Há metafísica bastante em não pensar em nada. (Fernando Pessoa)
RESUMO :Imersos nas águas do direito uno, jaz premente suscitar uma visão crítica às questões de maior relevância no campo de estudo da lei. Cumpre construir alguns novos conceitos, ao tempo em que se reconhece a necessidade de desconstrução de outros tantos, de molde a que a segurança jurídica faça jus a uma ótica pouco acompanhada pelos doutos contemporâneos, enquanto a coercitividade atribuída ao Estado para garantir o cumprimento da lei já não pareça tão impositiva assim. Por outro lado, a hermenêutica e o estudo dos porquês que culminaram no valor que tem a lex scripta nos dias atuais, finalmente convocados pela razão, empunharão espadas e tomarão a dianteira, seus lugares de Direito no presente estudo.
Palavras Chave: Direito, crítica, lei, positivismo, teoria pura, ilusão, tecnicismo, razão, coercitividade, segurança jurídica, hermenêutica, filosofia do Direito.
ABSTRACT : Because of we're deeply immersed in law concept, it's necessary to give rise to a judicious vision of the most relevant questions about law study. It's necessary to make some new concepts, and recognize how vital is undo many others, in order to the legal certainty deserves an uncommon point of view of contemporary law doctors, while the state supremacy that makes law accomplished won't be so imposed. In other hand, Hermeneutics and the study of the reasons of lex scripta value will fight in the front, where they belongs, to this study.
Key-Words: Law, critc study, the law, positivism, pure theory, illusion, technicality, reason, imposition, legal certainty, Hermeneutics, law Philosophy.
INTRODUÇÃO
As reflexões que compõem este trabalho não têm a leda pretensão de encerrar toda a gama de questões sobre o papel da lei no processo de construção do que se nomina sociedade, ou, ainda menos, trazer verdades incontestes acerca do que vem a ser esta legítima ferramenta tão importante na salvaguarda dos direitos do homem. Trata-se tão somente da vontade de compartilhar mais um – e singelo - ponto de vista dentre o oceano de possibilidades hermenêuticas no qual o instituto-mor do Direito está inserido; nesse sentido, resta vislumbrada a esperança de que seja este trabalho apenas um dos inúmeros outros aptos a contribuir no processo de instrução do leitor.
Este mesmo leitor, enquanto sujeito cognoscente, leva consigo a possibilidade de construir seus conceitos a partir da experimentação e apreensão das coisas ao seu redor. Posto isto, há de se entender que conhecimento somente pode ser tido como tal quando for expressão verídica do âmago da alma humana, e mesmo que – e obviamente - embasado nos objetos do meio em que estamos postos, livre de qualquer força impositiva e externa aos seres.
Cabe, no cenário jurídico-científico hodierno, produtor de importantes alterações que deram origem a diplomas tais como o Novo Código de Processo Civil, e ainda a discussões polêmicas, a exemplo da propalada redução da maioridade penal, admitir que a comunidade de operadores do direito necessita iniciar a produção do novo pensar – a racionalização que seja o limiar da ideia tão realista quanto filosófica: a lei não perpassa o direito, o direito não se fundamenta na lei.
De fato, o caldo social deixa patente que não há como fundar a vivência comunitária em verdades arcaicas que perderam sua razão de ser no confronto com os institutos do pensamento globalizado. A limitação das necessidades materiais e a manutenção de valores ultrapassados, foram, por muito tempo, o sustentáculo da crença segundo a qual o cumprimento da lei é o primórdio da paz e a única finalidade da Ciência do Direito.
Portanto, faz-se necessário abranger novas concepções de apreensão para a lei, nos campos conceitual, discursivo e teleológico, a fim de elencar toda a gama de objetos desconsiderados pelo racionalismo científico puro.
1. O DIREITO
Antes de adentrar, de fato, o mérito deste estudo, faz-se necessário delinear bem o seu campo de abrangência, vez que, assim como os conceitos do que vem a ser a água, o ar ou a terra, do que vem a ser uma deidade ou um ser humano encontram-se bastante definidas no ideário comum, deve o conceito de Direito ser lúcido e reluzente a ponto de não abarcar qualquer obscuridade.
Ora, por vezes, voltar a atenção sobre qualquer ciência resulta em que as possibilidades de construção ideológica tornam-se tolhidas por preceitos e dizeres superficiais, de ordem tecnicista, que exprimem o exacerbado racionalismo científico adotado pelos pensadores modernos.
A ideia cartesiana de atribuir um método à construção de conhecimento e considerar ciência tão simplesmente aquilo que passa por um juízo de probabilidade convincente, embasado apenas em provas que podem ser vistas ou mensuradas é, no mínimo, uma maneira de desconsiderar a capacidade transcendental que tem o homem de construir a si mesmo a partir de um senso de convicção irracional.
Amor, raiva, sentimento de paz, posições ideológicas e credo religioso são apenas alguns dos institutos que, apesar de influenciarem diretamente na formação da ordem normativa atribuída a uma comunidade, passam despercebidos aos olhos dos cientistas do Direito.
Neste ponto, importa destacar que o estudo do Direito trata, antes de mais nada, da tentativa de perceber um campo científico que é naturalmente humano. Portanto, nada explica a possibilidade, defendida pela maioria dos doutos, de considerar apenas uma qualidade do nosso conjunto existencial, qual seja a razão, em prejuízo das demais, na busca pela satisfação intelectual.
Toda esta celeuma de percepções equivocadas que se amoldaram ao corpus do Direito no soprar da história é fruto de uma concepção mal definida do plano conceitual; em vista disso, adentremos agora ao estudo dos conceitos.
1.1 O CONCEITO CLÁSSICO
Quando se busca o conceito de Direito nas academias, obtém-se, quase que unanimemente, a percepção simplória defendida por Hugo Grócio e Orlando Gomes de que o Direito é o conjunto de normas que regem a sociedade.
Pois bem: talvez seja este o conceito mais superficial e mais abrangente que se pode extrair do Direito, vez que, se não silenciados alguns questionamentos, provavelmente ele levará o sujeito reflexivo a cometer grave erro.
Um ponto é, sem dúvidas, irremediavelmente importante para se entender as fragilidades mais comuns deste conceito: não há nada mais disseminado no meio jurídico do que a equiparação da lei, em sentido estrito, à norma. Tantas vezes se ouve falar em lei como aquele instrumento cogente, amplo e abstrato que, por subsunção, se amolda ao caso material, e em tantas outras oportunidades ventila-se a ideia de que as normas, latu sensu, têm o objetivo de estabelecer limites e parâmetros para a vida comunitária, que os postulados acabam por ser confundidos.
A lei, em seu sentido denotativo, nada mais é do que um conglomerado de palavras bem organizado e apartado do mundo concreto, capaz de abarcar imensurável carga valorativa. Assim sendo, a lei strictu sensu nada mais é do que um receptáculo de padrões. Já a norma, por sua vez, é a união de todos os denominadores de opinião capazes de influenciar um efeito comportamental intersubjetivo. São normas todos aqueles mecanismos de influência externa ao nosso tirocínio.
Influências de ordem social, familiar, político-ideológicas, e principalmente morais, são capazes de direcionar nossas escolhas a qualquer rumo, pela simples vontade que tem o ser pensante de se adequar ao meio.
Neste ponto, é necessário abrir um parêntese para demonstrar que as influências de ordem moral, apesar de manterem sua força vital dentro dos indivíduos, só têm razão de existir quando existem outros seres capazes de ajuizar uma opinião a respeito do resultado desta influência.
Então, v.g., mesmo que seja uma qualidade inerente a Josefina, embasada na sua práxis diária, acreditar que é amoral o fato de três ou mais partilharem uma união estável, sua crença só existirá na medida em que existam três ou mais pessoas no mundo capazes de realizarem tal ato.
Dessarte, a lei, em si própria, pelo único fato de existir, não possui peso valorativo algum. Toda esta massa, comungada de expressões intersubjetivas, que, em sendo onipresentes, permeiam a comunidade, emanam da ideia geral do que é tido como norma.
Para complementar a visão clássica e atribuir a ela um quê de modernidade, é necessário compreender alguns postulados que permeiam a criação do status impositivo, quais sejam, a tríade Fato\Valor\Norma, e a coercitividade que emana do Estado.
1.2 O CONCEITO MODERNO
O saudoso Miguel Reale, em sua Teoria do Direito e do Estado, ilumina a concepção do Direito como uma ordem das relações sociais segundo um sistema de valores reconhecido como superior aos indivíduos e aos grupos. As relações sociais de fato, e suas valorações, são as únicas fontes legítimas do Direito, pois são o elo entre as práticas reiteradas e aceitas pelo homem médio, inserto na comunidade - objeto de incidência da norma - e a sua repercussão no mundo jurídico.
De fato, seria ingenuidade acreditar que o único motivo apto a incitar a atuação dos órgãos legiferantes viria a ser o juízo de permissibilidade/inadequação emitido pela população. Como visto anteriormente, ingerências de ordem política, religiosa, econômica são igualmente capazes de chamar à ação os legisladores. Porém, o fato de cada uma dessas manifestações ser suficiente para provocar o Estado não as torna expressões legítimas do ponto de vista social. Explica-se: um Senador que defende no Congresso Nacional os interesses restritos de grandes empreendedores rurais no Projeto de Lei destinado à reforma agrária, nem de longe terá legitimidade para tal ato, pois não representa as necessidades da maioria. Do mesmo modo, é ilegítima a defesa da criminalização do aborto em todas as suas formas, se fundada exclusivamente na religiosidade extrema de grupos restritos.
Logo, só pode ser legítimo o processo de criação da lei que estiver em acordo com a percepção da coletividade de indivíduos que compõem o meio.
Voltando ao conceito de Reale, toda e qualquer norma coaduna um infinito conglomerado de valores, que faz com que aquela regra seja reconhecida como adequada. O grande problema em reconhecer como aptas a motivar o processo de criação da lei as ingerências políticas, religiosas, econômicas, etc., é o fato de que a sociedade não se reconhece neste tipo de normação. Certas leis, a exemplo da norma constitucional que permite aos parlamentares aprovarem o aumento dos seus próprios salários, enquanto a classe proletária luta junto aos sindicatos para conseguir aumentos ínfimos, abaixo da inflação, ou aquela que reduz as questões ambientais à ótica dos grandes industriários e agricultores, parecem ter vindo de outro planeta.
Não obstante o debate supra, surge a questão da coercitividade. Toda e qualquer norma, independentemente de sua natureza, pressupõe uma relação de dominância. Isto é, deve haver uma relação de desigualdade imanente entre os sujeitos incidentes, de tal modo que um deles seja o emissor e o outro seja, por lógico, o receptor da ordem.
Na consonância dos padrões modernos de estruturação sócio-harmônica, o Estado detém o monopólio da capacidade normativa, impondo aos populares a ordem das convicções medianas. O engraçado nessa relação - melhor observada por Rousseau em sua obra prima O contrato Social - é que o homem, incapaz de ordenar-se de per si, transfere ao Estado a conjectura de suas próprias razões, e por conseguinte, através de um contrato invisível, indescritível e, de fato, inexistente, se reduz à condição de escravo dessa entidade.
Tal qual é a discussão dos fatores coercitivos e primogênitos da lei strictu sensu: é igualmente importante o embate da natureza jurídica genérica dessa agremiação valorativa. Consequentemente, há que ser laborado este ponto.
2. A NATUREZA JURÍDICA DA LEI
O cerne deste objeto está longe de perceber opiniões pacificadas a respeito de qual seja, de fato, a sua função na ordem jurídica. Boa parte da doutrina – fazendo jus ao senso comum teórico dos juristas, bastante minuciado por Warat em suas obras - entende que "lei" é simplesmente a fonte primeira de toda a ordem normativa, pois seria ela o ponto de partida para qualquer ordenamento.
Esta linha de pensamento iniciada por Comte, teve seu ápice em Kelsen na famosa Teoria Pura do Direito. Segundo esta corrente, apenas o instrumento normativo por excelência é suficiente para abarcar todas as questões – ou ao menos, as mais relevantes – que envolvem sujeitos e objetos de Direito, desconsiderando tudo que for estranho à razão humana.
De certa forma, comportamentos motivados por emoções pouco racionais, e até mesmo reflexos de ações cometidas por sujeitos com uma capacidade cognitiva considerada deficitária, são postos em segundo plano.
Defende-se aqui posição antagônica a esta, no sentido de que a lei é apenas um de tantos outros instrumentos de que o Direito se utiliza para materializar a dicotomia entre Ser e Dever Ser. A lei é apenas uma etapa no processo de massificação de uma norma, vez que, logicamente, faz-se perceptível, com base na teoria tridimensional, que a concretização de um termo que tenha valor para o direito depreende a existência de um fato hodiernamente recorrido e valorado pela società di massa. E não surge do nada, como os amigos que aparecem quando se abre um pacote de biscoitos, mas sim a partir de um ardiloso processo de observação e adequação por parte do ambiente ativo, fundamental para a formação do produto final.
Ainda mais, nem mesmo o “produto final” criado pela solidificação formal da norma em lei, é, verdadeiramente, o que mantém contato direto com as pessoas, pois logo após a concepção de um código positivo surge uma tarefa ainda mais difícil: a de se enquadrar os padrões hermenêuticos de apuração interpretativa ao aglomerado de palavras postas a termo, no sentido de extrair realmente o que será utilizado pelos sujeitos receptores. Conclusivamente, lei é apenas um meandro estático entre dois processos valorativos extremamente maleáveis. São estes últimos - e não a lei - fontes verídicas do direito. É nesta altura que se passa ao debate sobre o fator humano.
3. O FATOR HUMANO
É certo que o Direito é eminentemente uma ciência social, e como tal, para que se materialize no plano de vivência, faz-se mister a presença de um fator humanizante a que chamaremos aqui simplesmente de Fator Humano. Por tabela, todos os objetos do Direito propriamente dito, necessitam deste fator humano para delinear sua aplicabilidade.
Como um carro com motor a combustão não funciona sem combustível, ou como o homem que não sobrevive sem oxigênio, também não existe o Direito sem um corpus unívoco de mentes humanas que emprestam sua capacidade cognitiva a fim de pensar os postulados jurídicos que nascem diariamente e precisam de ordenação.
Não se concebe nenhuma norma positivada que tenha a capacidade de existir em si mesma, como mero texto inerte e inodoro. Por mais que exista um texto bem formulado, dotado de unicidade de sentido, e disposto a regular uma praxis social, não terá serventia alguma se não for lido por alguém com aptidão para acatá-lo ou não. E mais: logicamente, não há norma positivada sem um prévio exercício do juízo humano, uma vez que sua criação inicia-se num processo de tipificação efetivado pela própria psique.
O grande processualista J.J. Calmon de Passos tem considerações interessantes a esse respeito:
"No mundo de hoje, nenhuma dúvida pode subsistir de que decisões de natureza jurídica se consubstanciam em textos, quer a nível macro (textos normativos de caráter geral – legislação em sentido lato) quer a nível micro (textos normativos de caráter particular - sentenças, atos administrativos, atos negociais). [...] Essa nova concreção do jurídico, entretanto, ainda se constitui mero texto, impotente, por conseguinte, como os que o precederam, para gerar consequências materiais que traduzam efetiva interferência ou determinação no comportamento dos que são destinatários das prescrições contextualizadas. E isso se dá tanto a nível macro quanto a nível micro. Passa a dispor o jurista, nesse momento, de um sem número de textos, a Constituição, os códigos, as leis, os decretos, os contratos e tudo mais que nem por terem sido editados, promulgados, publicados ou formalizados implicam necessariamente em mudanças a nível de realidade material, no espaço da regulação da conduta humana. Dessa contingência nem mesmo escapam as sentenças transitadas em julgado. Tudo isso apenas textos, nada mais que textos."
(J. J. Calmon - Instrumentalidade do processo e devido processo legal)
À vista disso, o fator humano é a prova cabal de que não existe superioridade dos textos normativos obviamente positivados em relação a outros métodos de garantia do Direito - jurisprudência, analogia e demais meios de integração, v.g. - vez que o texto é essencialmente dependente do homem, tanto no processo de criação quanto no de aplicação.
Veja-se que a maior garantia existente nos ordenamentos modernos, defendida com unhas e dentes pela doutrina racionalista sob o argumento de ser uma ferramenta de objetivação/racionalização e previsibilidade das normas, tem em sua metodologia de criação mais etapas de ordem subjetiva - vislumbradas como imprevisíveis por prevalecer a ponderação reflexiva do homem - do que de ordem objetiva, que culminam na redução à termo da norma. Então, qual seria o sentido da segurança jurídica?
4. A FICÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Ao longo da história de formação das sociedades modernas, é lúcida a certeza de que o homem busca sempre algo que garanta um mínimo de previsibilidade na luta pela garantia de sua subsistência. A partir daí a humanidade vem evidenciando as mais corajosas criações que busquem utopicamente essa garantia. Padrões sólidos como a concretização da norma, o contrato, e até mesmo a democracia são expressões da necessidade que tem o homem de conhecer – ou acreditar que conhece – tudo aquilo que está à sua volta.
Desta forma, sem uma identidade bem definida, e ao mesmo tempo fruto do labor mental de todos os seres humanos, nasceu a segurança jurídica. Para a maioria dos povos influenciados pelo racionalismo cartesiano, nada pode ser mais acreditado do que aquilo que é passível de prova. Apenas existe o que é palpável e apto a resistir a uma infinidade de testes dedutivos. Partindo desse pressuposto pensaram homens como Descartes e Comte não haver garantia melhor do que aquela que é percebida por todos de uma mesma maneira. É aí que entra a lei.
A definição de lei foi criada com um intuito: o de vincular o comportamento humano na esperança de se buscar um denominador comum - aquilo que é a comunhão de valores aceitos e praticados pela sociedade. O instituto da segurança jurídica é forte na mente do homem médio, quando este deduz que, v.g. o edital que ilumina todos os procedimentos necessários à aprovação num concurso público vai garantir uma competição justa, livre de desvios intencionais que podem favorecer concorrentes no processo ou quando se crê que o simples fato de haver uma pena severa para o crime de homicídio, é capaz de extinguir essa conduta da terra. A história mostra que não.
Eis a questão: por que crer que a lei, legitimada pelo contrato social é capaz de produzir segurança jurídica, se para cada dez pessoas que cumprem um postulado normativo pode haver outras dez, cem, ou até mesmo milhões que não o cumprem? A defesa da existência dessa segurança, principalmente se advinda da lei strictu sensu, parece uma posição equivocada.
Ademais, há de se pensar que o que motiva a ação humana é o seu próprio sentido ético/moral, aquele juízo de admissibilidade no qual o indivíduo se debruça antes de fazer uma escolha. Ninguém que almeja cometer um roubo pauta a decisão de roubar ou não na simples questão de haver uma retaliação estatal prevista para tal conduta, mas na prognose do quero-devo-posso, constituída substancialmente de carga moral adquirida ao longo dos anos, e da carga ética, massificada pelos padrões contemporâneos àquela conduta. Logo, se não existe vinculação material, não existe segurança jurídica.
CONCLUSÃO
Um belo dia alguém teve a brilhante ideia de constituir nas mentes humanas uma ilusão, criação tão perfeita e fugaz que chegou ao ponto de fazer com que todos os seres pensantes medianos se acreditassem seguros em suas vidas.
"No nosso mundo, o roubo é ferozmente sancionado, e ainda mais o é o homicídio" – disse o imponente gigante guardião das leis ao jovem cidadão. E na certeza de que caminhava seguro pela pólis, desfrutando do calor solar e da explosão de cores vivas e gritantes dos arvoredos, em apenas um sopro de momento, o crédulo ouvinte acabou entregue ao pior destino. Surpreendido por um malfeitor, sucumbiu à morte destituído de suas pertenças, enquanto indagava-se: “Palavras apenas, mesmo que petrificadas no papiro, não bastam para anular a sede que tem o homem de manifestar o seu livre alvedrio. É preciso mais.”
Todos os dias, em todos os cantos do planeta, o homem comum do povo, crédulo e tolamente seguro de seu universo patrimonial – vida, propriedade, direitos vários – segue seu rumo irrefreável até eventual trágico fim, antes de lhe ser dada a oportunidade de confrontar a realidade estatal mais dura: a lei não basta para coibir as ações humanas, o indivíduo não refreia suas vontades face as sanções prometidas pela norma.
Por consectário lógico, a segurança jurídica apregoada pelo Estado como princípio primordialmente observado em toda e cada uma das ações voltadas ao albergue dos interesses dos cidadãos, alegadamente inserida no ordenamento jurídico pátrio, consubstancia-se em maravilhosa ilusão, ficção espetacular que paira no cenário do Direito como fantástica aurora boreal, tão admirável quanto intangível e imaterial.
Não existe segurança jurídica.
Assim como inexistem os processos lógico-matemáticos de construção do raciocínio que lastreia a regulamentação da vida em sociedade - a legitimação das normas não nasce de sua cogência ou da capacidade sancionatória do Estado a partir da dicção que delas se extrai. O Direito é fruto das vivências, da valoração e das experiências filosóficas de cada grupo social. O conteúdo das leis e as próprias leis, para existirem, dependem de sua consonância com a vida comum do povo, seus saberes, costumes e, acima de tudo, suas vontades e móveis de ação.
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