, a decisão judicial inadequadamente fundamentada é passível de nulidade por ação própria, se confundindo com os próprios pressupostos de existência da decisão proferida inconstitucionalmente.
Isso porque, uma decisão apenas será considerada fundamentada, respeitando, portanto, o direito constitucional à resposta constitucionalmente adequada, quando o juiz se pronunciar sobre todas as questões (pontos controvertidos) trazidos nos autos pelas partes, bem como sobre todos os fundamentos relevantes apresentados pelos interessados.
Isso é necessário para a realização, principalmente, dos efeitos endoprocessuais da fundamentação. Quais sejam, a certeza de que os fatos e o direito pleiteado pelas partes no processo foram realmente analisados pelo juiz (as questões relevantes para a decisão que se tomou); a recorribilidade da decisão em instância superior e a sua plena revisão. Tais efeitos garantem às partes interessadas a realização do duplo grau de jurisdição, previsto, tanto constitucionalmente, quanto por Tratado Internacional (Convenção Americana, artigo 8, item 2, “h”[5]).
A característica de recorribilidade e questionabilidade de qualquer decisão judicial não abrange apenas a permissibilidade prevista legalmente de interposição de recurso, mas envolve, também, a possibilidade de plena satisfação do mesmo, com a certificação de que revisão do julgado da instância anterior será adequada e completa. Isso significa que a fundamentação utilizada em pelo juízo a quo deve ser adequada e eficaz quando da devolução (dessa vez, para juízo de segundo grau) da análise das questões e da discussão que se revelaram durante o processo.
A própria doutrina que estuda a teoria das provas no processo é unânime em indicar que o destinatário das provas é o processo e não o juiz, isso, a nosso ver, irradia efeitos diretamente na sentença e em cada decisão considerada pelo juiz. O destinatário da sentença é o processo, logo, é ao processo que deve servir a fundamentação. Ao processo como um todo, desde o primeiro, até o último grau. A harmonia e ligação entre as instâncias judiciárias deve ser considerada quando da análise e exposição das questões de fato e de direito pelo juiz.
Caso contrário, a falta de fundamentação ocasiona um vício por inexistência do ato, tornando-o tautológico. Não se trata apenas de uma omissão no decisum. A decisão que carece de fundamentação adequada, carece, por conseguinte, de um conteúdo mínimo indispensável para o reconhecimento do exercício legítimo da função jurisdicional. Se antes se tinha dúvidas com relação a isso, a nova sistemática do Novo CPC, interpretada em conjunto da Constituição de 1988, dirimiu as suspeitas.
Isso reflete diretamente nos prazos processuais e na possibilidade de a decisão fazer coisa julgada. Sentença inexistente não possui prazo para revisão, para a efetiva realização do ato jurisdicional, que pode ser arguido a qualquer momento e por qualquer meio idôneo juridicamente, como, por exemplo, uma ação declaratória de inexistência do ato ou, ainda, Mandado de Segurança (este último, considerando o prazo legal). A sentença não tem o condão de atingir a coisa julgada material, indo de encontro à segurança jurídica, que também permeia nosso sistema e é prevista constitucionalmente.
Podemos chegar à essa conclusão a partir da leitura do texto constitucional, relacionando todos os princípios processuais constitucionalizados, e conectando-os à leitura do artigo 489 do novo código, que aperfeiçoou, e muito, o instituto ora estudado, prevendo requisitos cumulativos do que será considerado fundamentação. Não basta o “fazer mal feito”, deve-se “fazer por completo”.
{C}5. O RENOVADO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
Como dito no item anterior, o Novo Código de Processo Civil inovou, e muito, o instituto da fundamentação das decisões judiciais que, no código de 1973, é tratado no artigo 458[6].
Em primeiro lugar, tornou-a elemento essencial da sentença, mudando a redação do Código de 1973, que a chamava de “requisito” e modificando, por conseguinte, o que se entendia por motivação completa e motivação deficiente.
A diferença entre os dois termos (elemento e requisito) é a sua localização em relação ao instituto de que tratam. “Requisitos” são características presentes em momento anterior à própria análise do objeto (ou seja, a sentença), já “elementos” é tudo o que o integra. Assim, requisito é tudo aquilo que deve estar presente nos elementos da decisão, por ex., na fundamentação (elemento), deve estar inserida a análise acerca das questões de fato e de direito que integraram os autos (requisitos da fundamentação).
Por segundo, no parágrafo 1º, acrescentou um rol de situações nas quais uma decisão judicial não será considerada fundamentada.
Por terceiro, no parágrafo 2º, esclareceu (pois, ao que parece, não era sabido) que o juiz, ao se deparar com uma colisão entre normas jurídicas, deverá justificar os critérios gerais utilizados para a ponderação utilizada na solução do conflito.
Por fim, no parágrafo 3º, expressou a necessidade de uma interpretação conjugada da decisão, considerando todos seus elementos (o relatório, os fundamentos e o dispositivo), considerado o princípio da boa-fé.
Vejamos a redação do dispositivo em comento:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
É oportuno ressaltar que o rol trazido no §1º, do artigo 489, é exemplificativo, posição textualizada no Enunciado n. 303 do Fórum Permanente de Processualistas Civis[7]. Da mesma forma, a palavra “sentença”, escrita no caput do artigo é empregada como sinônimo de decisão, sendo aplicável a sentenças, decisões interlocutórias, decisões monocráticas proferidas no âmbito do Tribunal ou acórdãos.
Destrinchando o parágrafo 1º do artigo ora estudado, nos deparamos com situações práticas que o legislador decidiu por ilustrar não estarem de acordo com a fundamentação exigida pela Constituição da República e pela lei processual.
A primeira situação, do inciso I, trata da indicação, reprodução ou paráfrase de ato normativo sem correlacioná-lo à causa posta a julgamento ou à sua decisão. É uma extensão do princípio da legalidade, previsto na Constituição da República. Sim, o juiz deve seguir a lei e decidir de acordo com os princípios jurídicos, porém, ao fazê-lo, deve demonstrar explicitamente a ligação entre o dispositivo citado e o caso que julga. Assim, a demonstração dos argumentos fáticos coligados aos argumentos de direito no esclarecimento do convencimento do jurisdicionado é imprescindível para que se considere adequada a fundamentação. A simples menção dos requisitos legais não iluminam o caminho percorrido pelo juiz que chegou à conclusão que apresentou, tal caminho que deve ser de conhecimento das partes e de qualquer um que ler a decisão, pois a lógica é relativa para cada pessoa, cada um pode chegar a uma conclusão diferente. Isso não é justificar.
No inciso II, o legislador aponta à utilização de conceitos jurídicos indeterminados sem a devida explicação de sua incidência ao caso. Essa decisão (e as outras hipóteses trazidas no artigo 489) não é passível de controle, visto que o juiz utiliza como “manobra”, ou “estratégia”, municiar-se de conceitos de interpretação aberta para encaixar qualquer decisão que prefere tomar, fantasiando uma decisão arbitrária com uma fundamentação inadequada, pelo escudo da lacuna semântica. É a arbitrariedade travestida de discricionariedade.
Nesses casos, o juiz terá um encargo político muito maior de fundamentação da sua decisão, com a finalidade de que satisfaça as exigências democráticas do Estado Democrático de Direito. Assim, da mesma forma que a deficiência de fundamentação deslegitima a decisão, a argumentação estratégica, sem significado, não esclarecedora também incorrem para sua nulidade.
O que foi dito para o inciso anterior, em muito se relaciona com a limitação contida no inciso III. Prevê que a utilização de justificativas universais, que se encaixariam a qualquer outra decisão (o famoso “control C-control V”) não se encaixa no conceito de fundamentação. Pelo contrário, o que há é uma simulação de fundamentação, e isso é suficiente para que seja desconsiderada por inteiro.
O inciso IV, proíbe o não pronunciamento sobre todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Assim, a previsão do artigo 515, §§ 1º e 2º, do atual CPC[8] cai por terra, exigindo dos magistrados o pronunciamento sobre todos os argumentos trazidos nos autos, tanto do autor, quanto do réu, de modo que sua fundamentação seja completa.
Porém, dizer que o juiz deve se pronunciar sobre todos os argumentos trazidos nos autos não significa que deve se pronunciar sobre toda a argumentação apresentada pelas partes. Significa, sim, que deve se pronunciar sobre todas as questões (pontos controvertidos) que as partes trouxeram aos autos. Ou seja, aqueles pontos relevantes e essenciais para que a decisão seja adotada pelo juiz, não importando se a decisão é proferida por juiz de primeira ou segunda instância de julgamento, a qualidade da fundamentação deve ser a mesma para todas.
O inciso V, prevê que a inadequação da indicação de precedentes ou enunciado de súmula sem a devida demonstração de adequação ao que consta nos autos. Tais hipóteses tratam da chamada “fundamentação per relationem”, há muito rejeitada pela doutrina como legítima por não satisfazer a finalidade do processo, apagando a qualidade da decisão.
A fundamentação que se quer evitar com essas previsões é a fundamentação aparente e implícita, que não dá integridade e coerência ao Direito. Faz-se, portanto, necessária, além da demonstração, na decisão, da relação existente entre a súmula e/ou precedente invocado com os fatos e argumentos que foram apresentados ao juiz nos autos pelas partes, a demonstração de porquê se escolheu um argumento e não o outro, a justifica de ter tomado tal decisão, e não outra. A decisão deve valer tanto para a parte vencedora, quanto para a parte sucumbente (possibilitando o controle e revisão da decisão – recorribilidade).
Por último, o inciso VI veda a injustificada inaplicação de precedente, súmula ou jurisprudência sem que se demonstre a distinguibilidade do caso ao enunciado ou a superação do entendimento outrora adotado.
Com a análise de cada uma das hipóteses trazidas no artigo 489 do novo código, podemos afirmar com clareza que o legislador quis proteger o efetivo contraditório[9]{C}{C}[10], derivado da constitucionalização do processo civil, relacionando-o diretamente à fundamentação como garantia processual. Evidenciou que a manifestação, na decisão, de que o juiz participou efetivamente da troca de argumentos e analisou de forma legítima cada uma das questões, relacionando-as com o fato concreto, é realizar a verdadeira prestação jurisdicional, permitindo o real acesso à justiça, ao devido processo legal, e promovendo a accountability exigida no Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
A partir do momento em que a Constituição deixou de conter normas programáticas, ela se tornou norma jurídica dotada de imperatividade. Prevendo todo tipo de direitos e, por conseguinte, exigindo sua concretização. Essa exigência de concretização decorre do Estado Democrático de Direito, que adotamos no artigo 1º da Constituição da República de 1988.
Ocorre que, com a evolução social e a mudança de paradigmas, o Poder Judiciário passa a se deparar com novos tipos de pretensão que, por vezes, não encontram resposta apenas no texto literal da lei, o que exige uma maior participação do intérprete-aplicador, dando mais subjetividade o processo decisório, que gera um protagonismo judicial, refletido pelo ativismo judicial e pela judicialização da política. Tais fato geram outras consequências.
Uma dessas consequências é a imprescindibilidade de fundamentação adequada das decisões judicias. A ausência dela ocasiona a nulidade da decisão, prevista no artigo 93, inciso IX da Constituição de 1988. Alguns parâmetros para que se considere uma decisão judicial fundamentadas encontram-se no artigo 489 do Novo Código de Processo Civil, sancionado em 2015, cujo rol é exemplificativo.
Dessa forma, e de acordo com a previsão de nulidade pela própria Constituição da República, fato inusual ao analisarmos as previsões constitucionais. A fundamentação firmou-se como garantia constitucional individual especial, sendo um instrumento a ser utilizado para a efetivação dos princípios do acesso à justiça e da efetiva prestação jurisdicional, bem como do devido processo legal.
Assim, a garantia de fundamentação da decisão judicial enquanto elemento da sentença, foi alçada para a esfera de verdadeiro pressuposto de existência da própria decisão, decorrente de uma interpretação constitucional, ligada com as previsões legais de processo em prol de efetivar o princípio do devido processo legal, do acesso à justiça e da real prestação jurisdicional.
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