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Neutralidade de rede e os impactos na relação de consumo

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Agenda 04/08/2015 às 17:42

O artigo trata do surgimento da internet como um rede livre, elucida a respeito do princípio da neutralidade e suas exceções, dispõe acerca de como a neutralidade influi nas relações de consumo e, por fim, aborda a neutralidade como escolha do Marco Civil

1.      O surgimento da Internet como uma rede livre

A criação da Internet pode ser remontada à década de 60, quando o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, visando impulsionar as pesquisas universitárias, como forma de concorrer com os feitos soviéticos da época criou a Advanced Reaserch Projects Agency (ARPA), tendo esta, ao final da mencionada década, mais precisamente em 1969, criado uma rede de computadores, a Arpanet, um programa de interação em rede que mais tarde viria a dar origem ao que hoje denominamos de Internet.

Assim, muito embora, a ideia de uma rede que interligasse e permitisse a integração de vários computadores tenha sido uma ideia militar surgida em plena Guerra Fria, o seu intuito estava estritamente ligado à integração de grupos de pesquisa espalhados por todo o globo, ou seja, o objetivo da Arpanet não era estritamente militar, estava mais relacionada à comunicação entre os pesquisadores e as universidades.

A Arpanet teve a sua estrutura arquitetada em rede, em razão de uma proposta feita pela Rand Corporation ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos, pois assim esta propiciaria uma comunicação descentralizada e caso houvesse um ataque nuclear, risco iminente à época, a rede sobreviveria.

Fora adotada, igualmente, a tecnologia de comutação por pacotes, assim, os dados a serem transferidos, na Arpanet, eram agrupados em pacotes (unidade de transferência da informação), endereçados e remetidos ao nó (polo da rede) de destino. A comunicação era feita, portanto de nó a nó, sendo que os caminhos entre estes deveriam ficar livres para o transporte de pacotes.

Como o objetivo da criação da Arpanet era impulsionar as pesquisas os primeiros nós (polos das redes) foram instalados em universidades americanas –  Universidade da Califórnia em Santa Barbara, Universidade da Califórnia em Los Angeles e na Universidade de Utah – no ano de 1969.

Em seguida, buscou-se comunicar a Arpanet com outras redes de computadores com o intuito de abranger a comunicação. No entanto, foram surgindo redes distintas com protocolos próprios e incompatíveis entre si, o que inviabilizava a troca de informação entre estas.

Assim, diante desta necessidade de se padronizar os protocolos para que as redes fossem interligadas, em 1978, na Universidade da Califórnia do Sul fora criado o protocolo TCP/IP, padrão de “linguagem” adotado até os dias de hoje.

Outra criação que possibilitou as redes de computadores se alastrarem pelo mundo, facilitando a comunicação entres as comunidades acadêmicas e os grupos de pesquisas, foi a criação do WWW (World Wide Web), em 1990, uma aplicação desenvolvida pelo inglês Tim Berners-Lee, funcionário da CERN (Organização Europeia para Investigação Nuclear), a partir de uma necessidade dos cientistas de todos os lugares do mundo em compartilhar dados, utilizando-se de plataformas ou suporte lógico (sequência de instruções a serem seguidas ou executadas) distintos. Sobre o World Wide Web, na ocasião, Tim Berners-Lee esclareceu que:

“O projeto WorldWideWeb (WWW) tem por objetivo permitir que todas as ligações possam ser feitas com qualquer informação, não importando onde elas se encontrem. (...) O projeto WWW foi lançado para permitir que os físicos de altas energias possam trocar informações, notícias e documentos. Estamos muito interessados em alargar a web a outras áreas e ter servidores de portas de ligação (Gateway) para outros dados. Os colaboradores são bem-vindos!”

Desta forma, as redes de computadores tiveram grande avanço entre as décadas de 80 e 90 diante da colaboração da comunidade científica dos Estados Unidos e também da Europa. No Brasil, a história não foi diferente, as redes de computadores se desenvolveram, primeiramente, nos ambientes acadêmicos.

Em 1988, o Professor Oscar Sala, da Universidade São Paulo (USP) e, à época, também Presidente do Conselho Superior da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), foi responsável pela conexão desta Fundação ao  Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab), em Chicago, por meio da rede Bitnet (Because It`s Time Network).

Posteriormente, as instituições acadêmicas paulistas foram ligadas entre si por meio da rede ANSP (Academic Network at São Paulo) que igualmente fora conectada à linha internacional mantida pela FAPESP, assim, como outras instituições acadêmicas, que também se aproveitaram desta ligação.

Logo em seguida, em 1991, a FAPESP realizou a primeira ligação nacional em TCP/IP à rede já denominada como Internet (rede mundial de computadores). E, ainda em 1991, o Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) estabeleceu outra linha internacional. Estes últimos fatos foram decisivos para que o Brasil adotasse o protocolo TCP/IP para se conectar às redes internacionais.

Assim, apesar de a criação da Internet ter sido um projeto de pesquisa militar, inclusive, pela ousadia deste projeto, como ressaltado, os desenvolvedores eram cientistas, pós-graduandos, enfim, acadêmicos. Em razão deste histórico, a Internet, em seu início, foi uma pesquisa desenvolvida como missão, mas que não teve a sua liberdade de pensamento sufocada ou limitada, surgiu como uma rede livre.

Outro aspecto relevante do surgimento da Internet foi a sua abertura e descentralização que propiciaram a todos os usuários o aperfeiçoamento desta nova tecnologia, a modelagem da rede pelo uso, levando a um padrão mundial de comunicação e interação que pode ser considerado uma expressão cultural.

2.     O princípio da neutralidade de rede e as exceções, por este, comportadas.

Assim, como já delineado, a Internet nasceu como uma rede livre de qualquer tipo de interferências, inclusive, em seu tráfego, demonstrando uma natureza aberta e não discriminatória. E, em razão do protocolo de comunicação adotado como padrão (TCP/IP), a Internet se estruturou sob o princípio “end-to-end”.

De acordo com este princípio, o tráfego dos pacotes de dados realizado de ponto a ponto, de uma porta a outra deve ser livre e igualitário, independente do conteúdo ou forma dos pacotes transportados. Dessa forma, o controle do tráfego deve ficar nas portas, isto é, com os usuários, sendo certo que qualquer intervenção na transmissão dos pacotes implicaria em ofensa a própria lógica em que a Internet fora estruturada[2].

Baseado neste princípio “end-to-end”, o Professor Tim Wu, da Columbia Law School, em 2003, por meio do artigo “Neutralidade da Rede, Discriminação na Banda Larga”, consagrou e divulgou o termo “neutralidade de rede”. Segundo Tim Wu, a ideia do conceito de neutralidade, que adiante veio a ser considerado um princípio, é a de:

“(...) uma rede pública de informações que se pretende o mais útil possível aspira a tratar igualmente todos os conteúdos, sites e plataformas. Isto permite que a rede transporte todo tipo de informação e suporte todo tipo de aplicativo. O princípio sugere que as redes de informação são mais valiosas quando elas são menos especializadas – quando elas são uma plataforma para múltiplos usos, presentes ou futuros”[3].  

Sendo assim, pode-se entender a neutralidade de rede como um princípio de arquitetura da Internet, de acordo com o qual não deve ser dado tratamento discriminatório tanto à informação que trafega de uma ponta a outra na rede, quanto aos usuários que enviam e recebem tais conteúdos.

Deste modo, o provedor de acesso ou conexão (operadoras de telecomunicações como a OI, Net, Vivo, GVT, entre outras) não pode bloquear determinado conteúdo a um usuário, ou mesmo, limitar a velocidade do tráfego para determinados provedores de conteúdos (ex. redes sociais, sites de notícias, etc.), aquém dos limites de banda contratados.

É importante consignar que este conceito de “neutralidade” não é um conceito novo que surgiu com a Internet, pelo contrário, é um conceito já antigo e que acompanha a evolução dos meios de comunicação, como, por exemplo, a dos correios e do telefone, meios, estes, que contam com proteção constitucional de sigilo, sendo inconstitucional a intercepção destes, ressalvadas as exceções constantes no ordenamento jurídico.

 O princípio da neutralidade, assim, ao determinar que usuários e conteúdos não possam ser discriminados na rede, empodera o usuário dando a este o controle e a livre escolha (sem qualquer imposição) de qual conteúdo acessar, bastando, para tanto, que contrate a quantidade de banda necessária e suficiente aos seus anseios, o que é bom tanto para o mercado, quanto para o consumidor. Nesse sentido, já declarou Tim Wu em entrevista concedida à pesquisadora do CTS da FGV-RJ, Joana Varon, a saber:

“É perfeitamente legítimo que o provedor de Internet ofereça uma conexão mais rápida ou mais banda por um preço mais alto, da mesma forma como, ao usarmos mais eletricidade, pagamos mais”, disse o professor da Universidade de Columbia. “Isso é normal e não diz respeito à neutralidade de rede. Mas o que eles querem fazer é ter o poder de bloquear certas coisas e forçar você a consumir outras, cobrando preços diferentes para o tipo de conteúdo que se acessa. Isso será ruim para todos, mais caro e pior”.

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Pela relevância de tal princípio, o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) o reconheceu como um dos princípios essenciais à governança e uso da Internet por meio da Resolução 2009/003, a saber:  

“CGI.br/RES/2009/003/P  - PRINCÍPIOS PARA A GOVERNANÇA E USO DA INTERNET NO BRASIL

Considerando a necessidade de embasar e orientar suas ações e decisões, segundo princípios fundamentais, o CGI.br resolve aprovar os seguintes Princípios para a Internet no Brasil: 

 

6.  Neutralidade da rede


Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”.

Em análise projeto do Marco Civil da Internet, quando este tramitava no Congresso Nacional, o CGI.br[4] enumerou diversas razões que fazem da neutralidade de rede um princípio norteador da Internet, que merece ser preservado, pontos com os quais concordamos e passamos a tecer:

·         A neutralidade garante que a Internet seja uma plataforma livre e sem restrições para a inovação, permitindo que seus usuários criem novas aplicações e participem desta expressão cultural;

·         A neutralidade proporciona um ambiente horizontal de interação social, acessível a todos;

·         A neutralidade permitir ao mercado se desenvolver com barreiras reduzidas, de forma mais livre, criando novas oportunidades de empregos e possibilitando às pequenas e médias empresas que compitam com as demais tanto em âmbito nacional, como internacional;

·         A neutralidade, ainda, impulsiona a economia da informação ao permitir que pequenas empresas, com poucos recursos, tenham acesso e utilizem a variedade de serviços disponíveis na Internet a preços baixos.

Considerando tais razões que levaram o Comitê Gestor a eleger a neutralidade como um princípio de governança e uso da Internet, verifica-se que, igualmente, seria contrário a tal princípio a prática vislumbrada por alguns provedores de acesso ou conexão de cobrarem dos usuários preços diferenciados pelo acesso a determinados provedores de conteúdo ou serviços, vez que esta prática traria restrições à Internet, ao mercado e às inovações proporcionadas pelo ambiente digital.

Em consonância com este entendimento e visando proteger também o princípio da neutralidade, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o uso da Internet e da Web, como um direito humano, considerando os amplos benefícios que o uso livre e aberto da rede produz.

Tal fato se deu em 29 de junho de 2012, ocasião em que o Conselho dos Direitos Humanos da ONU, pela Resolução A/HRC/20/L.13, convocou todos os Estados, inclusive o Brasil a “promover e facilitar o acesso à Internet e a cooperação internacional visando o desenvolvimento dos meios de comunicação e de informação e instalações de comunicações em todos os países”. E, ao final, declarou que a “promoção, proteção e gozo dos direitos humanos, incluindo o direito à liberdade de expressão, na Internet e em outras tecnologias, já que a Internet pode ser uma ferramenta importante para o desenvolvimento e para o exercício dos direitos humanos, de acordo com o seu programa de trabalho”.

Apesar da importância mundialmente atribuída à neutralidade, fato é que ou por razões técnicas ou jurídicas a respeito do tráfego de informações (ex. conteúdo ilegal), algumas discriminações vêm ocorrendo na rede, o que levou inclusive o Professor Christian Sandvig a declarar que atualmente a neutralidade não pode ser vista como uma característica da Internet, a saber:

“A Internet não é neutra agora. A maior parte do debate sobre a Internet se concentra em torno de alguns tipos de discriminação de conteúdo, embora haja muitas variedades mais em jogo. O enfoque do debate sobre a neutralidade da rede pode ter sido sobre os aspectos legais, sim, mas o problema da discriminação de conteúdo costuma ser de caráter tecnológico. Já existem muitas formas de discriminação sendo praticadas – normalmente em segredo – e não está claro, de forma alguma, que todas elas sejam uma má ideia[5]”.

Assim, Sandvig defende que, diferentemente da manipulação jurídica do tráfego, a manipulação tecnológica deste não é algo hipotético, mas uma situação que vivenciamos, muitas vezes, por escolhas próprias, como quando bloqueamos e-mails spam, e outras sem sequer termos conhecimento, de forma silenciosa e, não raras as vezes, ilegais, como quando um provedor de conteúdo se utiliza de forma indevida de uma ferramenta ou software para realizar inspeção dos pacotes recebidos pelos usuários.

Dentre as formas de manipulação tecnológica que podem infringir ou configurar exceções à neutralidade, as mais comuns e conhecidas são: (i) bloqueio de endereço; (ii) bloqueio de porta ou protocolo; (iii) filtragem de conteúdo; (iv) priorização e condicionamento.

O Bloqueio de endereço consiste na não entrega de pacotes (de dados, vídeo ou áudio) a determinados endereços. Este bloqueio, no entanto, é falho, pois o endereço de destino pode ser alterado ou pode-se disfarçar o destino da transmissão, além disso, este tipo de bloqueio exige que seja mantida uma lista dos endereços bloqueados.

O Bloqueio de porta ou protocolo impede que o pacote entre na porta de destino em razão de algumas características detectadas neste. Tanto esta ferramenta quanto a anterior possuem aplicação no combate aos e-mails spam.

A filtragem de conteúdo, por sua vez, está entre aquelas práticas que os usuários na maioria das vezes não possuem conhecimento, e consiste no fato de o provedor de conexão, ao invés de se limitar a verificar o endereçamento do pacote a ser entregue, acaba por abri-lo e por inspecionar o seu conteúdo.  

No Brasil, recentemente a operadora TNL PCS S/A (Oi) foi condenada pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) da Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON/MJ), em R$ 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil reais) por ter monitorado o tráfego de pacotes de seus usuários através de um software comercializado pela empresa inglesa Phorm. O intuito da operadora era o de verificar os perfis dos usuários e, posteriormente, vende-los a agências de publicidade e portais web[6].

Cumpre ainda mencionar a ferramenta de priorização e condicionamento, neste caso, utiliza-se de dados como os números das portas, os endereços, entre outros, para distinguir os tipos de tráfegos e propiciar a estes tratamentos distintos.

Ademais, vale ressaltar que muitas vezes estas ferramentas que em tese prejudicariam a neutralidade de rede, podem ser utilizadas para preservá-las, como adverte, Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, ao comentar as exceções à neutralidade:

 “E exceções? Apenas para citar uma, há práticas mal intencionadas na rede, que visam minar a própria neutralidade dela e que, portanto, devem ser tratadas como exceção, para a própria preservação da neutralidade ampla. Parece uma contradição, mas isso ocorre quando se detecta um ataque do tipo “negação de serviço”, quando alguém quer impedir que um site ou um serviço seja acessível aos demais usuários, usando para isso de meios automáticos que geram uma sobrecarga artificial.

A forma de amenizar esse tipo de ataque passa por filtrar endereços da origem do ataque. Ou seja, pode haver necessidade específica de interferir no processo “fim-a-fim” da internet, exatamente para preservá-lo neutro”[7].

Sendo assim, diante da análise destas ferramentas, observa-se que algumas são utilizadas em detrimento ao usuário de rede e mesmo sem o seu conhecimento, o que afronta não só a neutralidade, mas também a transparência da navegação. Entretanto, outras, como as ferramentas antispam e as utilizadas em prol da preservação da neutralidade, consistem em exceção, apenas, aparente ao princípio da neutralidade, vez que não afetam de forma negativa a experiência do usuário, pelo contrário buscam resguardá-la.

3.     Neutralidade e como esta influi no mercado e na relação de consumo

Desta forma, ressalvadas as exceções, considerando a Internet como uma rede, predominantemente, livre, observamos que, ao longo de seus poucos anos de desenvolvimento, a Internet propiciou a criação de um novo espaço, o cyberespaço, e diante deste novo espaço as pessoas, as relações e o mercado alteraram, em pouco tempo, a forma de se organizarem.

Tanto o mercado, quanto as relações, inclusive, as de consumo se tornaram mais dinâmicos, em virtude da tecnologia digital, que comporta uma capacidade extrema de troca de informações em uma velocidade muita avançada. Assim, surgiram diversas inovações próprias da Internet como os sites de buscas, as redes sociais, os sites de vídeos online, entre outras.

Esta dinamização do mercado e das relações de consumo, igualmente, ocorreu pela alta competitividade propiciada pelo cyberespaço. Isso, pois, trata-se de um espaço que apresenta custos iniciais mínimos para a abertura de um negócio, como já observou Tim Wu ao dizê-lo que para tanto, basta uma ideia e um bom site[8], além disso, a Internet, por se tratar de um ambiente aberto e neutro, proporciona a competição por méritos e destaques reais.

A competitividade, no cyberespaço, ainda é acirrada pela constante inovação, em pouco tempo, são criados novos aplicativos, novos tipos de serviços e facilidades ao usuário e consumidor, o que demonstra que o mercado que se utiliza deste espaço encontra-se em um constante processo de renascimento, em um constante processo de evolução, o que fortalece a economia e torna o mercado saudável ao consumidor.

Esta livre concorrência e livre iniciativa propiciada pela Internet revelam um mercado mais acessível ao consumidor e muito mais especializado e voltado aos anseios e interesses deste.

Vale destacar, entretanto, que tudo isto somente é possível por meio da neutralidade de rede, vez que esta sempre garantiu aos usuários a liberdade de criação, de invenção, a liberdade de escolha a respeito de qual conteúdo acessar ou qual aplicativo utilizar, bem como, devido ao seu propósito, a neutralidade sempre serviu a vetar que os provedores interferissem nestas escolhas.

Todavia, há muito, os provedores vêm se mostrando incomodados por terem diante de si um mercado altamente competitivo e não poderem manipulá-lo, sendo certo que possuem diversos incentivos para discriminar pacotes e aplicações, alguns deles seriam[9]:

(i)                 Aumento de lucro com a discriminação de pacotes;

(ii)               Discriminar o acesso a aplicativos que tenham a mesma função de um serviço prestado pelo provedor, de modo a inibir a concorrência. Ex: bloqueio de serviço de voz IP por provedores que igualmente ofertem serviços de telefonia;

(iii)             Poder cobrar dos provedores de conteúdo para que os dados sejam veiculados com maior rapidez;

(iv)             Degradar o uso de aplicativos que utilizam muita banda com o aumento do tráfego.

Este último incentivo é justamente o motivo pelo qual os provedores se posicionam abertamente de maneira contrária a neutralidade de rede. Ocorre que os provedores usualmente vendem aos consumidores o serviço de banda larga da seguinte forma: uma quantidade de banda por uma mensalidade fixa, assim, acabam comprando acesso conforme o fluxo de dados trafegados, dessa maneira, se o fluxo aumenta e, para assegurá-lo, o provedor deveria adquirir mais acesso, no entanto, tal aquisição gera, a este, despesas que não são repostas, pois a mensalidade é fixa.

Assim, os provedores em geral colocam-se contrários à neutralidade, asseverando que a discriminação de pacotes e aplicativos iria permitir, a estes, investir em infraestrutura e tornar as aplicações mais rápidas, vez que alguns tipos de pacotes demandam mais banda para o seu transporte, pacotes como os de vídeo e áudio não podem ser quebrados, o que dificulta o transporte destes.

Por outro lado, não há qualquer garantia de que o aumento de receitas dos provedores com a discriminação de pacotes seria utilizado para investimentos em infraestrutura e de que a situação, neste campo, não permanecerá como está atualmente, ademais, como já tratado, este tipo de conduta viria em detrimento do consumidor devido à manipulação mercadológica que se instauraria e à limitação de suas escolhas. Além disso, a limitação das aplicações implicaria, ainda, em uma restrição lógica à inovação. Nesse sentido, Tim Wu nos alerta que:

“Deixar a internet ou qualquer outra infraestrutura se tornar discriminatória pode oferecer marginalmente mais lucros às operadoras. Mas, isto se dará a custo de uma taxa sobre a competição e inovação da rede”[10].

4.      Como a neutralidade tem sido aceita no mundo e a opção feita pelo Marco Civil

Os países ao redor do mundo estão ao poucos reconhecendo a neutralidade como um princípio da Internet que merece ser resguardado por permitir que este ambiente continue a se desenvolver de forma livre e como um ambiente de expressão cultural.

O país pioneiro a aprovar uma Lei sobre a neutralidade de rede foi o Chile, que o fez no ano de 2010. Recentemente, a Colômbia, igualmente, inseriu em seu Plano Nacional de desenvolvimento uma norma que veda práticas de discriminações.

Os Estados Unidos, país em que a Internet fora arquitetada de forma livre e neutra, tem discutindo desde 2010 a elaboração de normas a regulamentar a neutralidade de rede, principalmente, com a atuação do órgão regulador da área de telecomunicações e radiodifusão, a Federal Communication Commission (FCC).

Em novembro de 2011, após intenso debate, o FCC publicou algumas regras básicas sobre a neutralidade de rede, que consistiam em:

(i)            “Transparência. Provedores de serviços de banda larga fixa e móvel devem divulgar suas práticas de gerenciamento de rede, características de desempenho e os termos e condições de seus serviços de banda larga;

(ii)          Proibição de bloqueio. Provedores de serviço de banda larga fixa não podem bloquear conteúdo, aplicativos e serviços lícitos, nem mesmo aparelhos que não prejudiquem o funcionamento da rede; provedores de serviços de banda larga móvel não podem bloquear websites lícitos, nem mesmo bloquear aplicativos que compitam com seus serviços de voz ou vídeochamada; e

(iii)        Proibição de discriminação de conteúdo de forma não razoável. Provedores de serviço de banda larga não podem discriminar de maneira não razoável o tráfego lícito de rede”.

 

Estas regras básicas, por sua vez, pouco resguardavam a neutralidade, visto que se utilizavam de termos vagos, como “razoável”, que poderia ser interpretado de forma a tornar a regra ineficaz, tendo em vista que esta permitia “a discriminação razoável” de conteúdos sem delimitar e especificar quais as práticas poderiam  ser assim entendidas.

Apesar de pouco resguardarem a neutralidade, tais regras representavam, de certa forma, uma garantia em favor da neutralidade, todavia, no primeiro semestre de 2014, o Tribunal Federal de Apelação dos Estados Unidos analisou um caso concreto trazido pela operadora “Verizon”, em que esta defendia a possibilidade de estruturar o seu  modelo de negócio priorizando determinados conteúdos e encarecendo a oferta de pacotes que demandariam uma rede mais interativa, e, ao julgá-lo, deu provimento ao pleito da operadora, afastando a norma da FCC[11].

O argumento utilizado pelo Tribunal para tanto foi o de que muito embora fosse a FCC autoridade competente a regular os serviços de Internet, esta teria excedido a sua competência ao impor aos provedores de acesso ou conexão normas antidiscriminatórias e em prol da neutralidade de rede. 

Tendo em vista tal decisão, a FCC propôs nova regulamentação à neutralidade de rede em maio de 2014 e submeteu-a à consulta pública em seu site no mês de julho, tendo tal regulamentação, apesar de muito criticada pelos provedores americanos de conteúdo[12], aprovada em 26 de fevereiro de 2015 .

De outro lado, na União Europeia, no primeiro semestre de 2014, foi aprovado pelo Parlamento Europeu um pacote legislativo ao mercado de telecomunicações, conhecido como “Continente Conectado”, que garante a neutralidade de rede em todos os países membros. O projeto foi proposto por Neelie Kroes, comissária responsável pela Agenda Digital. A proposta, contudo, ainda precisará passar pela aprovação do Conselho Europeu.

Algumas operadoras de telefonia, como já era de se esperar, protestaram em face da aprovação do Pacote. E sobre esta crítica à neutralidade de rede, a comissária Neelie Kroes, ao ser questionada, argumentou que:

“A proposta da Comissão sobre a neutralidade da Internet visa garantir que todos os utilizadores europeus tenham liberdade de escolha e não estejam sujeitos à interferência dos seus fornecedores de acesso à Internet, permitindo ao mesmo tempo o surgimento de novos serviços inovadores com requisitos de qualidade mais exigentes”[13].

No Brasil, por sua vez, após alguns anos de tramitação no Congresso Nacional, em 23 de abril de 2014 fora promulgado a Lei do Marco Civil da Internet, Lei n. 12.965/14, o qual trata da preservação da neutralidade de rede no país. Vejamos.

A Lei, em seu artigo 3o[14], elege a neutralidade como um dos princípios do uso da Internet no Brasil, consolidando entendimento já exarado pelo Comitê Gestor da Internet (CGI) em sua Resolução 2009/003, outrora já ressaltada.

Já em seu artigo 9o, caput, a Lei estabelece uma vedação geral ao tratamento discriminatório de dados na Internet, bem como a degradação do tráfego por provedores de conexão, sendo certo que tal vedação engloba tanto o bloqueio a determinadas aplicações ou conteúdos, como a priorização, pelos provedores de conexão, de algumas aplicações em detrimento de outras. Segue texto do art. 9o que revela tal entendimento:

“Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização de serviços de emergência.

§ 2o Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§ 3o Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo”.

Há que se ressaltar, ainda, a questão trazida pelo 3o, do referido artigo, que veda expressamente a inspeção de pacotes por meio dos provedores de conexão, prática que, como demonstrado, rendeu à Empresa TNL (Oi) uma multa de R$ 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil), recentemente.

No entanto, apesar do caput do artigo e do 3o consistirem em um avanço à proteção da neutralidade de rede, o seu § 1o  vem a conter tal avanço, vez que traz a possibilidade de discriminação e degradação do tráfego de dados e, pior, atrela isto a regulamentação por meio de decreto do Presidente.

Muito embora seja necessário reconhecer que o princípio da neutralidade de rede não pode ser considerado como um princípio absoluto, vez que, como já demonstrado, muitas vezes é necessário infringir a neutralidade a fim de preservá-la (ex. a mencionada filtragem de endereços para conter um ataque de “negação do serviço”), bem como é necessário deixar um espaço para a administração do tráfego e outras exceções que não trazem consequências gravosas aos usuários, como, por exemplo, a possibilidade de se impedir o envio/recebimento de e-mail spam, fato é que deixar tal regulamentação para um decreto poderá gerar discussões acerca de como a norma poderá ser interpretada no lapso de tempo que se transcorrer até a regulamentação, tornando-a inócua.

Este entendimento acerca da necessidade de regulamentação já havia, inclusive, sido sinalizado ao Deputado Alessandro Molon, relator da Comissão Especial do Marco Civil da Internet, quando este ainda se encontrava em trâmite no Congresso Nacional, pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV por meio de manifestação sobre a neutralidade àquele dirigida, a saber:

“(...)  Ao remeter à regulamentação posterior, isso acaba por tornar o artigo completamente ineficaz enquanto a regulamentação não é realizada, tornando o esforço de aprovação de um Marco Civil da Internet inócuo. Adicionalmente, ao

delegar tarefa de tamanha importância a outro órgão, criar-se-á um pressão de influência mais difícil de ser contida do que no processo aberto e transparente que está realizado no Congresso Nacional”[15].

Outra falha da Lei que poderá dificultar ou tornar ineficaz a sua aplicação no que tange à neutralidade é a ausência de previsão de aplicação de sanção pelo Poder Público em caso de sua inobservância, o que deveria ter sido, melhor, delineado, apesar de ser possível em casos de ofensa à neutralidade pelo provedor de conexão a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, em virtude, da relação de consumo mantida entre o usuário e o provedor.

Desta forma, entendemos que o Marco Civil, em questão de neutralidade de rede significou um avanço da legislação brasileira em prol da preservação de princípio tão caro de uso e governança na Internet, no entanto, ainda carece de limitações que o impedem de resguardar tal princípio e os próprios usuários de rede de forma ampla e integral.

Referências Bibliográficas:

Castels, Manuel. “As lições da história da Internet”,  in “A galáxia da Internet”, Ed. Zahar, 2013.

Sandvig, Christian. Neutralidade de rede e a nova via pública in www.politics.org.br/edicao_02/.../poliTICS_n2_ChristianSandvig.pdf, acessado em 29 de julho de 2014.

Wu, Timothy. “Network Neutrality, Broadband Discrimination”. Journal of Telecommunications and High Technology Law, Vol. 2, p. 141, 2003. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=388863, acessado em 28 de julho de 2014.

___________. “Network Neutrality: Competition, Innovation, and Nondiscriminatory

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“Marco Regulatório Civil da Internet no Brasil” in http://ccsl.ime.usp.br/files/ANEXO_9.pdf, acessado em 30 de julho de 2014.

“O CGI.br e o Marco Civil da Internet: defesa da privacidade de todos que utilizam a internet; neutralidade de rede; inimputabilidade de rede”, CGI.br.

http://www.ime.usp.br/~is/abc/abc/node25.html#SECTION00057000000000000000, acessado em 30 de julho de 2014.

http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=43&data=23/07/2014 , acessado em 23 de julho de 2014.

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Sobre o autor
Lygia Maria Moreno Molina Henrique

Advogada com experiência em Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito de Tecnologia e Comunicação Social. Mestranda em Direito do Consumidor pela PUC/SP.

Informações sobre o texto

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